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Caos, violência e violações: conhecendo outras linhas de força do dispositivo prisão

3. SISTEMAS JURÍDICO-PENAIS CONTEMPORÂNEOS

4.5 Caos, violência e violações: conhecendo outras linhas de força do dispositivo prisão

Seguindo o processo de cartografia do dispositivo prisão, um elemento que sobressai nessa paisagem diz respeito à violência que marca o cotidiano prisional, não apenas em práticas e fatos isolados, mas materializado em um conjunto de valores, linguagem que dita as regras nesse espaço. Para tentar descrever melhor essas linhas de força, resgato meus momentos de cartografia junto à equipe Alpha.

No meu primeiro plantão com a equipe Alpha, cheguei cedo e bastante entusiasmado para o trabalho. Após “render” a equipe que deixava o presídio, tomamos café e conversamos um pouco sobre a rotina. Era um sábado, dia em que são realizadas as visitas sociais, o que significava que teríamos muito trabalho. No café da manhã, as conversas giram em torno da violência e agressões que comumente acontecem na prisão. Segundo alguns APs, não se pode

bater por qualquer coisa, mas deve-se bater. Bater como forma de punição, castigo, correção por uma ofensa, um desrespeito, etc.

Na verdade esses diálogos chamam a minha atenção mais pelo fato de se colocar enquanto uma cultura institucional absolutamente nova para mim, do que pelo fato de ter a ver diretamente com meus objetivos de pesquisa (pelo menos em uma primeira análise). Assim, passei a me interessar por essa questão que, inevitavelmente, atravessava meu dia a dia. Nesse sentido, é possível pensar que há uma cultura violenta que permeia o espaço prisional, assim como as relações de trabalho desses sujeitos, o que sem sombra de dúvida produz efeitos subjetivos importantes. Efeitos esses que não estão restritos apenas ao ambiente masculino, o que significaria, talvez, que as AP do sexo feminino constituiriam um grupo a parte.

Nesse mesmo café da manhã que relatei acima, uma AP chega pra trabalhar e relata um caso de briga no trânsito em que um motorista a teria xingado de “vagabunda”. Segundo a AP, “se eu tivesse uma arma descarregava no cara...”. Possuir uma arma, aliás, parece ser algo comum entre os AP. Eu era um dos poucos do grupo que não andava armado (dentro ou fora do presídio), fato que gerava comentários entre os presos mais próximos: “Falta só você comprar sua arma...”.

A cultura da violência, a qual faço alusão nessas breves linhas, não se materializam apenas em práticas e diálogos informais. É possível vê-la materializada na própria rotina institucional dos AP, como por exemplo, quando a mesma AP, que desejou possuir uma arma de fogo para defender sua honra nos conflitos de trânsito, relata que quando trabalhava em uma unidade prisional feminina foi “convidada” pela então diretora para agredir uma determinada detenta. A recusa, por parte da AP, desagradou a diretora, gerando animosidades entre as duas. Em outra ocasião, ao registrar o dia a dia da equipe, na qual estava trabalhando, alguns AP fizeram questão de posar para fotos ostentando suas armas de fogo:

Foto 18: AP portando espingarda calibre 12 na entrada de um dos pavilhões.

Nessa mesma linha, surge outro diálogo em que os APs lembram-se de um de seus colegas, que tinha por hábito bater em vários presos de uma vez, enfileirados: “dava tapa na

cara de cada um...”. Os relatos acima sinalizam para um processo de familiarização com o

ambiente carcerário (descrito por Moraes, 2005), que pode levar também ao contágio (Goffman, 2008), manifestado por meio de suborno, corrupção, ou agressões físicas por parte dos agentes penitenciários. O contágio, a partir das ideias do autor citado, diz respeito a uma espécie de contaminação com os hábitos e valores de uma determinada instituição por um grupo específico (nesse caso, o grupo de agentes penitenciários) (idem). No caso da prisão, trata-se de uma forma de funcionar que se coloca no campo do instituído há séculos, e que parece naturalizado em nossos dias (sobretudo se pensarmos nos constantes apelos midiáticos ao castigo, sempre mais severo, como forma de combater o crime). Aliás, se avançarmos ainda mais no tempo, veremos que a resolução de conflitos pela via da violência (institucionalizada ou não) antecede o surgimento do direito penal, atravessando séculos, confundindo-se com a própria história da humanidade.

