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O direito à privacidade, como todos os direitos fundamentais, está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, sendo esta considerada como o princípio dos princípios. A dignidade humana é considerada como um valor inerente ao ser humano, pois: “Já não se pode mais falar dela como se fora apenas um princípio. Os princípios têm sido, infelizmente – conquanto erigidos em princípios –, arrostados pela política irresponsável das minoras contaminadas pelo desapego ético”. (LUCCA, 2003, p. 129)

Consoante se extrai das lições de Kant, o homem é um fim em si mesmo, não um meio para atingir algo, tendo, portanto, dignidade: “No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade”. (KANT, 2011, p. 65)

Das lições de Vladmir Silveira extrai-se um conceito amplo e claro de dignidade humana:

A dignidade humana parece ser o único conceito reconhecido de maneira universal e incontroversa como fundamento dos direitos humanos nos textos jurídicos internacionais. [...] Pode-se dizer, portanto, que a ideia de dignidade é apriorística na teoria e na filosofia dos direitos humanos – ou seja, é seu antecedente lógico. A dignidade é, em síntese, um bem jurídico universal prometido à pessoa, em âmbito doméstico ou internacional, a ponto de sua simples pronúncia evocar em todos uma ideia de força e respeitabilidade. (SILVEIRA; ROCASOLANO, 2010, p. 104-105)

Percebe-se, portanto, que a ideia de privacidade tem por fundamento a dignidade da pessoa humana que, em última análise, é um valor inerente ao ser humano, sendo inafastável nas relações jurídicas, especialmente quando diante de direitos fundamentais.

Pode-se verificar, também, que o direito fundamental à privacidade insere-se no rol de direitos fundamentais de primeira geração, tendo em vista revestir-se de um caráter negativo, em princípio, impondo uma abstenção em relação ao indivíduo, titular do direito. Da mesma forma, o direito à privacidade, por ser direito fundamental e estar inserido no rol do artigo 5° da Constituição Federal, mais precisamente no inciso X30, goza de proteção contra leis ou atos normativos “tendentes a abolir” tal direito, posto ser cláusula pétrea31.

Com efeito, necessário se faz conceituar a privacidade, podendo-se verificar na doutrina a dificuldade em sua conceituação. A legislação brasileira não traz, quer na Constituição Federal, quer no Código Civil, a palavra privacidade, mas a proteção à vida privada, à honra, à imagem. Tornou-se privacidade uma “palavra-camaleão”, que serve para definir um amplo espectro de interesses, desde informações pessoais até autonomia reprodutiva (LEONARDI, 2012).

Quando se verificam textos relativos à privacidade, podem ser identificadas diversas expressões, como direito ao recato, ao sigilo, ao segredo, à reserva etc. Todos esses termos, verificando-se o teor e o contexto, referem-se à privacidade, tanto na doutrina pátria quanto na doutrina estrangeira.32 (PEZZI, 2007)

Historicamente, verifica-se que a proteção ao direito à honra (que abarcava a privacidade) surgiu no Direito Romano, com a proteção por meio de ação privada no âmbito civil, passando posteriormente à proteção criminal, dado o interesse público relacionado, sendo que a ideia de honra no Direito Romano, como crime de injuria, possuía três conceitos interligados: a própria dignidade, a estima ou boa opinião e a boa reputação. (GUERRA, 2007).

Modernamente, a proteção à privacidade foi colocada em esfera internacional pela primeira vez em 1948, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, estabelecendo a proteção à vida privada e familiar (SAMPAIO, 1998). No mesmo ano, a

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Artigo 5°, X: “são invioláveis a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem das pessoas, sendo assegurada a elas o direito à indenização pelo dano material e/ou por dano moral decorrente da violação desses direitos”. (BRASIL, 1988)

31

Nos termos do artigo 60, § 4°, IV, da Constituição Federal: “A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: [...] § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV - os direitos e garantias individuais”. (BRASIL, 1988)

