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A Probabilidade Propensista

No documento Lógica, probabilidade e consequência (páginas 32-38)

Nesta ´ultima se¸c˜ao, voltamos a expor uma interpreta¸c˜ao objetiva da Teoria de Proba- bilidades. A interpreta¸c˜ao propensista surge com o fil´osofo da ciˆencia K. R. Popper com objetivo de tratar o problema do caso ´unico enfrentado pelas interpreta¸c˜oes objetivas, como comentado na Se¸c˜ao 1.3.

A primeira interpreta¸c˜ao defendida por Popper, em (Pop35), foi uma vers˜ao fre- quentista abandonada posteriormente em favor de sua interpreta¸c˜ao propensista. Mas j´a nesta primeira empreitada, Popper deixa expl´ıcita sua preocupa¸c˜ao em propor uma interpreta¸c˜ao objetiva que trate de casos ´unicos, diferente da interpreta¸c˜ao de Von Mises, por necessidade da f´ısica moderna.

Ideas involving the theory of probability play a decisive part in modern physics. Yet we still lack a satisfactory, consistent definition of probability; or, what amounts to much the same, we still lack a satisfactory axiomatic system for the calculus of probability.

(Pop59a, tradu¸c˜ao para o inglˆes de (Pop35))

My hope is that these investigations will help to relieve the present unsatis- factory situation in which physicists make much use of probabilities without being able to say, consistently, what they mean by ‘probability’. (Pop59a)

H´a uma classe extensa e difusa de propostas propensistas de interpreta¸c˜oes, por´em vamos nos ater `a proposta de Popper, que tamb´em sofreu mudan¸cas de acordo com o amadurecimento de suas ideias. Popper introduz a interpreta¸c˜ao propensista em (Pop57) e a desenvolve em escritos sequentes (Pop59b; Pop83; Pop90).

Para resolver a quest˜ao da probabilidade objetiva do caso ´unico, Popper faz uma “pequena” mudan¸ca, podendo at´e ser entendida como uma restri¸c˜ao, no papel que o conceito de coletivo de Von Mises desempenha na defini¸c˜ao das probabilidades. Mas

antes de introduzir a ideia de propens˜ao, vejamos um exemplo de coletivo em que a teoria de Von Mises descarta a probabilidade do caso ´unico. Imagine um coletivo formado por homens brasileiros. A probabilidade do atributo “morrer antes dos 41 anos” pode ser aproximada pela frequˆencia relativa deste atributo em rela¸c˜ao ao coletivo estabelecido. Por´em, a probabilidade de um certo homem em particular nesta sequˆencia viver mais de 41 anos n˜ao pode ser calculada.

We can say nothing about the probability of death of an individual, even if we know his condition of life and health in detail. The phrase ‘probability of death’, when it refers to a single person has no meaning at all for us. This is one of the most important consequences of our definition of probability. (VM57)

Popper chega a sugerir que esta probabilidade ´e a pr´opria frequˆencia relativa do atri- buto no coletivo, mas ele mesmo, mais tarde, contra-argumenta esta tese (Pop57; Pop59b). Estas investiga¸c˜oes levam Popper a associar valores de probabilidades partindo, ao inv´es de coletivos, de condi¸c˜oes geradoras de experimentos repetidos.

All this means that the frequency theorist is forced to introduce a modifi- cation of his theory - apparently a very slight one. He will now say that an admissible sequence of events (a reference sequence, a ‘collective’) must always be a sequence of repeated experiments. Or more generally, he will say that admissible sequences must be either virtual or actual sequences which are characterized by a set of generating conditions - by a set of conditions whose repeated realisation produces the elements of the sequences. (Pop59b)

E, ent˜ao, em sua primeira formula¸c˜ao da interpreta¸c˜ao propensista, Popper asserta que as condi¸c˜oes geradoras s˜ao dotadas de uma tendˆencia, uma disposi¸c˜ao, uma propens˜ao a gerar sequˆencias cujas frequˆencias relativas s˜ao probabilidades se o experimento for repetido segundo estas condi¸c˜oes.

