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Sistemas penais contemporâneos e os novos discursos no campo da segurança pública

3. SISTEMAS JURÍDICO-PENAIS CONTEMPORÂNEOS

3.4. Sistemas penais contemporâneos e os novos discursos no campo da segurança pública

Ao pretender discorrer sobre a prisão, é inevitável não pensar nos diferentes sistemas penais, e o modo como estes vem se constituindo. A partir da década de 1960/70, o mundo presenciou algumas mudanças no que concerne ao modo como lidamos com o crime. A prisão deixa então de ser a peça fundamental, ou pelo menos a única forma de punir/lidar com as transgressões às normas sociais.

Alguns autores situam que essa mudança ocorrida a partir do período supracitado teve como característica um fortalecimento do caráter conservador das ideologias e práticas penais (neoconservadorismo), aliado a um avanço do neoliberalismo (Feeley & Simon, 2012). Além disso, tais autores situam que para além de novas estratégias penais, o que se vê é uma mudança no discurso, objetivos e técnicas utilizadas no âmbito dos sistemas penais contemporâneos, ao que convém denominar “nova penalogia” (idem, p. 19).

Enquanto a “antiga” penalogia situava seu campo de análise no indivíduo, com a intenção de estabelecer a culpa, a nova penalogia está menos preocupada com responsabilidade ou culpabilidade, diagnóstico ou intervenção (idem). “Preocupa-se com técnicas para identificar, classificar ou gerenciar agrupamentos distinguidos por sua periculosidade” (idem, p. 21).

Assim, tem-se um novo discurso: não mais o da descrição clínica ou moral do indivíduo, mas uma linguagem atuarial de cálculos, probabilidades, distribuições estatísticas

direcionadas à população (idem). Não temos mais, portanto, o sujeito perigoso, delinquente, mas uma população, um grupo considerado perigoso ou de alto risco. Além disso, é possível situar também um novo objeto: não mais a punição ou a reabilitação de sujeitos, mas identificação e gerenciamento de grupos de difícil controle. Seu objetivo não é eliminar o crime, mas torná-lo tolerável (idem).

Segundo os autores, o afastamento da tentativa de normalizar os infratores e a aproximação de uma proposta de gerenciamento pode ser percebida na “decadência do significado da reincidência” (p. 25). Se antes as altas taxas de reincidência era um critério para se determinar o fracasso dos sistemas penais, hoje o elevado número de pessoas, em liberdade condicional, que retornam à prisão representa o sucesso do livramento condicional como uma estratégia de controle (idem).

Por fim, a nova penalogia implica também na invenção de novas técnicas. Se a ideia não é mais recuperar/ressocializar11, o ideal é que se invista em “formas mais custo-eficientes de custódia e controle e em novas tecnologias para identificar e classificar o risco” (idem, p. 27). Assim, os autores trazem o desenvolvimento de centros de custódia sem regalias e confortos; sistemas de monitoramento eletrônico; campos de treinamento correcionais; e técnicas estatísticas para determinar riscos e possível periculosidade (idem).

Tais estratégias não se colocam aqui com a missão de ressocializar, oferecer emprego, etc. A ideia aqui é a da “detenção variável de acordo com o risco previsto” (idem, p.28). Os autores exemplificam essas ideias a partir da teoria da incapacitação (Greenwood, 1982; More et al., 1984, citados por Feeley & Simon, 2012). De acordo com esta teoria, a prisão não proporciona nenhum tipo de reabilitação, mas pode deter o preso por algum tempo. Assim, ao se redistribuir os presos na sociedade, segurando-os por um determinado tempo na prisão, seria possível reduzir os efeitos dos delitos, sobretudo pela incapacitação do preso em se reinserir na sociedade, facilitando seu controle pelos aparatos jurídico-policiais. Nesse

11 Na verdade nunca foi, tais objetivos serviam apenas como justificativa para o encarceramento. A partir de

sentido, a prisão oferece segurança máxima a um alto custo para aqueles presos de maior periculosidade, e a suspensão condicional da pena oferece vigilância a baixo custo para aqueles que representam menores riscos a sociedade (Feeley & Simon, 2012).

Além da expansão do alcance da sanção penal (já que agora não apenas o encarceramento, mas o regime de suspensão condicional da pena e a liberdade condicional se encarregam de expandir e redistribuir o encarceramento), a nova penalogia tem também como característica o aumento do controle exercido sobre o uso e comércio das drogas, entendendo que o enorme crescimento da população carcerária relacionada a essa questão representa não tanto um controle individual, mas um mecanismo para classificar o indivíduo em um grupo de risco (idem).

Outra característica presente em alguns sistemas penais contemporâneos é a redução da definição de desvio, na medida em que se percebe como contraproducente a criminalização de infrações menores, que passam a ser penalizadas de maneiras alternativas e menos custosas (penas comunitárias, monetárias), além da descriminalização de alguns comportamentos que anteriormente seriam punidos com rigor (Garland, 2012). A preocupação central, como já foi dito, é a redução dos custos e aumento da “performance governamental”, que passa a ser definida não mais por critérios como ressocialização/recuperação de presos, mas, sobretudo por número de policiais nas ruas, número de chamadas de emergência processadas, quantidade de horas que os detentos gastam em atividades laborais, etc. (Garland, 2012, pp. 71-73). No Brasil, os principais indicadores de produtividade da segurança pública dizem respeito a quesitos como “ocorrências criminais e atividades de segurança pública” (Ministério da Justiça, 2012), pautando metas no que diz respeito à redução de roubos, furtos, crimes violentos, etc. As práticas de controle e vigilância continuam existindo, porém a um custo bem mais baixo, e alcançando maior amplitude.

