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A problemática da tradução intercultural e da tradução

No documento Estudos da Língua Brasileira de Sinais III (páginas 152-159)

Tradução cultural: performance do poema Javetu em libras, português e espanhol

6.2 A problemática da tradução intercultural e da tradução

de poesia

Para Pavis (2008, p. 125), a tradução teatral é um ato hermenêutico, ou seja, é preciso que se questione o texto a partir da cultura/língua-alvo e que o tradutor se aproprie dele. A tradução dramatúrgica é uma adaptação e um comentário fornecendo informações, em textos e meios cênicos, para que o pú- blico compreenda de forma imediata e clara a tradução. É necessária adequa- ção convincente do gesto e do discurso (língua-corpo e verbo-corpo), pois cada cultura aprecia e valoriza um ritmo, e também depende de um público e da sua facilidade de medir o impacto emocional do texto.  

Ao traduzir um poema escrito em Guarani/Espanhol, há que se levar em conta o significado cultural do texto original que, trazido para a cultura e língua- -alvo não faria sentido ou pouco comunicaria. Isto porque, segundo Benjamin, “nenhuma tradução será possível se aspirar, como se fosse a sua última essência, à semelhança com o original” (2008, p. 4). Sendo assim, para a língua-alvo, as questões políticas da comunidade surda frente à comunidade ouvinte foram tra- zidas à tona, traçando um paralelo das reivindicações da comunidade surda com as lutas dos índios guaranis pelo reconhecimento de sua língua, de sua história, de sua cultura.

Nesse sentido, Pavis (2008, p. 146) cita algumas atitudes tomadas pelos tradutores, frente à cultura: não adaptar à cultura-alvo, ou seja, ao querer resti- tuir muito da cultura-fonte, esta se torna ilegível; adaptação total à cultura-alvo, de forma a não se reconhecer mais de que cultura vem; e transigir entre as duas culturas, uma posição intermediária que consiste na tradução como um cor- po condutor entre duas culturas, respeitando a proximidade e o afastamento. Na tradução do poema, buscou-se tomar a posição intermediária, procuran- do manter a intenção do texto guarani/espanhol, ao mesmo tempo em que foi adaptado para a realidade social das comunidades surda e ouvinte.

Outra questão que se levanta na tradução poética é sobre a (in)traduzibi- lidade da poesia, principalmente pela existência de cinco mitos em torno desta tarefa (Weininger, 2012): o mito do autor genial; o mito da intenção do autor; o mito do significado do texto original; o mito do tradutor; o mito da tradução correta.

[...] o autor é o produto de uma constelação socioeconômico e histórico- -política. O ‘seu’ texto é fruto de uma intensa intertextualidade e de in- teração deste autor com todos os sistemas nos quais está inserido, entre eles, a língua em que escreve” (Weininger, 2012, p. 194).

Isto leva ao ponto sobre a intenção do autor, mas “[...] nunca se poderá saber quais realmente eram suas verdadeiras intenções ao escrever um texto ou uma frase ou um verso num poema, nem mesmo quando o próprio autor se pronuncia explicitamente sobre elas” (Weininger, 2012, p. 196). Há uma máxima na tradução de que se devem traduzir as ideias, não as palavras do texto original, porém sabe-se que a intenção do autor não é clara.

O terceiro mito é do significado do texto original, mas o significado muda de acordo com o contexto, com a situação de recepção. Desta forma,

Um texto normalmente pode e deve ser lido e interpretado de muitas formas diferentes, não apenas ao longo dos tempos e através de culturas mais ou menos distantes. Via de regra, cada leitor, mesmo dentro da lín- gua e cultura original, tem a sua interpretação pessoal de um texto [...] (Weininger, 2012, p. 198).

O mito do tradutor varia entre o tradutor ideal e o tradutor real. O tradu- tor ideal é poliglota e conhecedor profundo tanto das culturas fonte quanto alvo. Já o tradutor real seria como um “robô subalterno”. Mas, segundo Weininger (2012, p. 200), nenhuma das visões procede, pois traduzir poesia é tanto uma arte quanto uma técnica e ambas as habilidades devem ser aperfeiçoadas.

A tradução correta também não existe, pois há muitas traduções possí- veis. O que deve estar claro é que as decisões tomadas acarretam ganhos e perdas (Weininger, 2012, p. 200).