32

“A privacy norte-americana, o droit au secret de la vie privée ou simplesmente la protection de la vie privée na França; o diritto alla riservatezza (ou a segretezza) na Itália; a reserva da intimidade da vida privada (Portugal); o Derecho a la intimidad na Espanha; a noção da Die Privatshäre, que divide a autonomia individual e a vida social, presente na doutrina Alemã; a integritet da Suécia, que compreende a noção pela qual as pessoas têm direito de serem julgadas de acordo com um perfil completo e fiel de suas personalidades; são algumas das designações utilizadas para se referir ao complexo de interesses que remetem ao termo privacidade.” (DONEDA, 2006, p. 101-102)

Declaração Universal dos Direitos do Homem estabeleceu a proteção à vida privada, além da proteção à honra, à família, ao domicílio contra ataques ou interferências arbitrárias. Em 1969, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – o Pacto de São José da Costa Rita – também contemplou a previsão à vida privada (GUERRA, 2007).

No Brasil, entretanto, a primeira menção legislativa sobre a proteção à vida privada e à intimidade apenas ocorreu em âmbito constitucional em 1988, no artigo 5°, X, como visto alhures, que estabelece a inviolabilidade à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, assegurado o direito à indenização pelos danos decorrentes de sua violação (BRASIL, 1988). Desde então, a privacidade passou a ser protegida como direito fundamental. Todavia, a doutrina e a jurisprudência, muito antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, em que pese a ausência de legislação, reconheciam a privacidade como sendo um direito da personalidade, porém com um nítido caráter individualista. (LEONARDI, 2012)

Sobre a conceituação de privacidade, portanto, pode-se dizer que o seu entendimento varia de acordo com o sentido relativo e subjetivo de espaço e tempo, sendo que o legislador distinguiu vida privada e intimidade, porém sabe-se que a intimidade do cidadão é a sua vida privada, no recesso de seu lar. (CRETELLA JUNIOR, 1989)

Por isso a dificuldade em se conceituar o instituto. Alguns autores diferenciam, no entanto, a vida privada e a intimidade, tendo a intimidade um caráter mais restrito do que a vida privada. A intimidade, portanto, possui um núcleo mais restrito, uma privacidade qualificada, numa esfera mais profunda, sendo vedada a intromissão, tanto pelo Poder Público quanto pela sociedade, sendo inviolável se assim o indivíduo desejar. (SERRANO, 1997)

Entretanto, a distinção entre intimidade e privacidade torna-se, na visão de alguns doutrinadores, uma discussão meramente acadêmica, posto que o fato de o dispositivo constitucional ser extremamente abrangente pode levar, num primeiro momento, ao entendimento de que tratam-se de direitos diversos. Porém, essa parcela da doutrina afirma que a Constituição foi redundante, não havendo necessidade de distinção entre um e outro conceito. (LEONARDI, 2012)

Em síntese, o emprego dessas expressões – intimidade e vida privada – tem como finalidade impedir que divisões conceituais formuladas pela doutrina pudessem fazer escapar do âmbito da proteção constitucional “fração ou terreno demarcado da vida das pessoas”, possibilitando assim a mais ampla tutela, independentemente da distinção entre os conceitos de intimidade e vida privada. (LEONARDI, 2012, p. 83)

Sem a preocupação de distinguir vida privada e intimidade, posto que parece ser mais adequada a posição de que a discussão tem importância acadêmica e não prática – e ambos os institutos pertencerem aos direitos da personalidade –, importante destacar que a inviolabilidade da privacidade compreende o seu direito ao recato, ao isolamento, no convívio com a própria individualidade, como salienta Costa Junior: “Na vida privada, cogita-se da inviolabilidade da personalidade dentro de seu retiro, em seu mundo particular, à margem da vida exterior. Trata-se do cidadão na intimidade ou no recato, em seu isolamento moral, convivendo com a própria individualidade.” (COSTA JUNIOR, 1995, p. 221)

Desta forma, independente de se adotar uma distinção entre vida privada e intimidade, fato é que a privacidade – e tudo que a expressão possa abranger na esfera jurídica – é um direito fundamental, não sendo concebida a sua injusta violação. Entretanto, a facilidade com que a privacidade pode ser violada nos dias de hoje, especialmente no espaço virtual, de certa forma, banaliza a necessidade de proteção, o que também não se pode admitir. Essa questão será analisada no item 2.2 desta pesquisa.