A violência, a qual faço alusão nas linhas supracitadas, diz respeito especificamente a seu caráter instrumental, para se chegar a um determinado fim (de dominação), tal como postulou Hannah Arendt (2014). Segundo a autora, é preciso diferenciar alguns conceitos que muitas vezes são tidos como sinônimos tais como: poder, vigor, força, autoridade e violência.

O “poder”, para Arendt, “corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas enquanto o grupo se conserva unido” (Arendt, 2014, pp. 60-61). Seguindo sua linha de raciocínio, Arendt apresenta também a ideia de “vigor”, que, diferente do poder, “designa algo no singular, uma entidade individual; é a propriedade inerente a um objeto ou pessoa e pertence ao seu caráter, podendo provar-se a si mesmo na relação com outras coisas ou pessoas, mas sendo essencialmente diferente delas” (idem, p. 61).

Já o conceito de força, por outro lado, comumente utilizado como sinônimo de violência, diz respeito à “energia liberada por movimentos físicos ou sociais” (idem, p.61), diferentemente da ideia de autoridade, geralmente materializada e um insígnia, que atesta “o reconhecimento inquestionável daqueles a quem se pede que obedeçam; nem a coerção, nem a persuasão são necessárias” (idem, p. 62).

Por fim, a autora conceitua “violência”, entendendo que esta:

distingue-se por seu caráter instrumental, depende da orientação e da justificação para determinado fim. Fenomenologicamente, ela está próxima do vigor, posto que os implementos da violência, como todas as outras ferramentas, são planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural até que, em último estágio de desenvolvimento, possam substituí-lo (idem, p. 63).

A autora afirma ainda que a violência precisa de justificação para ser efetuada, tolerada... No caso do ambiente prisional, a centralidade do castigo (que fundamenta não apenas nossas práticas penais, mas diversas práticas em outras esferas da vida (escola, trabalho, família, etc.)) é o pano de fundo para a emergência de práticas violentas. É a ideia de que o “castigo educa”, “pelo castigo que se aprende”, que serve de racionalidade para a violência.

As análises de Arendt fazem sentido no contexto investigado, sobretudo, se pensarmos na ideia defendida pela autora de que “poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece quando o poder está em risco, mas, deixada a seu próprio curso, conduz à desaparição do poder” (idem, p. 73). Assim, a violência e a tortura, comuns ao ambiente prisional, diz respeito à falência de determinados discursos, que outrora sustentavam a engrenagem carcerária. Como bem pontuou Nobre (2004), “a violência irrompe quando o discurso está falido” (p. 159), que atesta para o fracasso de nossa política penal contemporânea. Ademais, é preciso lembrar dos efeitos colaterais dessa violência institucional, operacionalizada pelos agentes (e no campo da segurança pública, de

uma maneira mais ampla). Além de ineficaz, produz o aumento da violência por parte de pessoas/grupos considerados divergentes (Nobre, 2004).

Dessa forma, a questão do castigo físico/tortura, portanto, permanece presente enquanto um elemento importante dia a dia da prisão. Além de algo que atravessa a cultura institucional desse espaço, há que se refletir também sobre uma determinada concepção de homem que subjaz a essas práticas: “Castigo bom, passar cinco dias na cela...”. Parece que há uma ideia de que o castigo é realmente algo importante, que deve acontecer para o bom funcionamento da instituição e para o aprendizado dos criminosos. Além disso, deve ser um castigo severo, que possa ser sentido de maneira intensa pelo sujeito. Em uma outra ocasião junto a meus colegas de trabalho, já que agora componho o grupo de APs daquele presídio, o café da manhã é finalizado com um singelo convite: “Rafael vai bater no estuprador hoje...”. Obviamente que minha resposta foi um “não, isso ai não dá pra mim não...”.