[...] we have to visualise the conditions as endowed with a tendency or dis- position, or propensity, to produce sequences whose frequencies are equal to the probabilities; which is precisely what the propensity interpretation asserts. (Pop59b)

Com a vis˜ao de Popper n˜ao ´e mais necess´ario, para falar de probabilidades objeti- vamente, que um experimento seja repetido v´arias vezes. Mas ´e poss´ıvel, por exemplo,

postular probabilidades sobre condi¸c˜oes geradoras que sejam realizadas, de fato, uma ´

unica vez.

O chamado problema da classe de referˆencia, abordado por A. J. Ayer em (Aye63), afeta esta interpreta¸c˜ao. Ao estabelecer probabilidades a partir de condi¸c˜oes geradoras, n˜ao relacionamos valores de probabilidade a um evento em si, mas `as condi¸c˜oes geradoras de um experimento das quais o experimento ´e somente uma instˆancia.

Desta forma, ao tentar estabelecer a probabilidade de um homem particular morrer antes de completar 41 anos, temos o problema de definir as condi¸c˜oes geradoras que definem este homem particular como: “ser homem”, ou “ser homem brasileiro” ou, mais particularmente, “ser homem brasileiro que fuma dois ma¸cos de cigarro diariamente”.

Conforme Popper desenvolve sua interpreta¸c˜ao propensista, ele muda o significado de propens˜ao como a propriedade de condi¸c˜oes geradoras a gerar frequˆencias relativas para a propriedade de uma situa¸c˜ao f´ısica em um determinado momento.

[...] propensities in physics are properties of the whole physical situation and sometimes of the particular way in which a situation changes. (Pop90)

D. W. Miller, que tamb´em desenvolve este posicionamento tardio de Popper (Mil94; Mil96), coloca sobre a transi¸c˜ao:

In the propensity interpretation, the probability of an outcome is not a mea- sure of any frequency, but (as will be explained) a measure of the inclination of the current state of affairs to realize that outcome. (Mil94)

Como Gillies critica (Gil00, 127), nesta nova vers˜ao propensista n˜ao ´e poss´ıvel testar uma associa¸c˜ao de propens˜ao a um evento devido o car´ater ´unico e n˜ao repet´ıvel de um estado f´ısico, diferente da primeira vers˜ao em que a propens˜ao ´e relacionada `as frequˆencias relativas. Por´em, o pr´oprio Miller admite esta limita¸c˜ao.

The propensity interpretation of probability is inescapably metaphysical, not only because many propensities are postulated that are not open to empirical evaluation [...] (Mil96)

Diferente da maioria dos te´oricos vistos neste cap´ıtulo, Popper n˜ao se preocupa em que sua interpreta¸c˜ao valide o sistema de Kolmogorov. Pelo, contr´ario, Popper axioma- tizou v´arios c´alculos de probabilidade em seu trabalho. Miller destaca em (Mil) algumas axiom´aticas alternativas `a de Kolmogorov para a Teoria de Probabilidades como outras

das contribui¸c˜oes de Popper no estudo das probabilidades. Alguns destes sistemas jun- tamente com outros propostos por Popper e Miller em conjunto, est˜ao sumarizados em (Mil04).

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E interessante notar, baseado nos sistemas propostos por Popper, sua preferˆencia em tomar como termo primitivo probabilidades condicionais ao inv´es de probabilidades absolutas. Tamb´em ´e interessante Popper entender que um sistema axiom´atico deve ser satisfeito por todas as interpreta¸c˜oes propostas. Por isto, em (Pop59b), ele defende que em um desenvolvimento formal, n˜ao se deve assumir nada sobre a natureza dos objetos aos quais s˜ao associados valores de probabilidades. Neste contexto, Popper critica o c´alculo de Kolmogorov por assumir que estes objetos sejam conjuntos.

Finalizamos nossa breve introdu¸c˜ao `a Teoria de Probabilidades e `as suas principais interpreta¸c˜oes. No pr´oximo cap´ıtulo, seguimos introduzindo a semˆantica probabil´ıstica e j´a come¸camos a investigar rela¸c˜oes de consequˆencia, tanto cl´assicas como probabil´ısticas, a partir desta semˆantica.