Ainda dentro das discussões acerca das estratégias contemporâneas de controle do crime, autores como Garland (2012) apontam a recente tendência das agências estatais de

focar suas ações nos efeitos do crime, muito mais do que em suas causas. Assim, a partir do consenso criminológico, que imperou a partir das décadas de 1970/80, de que “nada funciona”, o Estado passou a investir principalmente na melhor administração dos riscos e recursos, redução do medo do crime e maior apoio às vítimas, em substituição às frustradas tentativas de acabar com o crime (idem, p. 59).

Nesse contexto, Garland (2012, p. 63) situa o surgimento do que chama de “as novas criminologias da vida cotidiana”. Para ele, há um conjunto de teorias que situam o crime fora de uma dimensão patológica ou como sinal de anormalidade de determinados sujeitos (criminosos), estando assim “inscrito nas rotinas da vida social e econômica contemporâneas” (Garland, 2012, p. 63). Ao adotar tal perspectiva, as agências governamentais (em particular o Reino Unido) tem reorientado suas ações, criando novas técnicas direcionadas ao controle do crime. A ideia é deslocar o foco das ações e investimentos da polícia, tribunais, prisões, etc., para as organizações, equipamentos e indivíduos da sociedade civil, já que se reconhece a limitada capacidade do Estado em lidar com essas questões. Assim, as ações são dirigidas não aos infratores individuais, mas às vítimas em potencial, às situações vulneráveis presentes no dia a dia, incentivando, por exemplo, o uso de cartões de crédito (ao invés de dinheiro), melhorando a segurança de automóveis, alertando comerciantes sobre segurança, encorajando as ações de vigilância comunitária, diminuindo com isso a oferta de oportunidades para ações criminosas (idem).

Ao propor a ideia de que criminosos são oportunistas racionais, sem muita diferença das vítimas, Garland nos apresenta uma “criminologia do si” que traz para o dia a dia das pessoas comuns a questão da criminalidade, revelando o caráter contraditório dos sistemas penais contemporâneos (Garland, 2012, p. 77). Por outro lado, Garland (2012) também situa o surgimento de uma determinada “criminologia do outro [...], que representa os criminosos como membros perigosos de distintos grupos raciais e sociais que possuem pequena semelhança ‘conosco’” (Garland, 2012, p. 77).

Enquanto aquela traz uma concepção de criminoso enquanto um homem situacional, solapando a ideia de um Estado que deve prover segurança e bem estar a seus cidadãos, deixando à esfera privada as possíveis soluções para a criminalidade; esta, por sua vez, permite o incremento de punições mais severas, conseguindo enorme apoio popular a um baixo custo (Garland, 1999). Garland conclui, portanto, que nos últimos trinta anos o que se viu no Reino Unido foi uma estratégia governamental de responsabilização (de indivíduos, organizações da sociedade civil, etc.), que se alinha perfeitamente às privatizações e redução de gastos públicos, característica desse período (Garland, 2012), conforme sinalizou também Wacquant (1999) ao refletir sobre a influência do neoliberalismo nas políticas e práticas penais.

O resultado disso pode ser a transformação da “segurança” em um produto como outro qualquer, que passaria a ser distribuído por forças de mercado, e não pelas necessidades e iniciativas do Estado, o que certamente seria mais duramente sentido entre as camadas mais pobres da população (justamente as que mais são afetadas pelo crime) (Garland, 2012). De uma maneira geral, o que se vê é a decadência de um projeto de solidariedade que marcou o século XX (pelo menos no nível do discurso) e a ascensão de “um projeto mais divisor, excludente, de punição e polícia” (Garland, 2012, p. 85).

Finalizando esse tópico, é possível afirmar que embora tenhamos diferentes hipóteses explicativas para o aumento das taxas de encarceramento, não é possível atribuir a uma ou outra explicação o privilégio de desvendar e explicar esse fenômeno. Conforme salientado por Pavarini (2010), a presença concomitante de diversos fatores que atravessam a questão impede de apontar se, e como, cada uma das variáveis (aumento da criminalidade, maior severidade das políticas penais, difusão do alarme social, etc.) influencia na questão do encarceramento. Além disso, as teses que enveredam pelo paradigma da construção social acabam por afirmar a presença hegemônica de alguns fatores econômicos, políticos e culturais (produção de populações excedentes, etc.), que, embora sejam determinantes em alguns

contextos, não o são em outros (idem). Para o autor, o mais importante a ser salientado nesse debate é o fato de que “os modelos dominantes em política criminal penetram em toda parte, como o hábito de beber Coca-Cola” (2010, p. 312). O crescimento da população carcerária no mundo tem a ver sim com a gama de variáveis listadas. Mas, principalmente, o que Pavarini ressalta em sua argumentação é que:

o aumento da criminalidade, a difusão da insegurança social, as práticas de exclusão impostas pelo mercado, os novos processos de mobilidade determinados pela globalização, a redução do Estado social, etc., são apenas os elementos através dos quais - in primis na ‘capital’- constrói-se, impõe-se e, no final, difunde-se, universalmente, uma nova filosofia moral, um determinado ponto de vista sobre o bem e sobre o mal, sobre o lícito e sobre o ilícito, sobre o que merece inclusão ou exclusão (Pavarini, 2010, p. 312).

Assim, importamos não apenas modelos e técnicas penais, mas toda uma filosofia, uma concepção acerca do crime e do encarceramento, uma determinada cultura da punição. Trata-se de uma expansão do discurso penal, produzindo uma colonização das subjetividades, ávidas por castigo e prisão, enfim, a globalização da barbárie.

3.5 Sistema jurídico-penal brasileiro: importação de práticas e ideias à luz do jeitinho