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3. SISTEMAS JURÍDICO-PENAIS CONTEMPORÂNEOS

3.1 Práticas penais modernas: a (re)invenção da prisão

As práticas punitivas na idade média eram marcadas, principalmente, por um excesso de crueldade, violência e arbitrariedade no processo de condenação dos acusados. Foucault (2007) em sua obra “Vigiar e Punir” traz relatos aterrorizantes dos suplícios perpetrados aos acusados, em praça pública, sem direito a defesa. A sociedade de soberania, em vigor nesse momento, tinha como característica a centralização do poder na figura do soberano, do rei que tudo decidia, sobretudo pelo fato de ser um representante de Deus na Terra. O lugar privilegiado ocupado pela Igreja nesse período atua como uma linha de força importante, colocando “crime” e “pecado” num mesmo plano, tornando assim análogos os conceitos de “pecador” e “criminoso”.

A passagem da Idade Média para a modernidade é marcada por grandes transformações. Não só a economia, a política, mas também a noção de sujeito muda drasticamente nessa nova ordem social. Se antes (na Idade Média), tínhamos a noção de pertencimento a uma comunidade (feudal, familiar, de artesãos, etc.) como aquilo que caracterizava e definia o sujeito, a partir do século XVIII, a noção de indivíduo, autônomo, livre, dotado de uma subjetividade privatizada (Figueiredo & Santi, 2006), marcará o conceito de homem moderno.

Este indivíduo, com vontades e ideias próprias, será fundamental para a consolidação e ascensão do então nascente capitalismo. É este novo homem que habitará a galeria das fábricas, trabalhando 12, ou até 16 horas por dia, dormirá em cubículos lotados ou habitações subterrâneas de um metro e meio de altura (Orwell, 2010). É este novo homem também, que será obrigado a abandonar antigas ocupações laborais (lavoura, manufaturas, etc.) para se espremer nas novas cidades, na busca por empregos nas recentes fábricas das cidades. Como

não há espaço para todos, muitos trabalhadores constituirão o exército de reserva de mão de obra, desempregados, habitando precariamente a periferia das cidades.

Nesse contexto, a ordenação e limpeza das cidades surgem como uma necessidade, característica marcantes da modernidade. Loucos, bêbados, prostitutas, vagabundos e todos aqueles que vivem à margem da nova ordem social burguesa são os alvos das nascentes estratégias de controle. Um novo tipo de marginalidade nasce associado ao novo modelo de produção, obrigando a invenção de alguns saberes e estabelecimentos que deem conta desses fenômenos. Manicômios e prisões são os principais representantes desse período.

A modernidade inaugura a era do domínio (ou aperfeiçoamento deste domínio) das energias humanas. O corpo dilacerado nas praças das cidades europeias não é mais tão vantajoso. A vingança operada pelo soberano já não assusta tanto a plateia. Pelo contrário, às vezes o condenado ganhava adeptos, que, indignados com tamanha crueldade, praguejavam contra os representantes do rei.

Se a Idade Média é marcada pelos castigos e suplícios em praça pública (Foucault, 2007), a Era Moderna, sobretudo a partir da Revolução Francesa, pressupõe a necessidade de uma legitimação jurídico-científica do controle exercido sobre os corpos. Segundo Foucault (1979), a Revolução Francesa lança os princípios de um Estado de direito no qual as pessoas, agora consideradas cidadãs, pactuam uma nova contratualidade. Nesse novo modelo de organização social o poder soberano, com sua incontestável autoridade sobre a vida de seus súditos, cede lugar a uma nova concepção de justiça que aliada às ciências (sobretudo medicina, psiquiatria), permite legitimar o controle exercido sobre a população (Pessoti, 1996). A punição, o sequestro de determinadas pessoas, continuam acontecendo, agora sob o respaldo científico dos especialistas. Além disso, o início das reflexões sobre os direitos humanos provoca algumas mudanças na forma como algumas pessoas devem ser castigadas. Temos assim, a partir do século XVIII, o encarceramento em massa, seja de loucos,

mendigos, prostitutas, criminosos e todos aqueles que colocavam em xeque o nascente modo de vida burguês.

Nesse campo de forças, cabe assinalar que “a intolerância é, portanto, a inclinação natural da prática moderna” (Bauman, 1999, p. 16). Intolerância para com a loucura, o crime, e todo tipo de fenômeno que colocava em xeque o modelo de organização social daquele momento. As instituições, saberes, estabelecimentos e práticas modernas surgem no sentido de legitimar essa intolerância, a favor da ordem e da administração do mundo. Administração que se dá pelo confinamento e pela violência, marcas da modernidade (Rocha, 2011).

Para atingir o controle social proposto na modernidade, não tínhamos apenas um dispositivo de poder centralizado na figura de uma única pessoa, um soberano, ou mesmo de um Estado. As estratégias de manutenção do instituído são múltiplas. Não apenas uma questão de superestrutura X infraestrutura, mas uma rede de poderes, mecanismos, técnicas e saberes que vão se constituindo nas adjacências do Estado, dando contornos as subjetividades, operando táticas de poder-saber. Nas palavras de Foucault (1972):

Nenhum saber se forma sem um sistema de comunicação, de registro, de acumulação, de deslocamento que, em si mesmo, é uma forma de poder ligado, tanto em sua existência como em seu funcionamento, às outras formas de poder. Em compensação, nenhum poder se exerce sem a extração, a apropriação, a distribuição ou a retenção de um saber. Nesse nível, não existe o conhecimento de um lado e a sociedade do outro, ou a ciência e o Estado, mas as formas fundamentais de “poder-saber”. (p. 2).

Tem início a Era da Governamentalidade. Apesar de termos registros mais antigos sobre a arte de governar, a partir do século XVIII essa ideia ganha força e importância, utilizando-se de estratégias diversas. Para Foucault (1979), a governamentalidade diz respeito ao conjunto de instituições, procedimentos, análises, cálculos e táticas, que permitem exercer uma forma de poder que tem por alvo a população, utilizando a economia política como

principal forma de saber, e os dispositivos de segurança enquanto principais instrumentos técnicos.

Segundo o autor, em todo o ocidente a supremacia deste tipo de poder sobre outros (soberania, disciplina, etc.), levou ao surgimento de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes (Foucault, 1979). Vivemos, portanto, desde o século XVIII, a ênfase em uma gestão populacional marcada pelo declínio da lei, e afirmação da norma enquanto elemento de controle dos comportamentos. Não se trata de gerir a população a nível global, mas “geri-la em profundidade, minuciosamente, no detalhe” (Foucault, 1979, p. 291).

Nessa direção, a articulação entre determinadas práticas e os agenciamentos de saber/poder que estas operam são o foco de análise de autores como Foucault, em um momento por ele denominado de sociedade disciplinar. As principais características da sociedade disciplinar seriam o confinamento em determinadas instituições, e o surgimento de determinados saberes, materializando um poder de controle sobre os corpos. Neste tópico, analisarei o surgimento e funcionamento da prisão, enquanto importante equipamento da sociedade disciplinar.

Com relação ao período anterior (sociedades de soberania), a sociedade disciplinar se distingue pela criação de mecanismos de restrição de espaço e tempo, e pela institucionalização do confinamento (Rocha, 2011), cujo maior exemplo é a prisão. Nesse sentido, os indivíduos devem passar por organizações de confinamento que impõem restrições a comportamentos (família, escola, quartel, fábrica, hospital, etc.). O objetivo aqui é gerir não só os corpos, mas as mentes dos indivíduos (idem). Vejamos então, como surge, e a importância que tem a prisão na sociedade disciplinar.