Semˆantica Probabil´ıstica e

Propaga¸c˜ao de Incerteza

Neste cap´ıtulo, vamos aprofundar a discuss˜ao a respeito do racioc´ınio sob incerteza. Partindo da l´ogica proposicional cl´assica, da linguagem proposicional e da semˆantica bi- valorada, definimos uma semˆantica probabil´ıstica e estudamos como as incertezas sobre senten¸cas, representadas pelas probabilidades associadas a elas, se propagam das pre- missas para a conclus˜ao em uma inferˆencia. Para isto, vamos introduzir a Teoria de Probabilidades partindo da linguagem proposicional.

2.1

Racioc´ınio sob incerteza

O Sistema de L´ogica Proposicional Cl´assica (LPC) ´e uma poderosa ferramenta de inferˆencia que tem a pretens˜ao de descrever, segundo alguns, ou normatizar, segundo outros, o racioc´ınio comum. Seu estudo pode ser motivado por diversas aplica¸c˜oes que chegam at´e aos campos mais pr´aticos, como, por exemplo, o estudo de circuitos el´etricos. Por´em, h´a uma caracter´ıstica de LPC (e da l´ogica cl´assica como um todo) que pode nos motivar a analisar sua linguagem de um ponto de vista probabil´ıstico: a idealiza¸c˜ao da certeza absoluta sobre o valor de verdade das senten¸cas.

O c´etico D. Hume chega ao ponto de n˜ao aceitar a possibilidade de certeza racional sobre quest˜oes que ainda se apresentam no futuro (Hum88). Por´em, assumindo uma postura n˜ao c´etica quanto ao futuro, podemos aceitar algum grau de certeza sobre tais fatos. Como, por exemplo, quando, com base nas experiˆencias de vida, olhamos de manh˜a para o c´eu nublado e nos atentamos para uma sens´ıvel queda de temperatura e, por isso, conclu´ımos que existe uma grande chance de chover durante o dia. Mesmo que n˜ao tenhamos certeza absoluta sobre este fato, este alto grau de certeza pode fazer a diferen¸ca entre levarmos ou n˜ao um guarda-chuvas ao sairmos de casa pela manh˜a. E, mesmo que n˜ao chova, muitos v˜ao concordar que esta decis˜ao foi acertada. Afinal de contas, um

homem prevenido vale por dois!

E j´a que parece que a an´alise das senten¸cas no dia-a-dia ´e feita atribuindo-lhes graus de certeza, nos atentamos ao fato de que estas inferˆencias n˜ao tˆem incidˆencia sobre senten¸cas com valor de verdade bem determinado, mas sobre senten¸cas que possuem certo grau de certeza. Assim, parece natural que concordemos que a seguinte inferˆencia ´e bastante vi´avel e ´util, mesmo sem termos certeza sobre a verdade das premissas:

• Premissa 1. Se houver, pela manh˜a, presen¸ca de grandes nuvens tipo cumulus, chover´a durante o dia;

• Premissa 2. H´a presen¸ca de grandes nuvens tipo cumulus esta manh˜a; • Conclus˜ao. Chover´a durante o dia.

Por´em, apesar de natural e usual, ao abrirmos m˜ao da idealiza¸c˜ao da l´ogica cl´assica para podermos descrever os fenˆomenos do racioc´ınio do dia-a-dia, abrimos caminho para que poss´ıveis problemas apare¸cam, como podemos notar no Paradoxo da Loteria (Kyb61). Imagine uma loteria justa com mil bilhetes numerados - 1, 2, 3, . . . , 1000 - em que um destes bilhetes ser´a sorteado. As chances de uma proposi¸c˜ao do tipo “O bilhete de n´umero 484 n˜ao ser´a sorteado” ser verdadeira ´e de 999 : 1 (ou 1000999). Com chances t˜ao grandes ´e natural tomarmos esta senten¸ca por premissa em alguma inferˆencia. E ent˜ao, podemos tomar por premissa qualquer senten¸ca do tipo:

