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Relatos do inferno: a dura tarefa de “bater cadeado”

3. SISTEMAS JURÍDICO-PENAIS CONTEMPORÂNEOS

4.3 Relatos do inferno: a dura tarefa de “bater cadeado”

Durante o período em que trabalhei com a equipe Alpha, participei também dos momentos de abertura e fechamento das celas. Desses, o momento do “tranca” é o que envolve maior tensão e risco a integridade física dos AP. Todo o processo do tranca, nos dois pavilhões, leva cerca uma hora. Geralmente, a equipe inicia realizando o tranca no pavilhão 1, para em seguida fazer o mesmo com o pavilhão 2. Inicialmente, como os presos estão na quadra (no banho de sol), fechamos a grade que dá acesso da quadra para as celas. A partir de então tínhamos livre acesso às celas, momento que era aproveitado para realizar revistas nas dependências dos presos, a procura de drogas, celulares, armas ou possíveis rotas de fuga.

Apesar de ser um procedimento aparentemente seguro, a revista das celas mobilizava muita atenção por parte dos APs, já que havia a possibilidade de um ou mais presos permanecerem nas celas (ao invés de ocuparem a quadra), aguardando o agente para um possível ataque, tomada de refém, etc. Assim, esse momento era sempre de muita tensão, seja por parte dos APs que ficavam na retaguarda, vigiando o corredor e dando cobertura a quem deveria entrar nas celas, mas principalmente naqueles que entravam nas celas, que faziam isso geralmente de arma em punho.

Após isso, os APs retornavam ao corredor de acesso ao pavilhão (fechando a grade que liga este ao corredor), abrem a grade que liga a quadra às celas, e aguardam os presos retornarem as celas, a partir de uma chamada oral (que pode ser nominal, ou por cela) Somente após todos os presos entrarem nas celas é que os APs entram no pavilhão e iniciam o processo de fechamento das mesmas.

21“Bater cadeado” é a nomenclatura pela qual os AP designam a atividade diária de fechar as celas, encerrando o

No primeiro tranca que participei, fiquei com a função considerada mais simples, porém não menos arriscada: bater o cadeado. Apesar do pavilhão 1 ser considerado o menos perigoso (por abrigar presos de menor poder aquisitivo, e que estão cumprindo pena por crimes menos graves), no primeiro cadeado fechado, minha mão tremeu, e a sensação era de apreensão: coração acelerado, passos incertos... Mesmo sabendo que deveria seguir as orientações dos AP e não demonstrar medo foi impossível controlar a tensão de estar ali, tão próximo dos presos, vestindo um uniforme de agente penitenciário. Ao optar por esse método de pesquisa, acabei por optar por uma determinada maneira de habitar aquele espaço, o que significava, dentre outras coisas, ser o responsável por encerrar os detentos em suas celas (geralmente escuras, lotadas e insalubres). Não se tratava mais de observar os acontecimentos, mas de habitar um determinado território existencial.

O ato de fechar a cela é feito por três APs. Inicialmente, dois APs passam fechando as celas (apenas com o ferrolho), e logo atrás mais um AP segue colocando e fechando os cadeados. Por vezes, a proximidade entre AP e preso chega a zero, o que se constitui enquanto importante agravante das condições de trabalho desses profissionais. Ao retornar, agora com todas as celas fechadas, é preciso passar muito próximo aos presos, o que significa um risco em potencial. Mesmo que se tome certa distância das celas, um detento (muitas vezes a mando de outro com superioridade hierárquica dentro da prisão) pode fazer uso de lanças artesanais, ou de algum outro tipo de arma que possa ser lançada em direção aos APs, como forma de vingança/represália por alguma atitude tomada ao longo do dia (apreensão de celulares, drogas, impedimento de entrada de determinados alimentos ou utensílios, etc.). Além disso, quando iniciamos o trabalho de entrada no pavilhão, todas as celas estão abertas. Os APs contam com a colaboração dos presos, pois, caso contrário, é possível que todos saiam ao mesmo tempo de suas celas, pegando de surpresa (e em superioridade numérica) os APs que se encontram no corredor do pavilhão.