Esses cinco mitos não impediram a traduzibilidade do poema, pois se teve em conta, em primeiro lugar, que o produto final da tradução era um tex- to visual, gestual e verbal, não um poema escrito. Há questões próprias da po- esia escrita, como sonoridade e métrica, que não encontram um equivalente totalmente semelhante nas línguas de sinais. Isto se dá porque elas são línguas visuo-gestuais, sem registro escrito. Com o advento das tecnologias, as línguas de sinais tiveram suas mais diversas manifestações culturais – histórias, piadas, poemas etc. – registradas em vídeo. Porém, para a tradução do poema Javetu/ Garrapata para a Libras levou-se em conta o caráter performático da tradução teatral, ou seja, a performance é detentora de um caráter efêmero: uma ação que desaparece porque nenhuma forma de documentação ou reprodução captura exatamente o que se passa ao vivo (Phelan 1993 apud Taylor, 2003, p. 19).

Quanto ao sentido original do poema original Javetu/Garrapata, ele evo- ca situações de exploração cultural, traduzidas para a Libras, de forma a mostrar a história de rejeição das línguas de sinais e imposição da língua oral pela comu- nidade ouvinte. Dessa forma, buscou-se garantir a proximidade e o afastamento implícitos na tradução cultural. Para Pym (2010),   a tradução cultural é uma atividade geral de comunicação entre diferentes grupos culturais, ou seja, não discute textos e sim utiliza a tradução como metáfora para explicar os processos permeados pelas atividades humanas.

A realidade dos surdos, trazida para a tradução é a de que, a partir do Congresso de Milão, em 1880 – no qual foi imposto o método oralista – fo- ram proibidos de usar as línguas de sinais nas escolas. Durante anos, os surdos continuaram usando secretamente as línguas de sinais até que se alcançasse sua aceitação. A Libras foi reconhecida como língua oficial da comunidade surda brasileira somente em 2002 (Brasil, 2002).

Na tradução realizada, o carrapato é o outro da cultura surda, ou seja, o ouvinte que impôs a oralização aos surdos. A questão do implante coclear, vista pela comunidade surda como uma medicalização da surdez, tirando a possibi- lidade de a pessoa surda ter acesso a sua cultura e sua língua, também é trazida para a tradução em Libras.

Niranjana (1992), na introdução de sua tese, discute as relações de poder e afirma que dentro dos estudos culturais, só compreenderemos uma tradução analisando o contexto. Desconstruindo a linguagem do colonialismo, a tradução será relevante, pois, segundo a autora, um dos pressupostos do discurso colonial é mostrar o sujeito colonizado como imutável. A busca de grupos sociais “por uma voz e perfil próprios para sua expressão (tanto política como estética)” (Lo- pes, 2003, p. 9), é refletida na performance em Libras do poema Javetu/Garrapa- ta (http://www.youtube.com/watch?v=vGJ3bPTLPrg).

Desta forma, os sinais “sugar”, “explorar”, “oralizar”, “cultura”, “implante coclear” foram formados a partir da combinação do movimento das mãos com um determinado formato (Figura 1), em uma parte do corpo ou no espaço em frente ao corpo. Essas configurações de mãos utilizadas, então, possuem rela- ções sociais, históricas, educacionais, linguísticas na comunidade surda e lhe produzem fortes significações. O uso desses recursos – configurações de mãos e o uso de expressões faciais e corporais – vão ao encontro dos ensinamentos de Pavis, de que para efetuar a tradução é necessário fazer-se uma imagem visual e gestual do verbo-corpo da língua e cultura-fonte para tentar apropriar-se no verbo-corpo da língua e cultura-alvo.

Figura 6.1 – Configurações de mãos 31 e 29a em Libras

Fonte: INES, Ministério da Educação (s.a.) Configurações de mãos. Disponível em:

<http://dieselpardal.blogspot.com.br/2011/08/problema-de-quantidade-de-configuracao.html> Acesso em: 28/10/2013

Figura 6.2 – Sinais em Libras para “sugar”, “explorar”, “oralizar”, “cultura”, “implante coclear” Fonte: Do autor.