An: “O bilhete de n´umero n n˜ao ser´a sorteado.” n = 1, 2, 3, . . . , 1000)

Podemos, portanto, tomar todas estas mil senten¸cas (A1, . . . , A1000) como premissas e

inferirmos, por LPC, a senten¸ca

A1∧ · · · ∧ A1000,

que juntamente com o fato de que um dos bilhetes ser´a sorteado, gera uma contradi¸c˜ao. Este paradoxo ´e creditado a assumirmos trˆes princ´ıpios do racioc´ınio (Kva98):

• Existe um limiar da certeza a partir do qual ´e racional aceitar uma senten¸ca como justificada;

• Um conjunto de senten¸cas aceitas como justificadas ´e dedutivamente fechado. Ou seja, este conjunto cont´em todas as dedu¸c˜oes feitas a partir de senten¸cas dele; • N˜ao ´e poss´ıvel, para o mesmo indiv´ıduo ao mesmo tempo, aceitar como justificadas

As v´arias tentativas de resolu¸c˜ao do Paradoxo da Loteria atacam pelo menos um destes princ´ıpios. Sobre o primeiro deles, conhecido como aceita¸c˜ao racional, j´a nos posicionamos h´a pouco que ´e completamente poss´ıvel e at´e necess´ario no dia-a-dia. As discuss˜oes, no entanto, v˜ao al´em disto e procuram sistematizar um processo que legitime a aceita¸c˜ao, geralmente com uso de probabilidades, como em (Wil96). Nesta discuss˜ao n˜ao ´e incomum o embate em favor de uma interpreta¸c˜ao espec´ıfica de probabilidade, que melhor justifique a aceita¸c˜ao racional. Inclusive, o objetivo original de Kyburg ao apresentar o paradoxo era propor uma teoria da aceita¸c˜ao racional que rejeitasse o Bayesianismo (uma interpreta¸c˜ao subjetiva das probabilidades) (Whe07).

A solu¸c˜ao do paradoxo que apresentaremos no decorrer deste cap´ıtulo ´e proposta por Adams em (Ada98) e, no nosso julgamento, ela n˜ao se d´a por meio da discuss˜ao da aceita¸c˜ao racional. Entendemos que ´e racional aceitar uma senten¸ca com alto grau de cer- teza (no caso, alta probabilidade) e, no aparato formal que desenvolveremos, ser´a poss´ıvel analisar como o grau de certeza que temos sobre premissas interfere nas inferˆencias.

Entendemos, tamb´em, que esta ferramenta independe da posi¸c˜ao filos´ofica adotada so- bre probabilidades. Certamente, h´a contextos em que uma interpreta¸c˜ao espec´ıfica parece mais natural que outra, por´em, n˜ao defendemos nenhuma interpreta¸c˜ao em particular. A ´

unica tese que assumimos ´e a de que podemos representar graus de certeza ou incerteza atrav´es de probabilidades.

De acordo com a abordagem que exploraremos, no Paradoxo da Loteria, apesar de darmos para cada premissa um grau de certeza muito grande, acumulamos muitas pre- missas com um pequeno grau de incerteza, o que leva, como veremos, a n˜ao podermos ter certeza alguma sobre a conclus˜ao. Ent˜ao, nos parece que a solu¸c˜ao de Adams est´a relacionada a uma nega¸c˜ao do segundo princ´ıpio colocado de modo que, ao inv´es de sim- plesmente aplicar a inferˆencia cl´assica sobre as premissas justificadas, devemos estudar como as probabilidades delas se propagam para a conclus˜ao atrav´es da inferˆencia.

Com o intuito de modelar a incerteza, abandonamos os valores de verdade em favor das probabilidades para as senten¸cas da linguagem de LPC e introduzimos o que chamamos de semˆantica probabil´ıstica, como faremos nas pr´oximas se¸c˜oes.

No documento Lógica, probabilidade e consequência (páginas 32-38)