Os mesmos procedimentos acontecem no pavilhão 2, porém com um nível de tensão consideravelmente maior (já que nesse pavilhão encontram-se os presos considerados mais perigosos).

O tranca é, portanto, um dos momentos mais tensos do dia a dia dos APs. Muitos relatam que passam o dia contando o tempo, a espera desse momento. A rotina, aliada à tensão dos procedimentos, torna o trabalho ainda mais penoso: “Só de pensar que daqui a

pouco você vai ter que fazer aquilo de novo... Subir, fechar as celas, falar com os presos, você já fica estressado!”.

Assim, para refletirmos sobre o trabalho dos APs vale a menção ao sentido etimológico do termo, que “vem do latim tripalium, que significa instrumento de tortura” (Lhuilier, 2013, p. 483). A autora reconhece que embora tal concepção tenha se ampliado, não é possível falar em trabalho sem falar em sua dimensão constrangedora, de sofrimento e pressão em direção a um determinado objetivo (idem): O trabalho é realizado com os outros, para os outros, ele é subordinado a um objetivo coletivo, organizado, coordenado, canalizado, gerido. Assim sendo, ele é objeto de enfrentamentos e de conflitos (idem, p. 484).

O conflito mais perceptível no contexto investigado diz respeito ao sentido atribuído ao trabalho pelos APs em questão. Confrontados diariamente com a tarefa de custodiar presos, os APs compõem as engrenagens do sistema prisional brasileiro, que tem como pano de fundo a proposta de ressocialização dos detentos. Mais que uma custódia, portanto, os APs devem trabalhar para que o sistema cumpra essa função, já que organizam o dia a dia da cadeia. Porém, o cotidiano prisional os obriga a dura tarefa de abrir as celas no início do dia, para, ao final, trancá-los novamente em celas escuras e insalubres (conforme descrevemos no capítulo anterior). Como no mito de Sísifo, após um longo esforço subindo a rocha morro a cima, esta desce morro a baixo, e o trabalho recomeça.

Abrir as celas no início da manhã, fechar no meio da tarde... A ausência de sentido da tarefa é uma das primeiras coisas que me chama a atenção, sobretudo pelo fato de que “o

trabalho tem uma função social essencial: é uma atividade que liga aos outros e que implica se ajustar a eles para produzir algo útil” (idem, p. 486). Assim, qual seria a utilidade do meu trabalho, naquele espaço, enquanto agente penitenciário?

A ausência de sentido para o trabalho aparece também em outros momentos. As revistas de celas e dos visitantes em busca de drogas e artefatos proibidos tem se mostrado impotentes diante da tarefa de manter o presídio livre desses itens. É consenso entre os AP o fato de que sempre houve e sempre existirão, no interior da unidade prisional, drogas celulares, etc.: “É um trabalho de enxugar gelo”.

Porém, é necessário atentarmos para o fato de que o trabalho não se constitui apenas por sua dimensão penosa (tripalium). A possibilidade de recriar, constantemente, o modo de trabalhar, nos obriga a considera-lo também como o caminho pelo qual podemos nos desenvolver. Nas palavras de Lhuilier:

A concepção de trabalho como pena (tripalium) oculta o trabalho como criação, como desvio, como ultrapassamento de pressões e como desenvolvimento de si. O lugar que ocupa o trabalho para cada sujeito depende das saídas favoráveis que esse sujeito poderá encontrar, criar por seu desejo, por sua história, por sua personalidade (idem, p.484).

Assim, o dia a dia com os APs vai revelando maneiras de trabalhar, modos de habitar aquele espaço que denunciam possíveis saídas encontradas por esses trabalhadores na tentativa de recriar seu trabalho. Entre o que está prescrito como função do AP (manter a segurança do presídio, evitar a entrada de drogas e demais artefatos proibidos, colaborar para a ressocialização) e o que de fato é possível no dia a dia no interior do presídio há uma grande distância, e o caminho encontrado pelos APs revela o modo como estes recriam seu trabalho, e suas funções. Minha trajetória inicial como agente penitenciário ilustra um pouco os dilemas enfrentados por esses profissionais, bem como suas invenções no dia a dia da prisão, o que busco descrever nas próximas linhas.