Assim comecei minha jornada como agente penitenciário da equipe Alpha. Entender sobre os valores e ideias que pairavam naquele ambiente era importante tanto para meus objetivos de pesquisa, quanto para fazer parte do grupo. Precisava aprender sobre o modus

operandi dos APs e, pra isso, observar e conversar com meus colegas mais experientes foi

fundamental. O modus operandi instituído naquele espaço se apresentava como um misto entre as regras prescritas enquanto função do AP (manter a segurança da unidade prisional, evitar fugas, evitar a entrada de drogas e demais artefatos proibidos, etc.) e a cultura institucional que caracteriza o ambiente prisional (sobretudo a violência e demais violações que marcam esse espaço).

Foi nesse contexto que fui inserido, fazendo o possível para aprender a habitar aquele espaço, o que não era nada fácil. Em um dos primeiros dias com os agentes, lembro-me de uma cena marcante: uma mãe que, ao visitar o filho pela primeira vez, sai da visita chocada, sem direção, perplexa com tudo aquilo que representa uma prisão. Confesso que pra mim

sempre foi mais fácil compreender essas sensações, do que aquelas que pairavam entre os APs.

Fazendo uma análise de implicação do meu processo de inserção na rotina dos agentes penitenciários, algumas forças se fazem presentes e merecem ser aqui apresentadas. Para a análise institucional a implicação consiste no tipo de relação que temos com um determinado objeto, fenômeno, equipamento, instituição, etc (Monceau, 2008; Lourau, 1993). Todos estamos implicados sempre, porém de maneiras diferentes.

De um lado, uma descrença absoluta na prisão enquanto instrumento de controle do crime, aliado aos já sabidos efeitos deletérios da prisão sobre os presos (em particular com relação às camadas mais pauperizadas da população). Tais forças me moviam na direção de uma recusa em concordar com o funcionamento da prisão, com as práticas disciplinares ali utilizadas, com a cultura institucional partilhada pelos agentes. A vontade era de provocar uma fissura nisso tudo. Algumas passagens de meus diários de campo sinalizam para essa inquietação:

Qual o sentido da prisão? João26 me fala que quando habitava o pavilhão dos presos escutava muito os presos falando o que iam fazer após a saída, geralmente atividades ligadas ao mundo do crime... Qual o sentido real da prisão? Pra quem ela serve?

Em outros momentos, a inquietação se manifestava contra determinadas atividades realizadas pelos agentes: “Na revista, por exemplo, sempre me perguntei por que retiram drogas e celulares, se isso não vai acabar mesmo...”.

Por outro lado, era preciso estar ali para cumprir com meus objetivos de pesquisa. A instituição “educação” aparecia aqui, sob a égide da universidade, um de seus equipamentos símbolos, me fazendo seguir em frente, na direção de concluir a pesquisa, a tese. Talvez isso explique minha postura mais passiva diante de determinados acontecimentos, diante dos

procedimentos disciplinares executados pelos APs, enfim, diante do modo de funcionamento desse espaço. Era preciso seguir em frente e, para isso, me apegava à ideia de que, talvez, a conclusão da pesquisa/tese (produção de artigos, o momento da restituição, etc.) pudesse ser mais potente do que o simples embate diante das rotineiras práticas/procedimentos do cárcere. Dentre as questões que motivavam, portanto, a seguir em frente, estava a possibilidade de conhecer melhor um determinado território existencial, apreendê-lo em ato, no dia a dia, produzindo assim uma crítica mais potente desse cenário. Retorno ao meu diário de campo, trazendo minhas inquietações sobre a violência, o desejo de castigar que paira sobre os agentes (mas não apenas entre eles): “O tratamento violento para com os presos, observado

com Tião27, parece ser uma coisa comum. É importante investigar melhor como se produz isso... De onde vem esse desejo de violência?”.

Questão inconclusa, a produção de uma cultura da violência é algo que me inquietou durante toda a realização da pesquisa. Embora não tenha conseguido dar uma resposta (se é que há uma resposta fechada a esse processo), penso que algumas reflexões, alguns analisadores ajudam a compreender melhor esse fenômeno.