6.3 Performance

A apresentação do poema Javetu/Garrapata teve a participação de três performers: duas ouvintes e um surdo, autores deste trabalho. A performance, assim, buscou contemplar as comunidades surda e ouvinte. A primeira produziu oralmente o poema, no original em espanhol, enquanto a segunda fez a leitu- ra de palavras-chave do poema traduzidas ao Português. Ao mesmo tempo, o performer surdo foi responsável pela mediação intertextual e intercultural para a Libras67. A comunidade surda tem a Libras como a maior representação de

sua identidade e é uma língua visuo-espacial, que utiliza o corpo como meio de

67 Veja o vídeo com o texto em libras, título “Carrapato” em: <http://www.youtube.com/watch?v=

comunicação e expressão, reiterando Pavis: a “comunicação intercultural serve- -se antes de mais nada do corpo e do gesto para evocar as ligações e as diferen- ças” (PAVIS, 2008, p. 151).

O ator/performer é um tradutor, pois, por meio de sua língua, de seus gestos, comunica culturas. Para os estudos da performance, este uso do corpo contribui para a construção de identidades:

O uso de linguagens corporais, técnicas retóricas, expressões faciais, ma- nipulação de emoções, regras de procedimento coletivo, decoração visual do corpo e do espaço – só para citar alguns exemplos performáticos – em manifestações públicas contribuem para a construção de identidades co- letivas que ao mesmo tempo refletem e influenciam o curso dos eventos (Lopes, 2003, p. 9).

Essa particularidade foi explorada ao utilizar o conceito de verbo-corpo de Pavis. O performer, que possui o verbo no corpo, faz uma aliança do texto pronunciado e dos gestos (vocais ou físicos) que acompanham a sua enunciação. O verbo-corpo é, ao mesmo tempo, uma ação falada e uma palavra em ação. Em língua de sinais, a “fala” e o gesto fundem-se em um só meio de expressão, o corpo. O público ouvinte depara-se com uma língua rica corporalmente e vi- sualmente, compreendendo o manifesto dos surdos em defesa de sua língua e sua cultura, por meio da expressão do performer surdo e das traduções orais em Espanhol e Português. Assim, o diálogo entre culturas é evidente e possui um significado social.

A performance é produzida em um tempo da história e o corpo carrega, portanto, uma vivência de seu grupo social. Turner (1982 apud Taylor, 2003, p. 19) propôs que os povos poderiam compreender-se por meio de suas perfor- mances. Isto porque as performances, segundo Turner, revelam o caráter mais profundo, genuíno e individual de uma cultura.

6.4 Conclusão

A performance em Português, Espanhol e Libras do poema Javetu/Garrapata possibilitou dialogar com algumas teorias e trajetórias da tradução cultural, não só pelo fato de esta ser uma atividade geral de comunicação entre diferentes grupos culturais ou por servir de metáfora para explicar alguns processos permeados pe- las atividades humanas, mas principalmente porque a performance é uma tradução cultural, uma vez que, por meio dela, comunicam-se e confrontam-se culturas.

A tradução cultural ocorre no momento hermenêutico que o espectador questiona a cultura-fonte, por meio do poema Javetu/Garrapata, e, em seguida, se apropria dela, identificando a crítica sobre aquele que explora o outro através da metáfora do carrapato. Este inseto que suga pode ser simbólico tanto para a cultura indígena – no caso a guarani, como para a cultura surda: os brancos/ ouvintes usam a cultura, a língua indígena/LIBRAS como um dado deles.

O tradutor cultural é, principalmente, o ator/performer pois, por meio de sua língua e de sua gestualidade, comunica culturas, usando o corpo, o gesto “para evocar as ligações e as diferenças” (Pavis, 2008, p. 151). O performer traz à tona questões políticas da comunidade surda frente à comunidade ouvinte, por meio, por exemplo, das configurações de mãos, já que os sinais de “sugar”, “ex- plorar”, “oralizar”, “cultura”, “implante coclear” possuem relações sociais, históri- cas, educacionais, linguísticas na comunidade surda e lhe produzem fortes sig- nificações. O espectador, surdo ou ouvinte, dialoga com a realidade das línguas minoritárias e, consequentemente, das comunidades usuárias dessas línguas.

Referências

BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor. Tradução de Fernando Camacho. Belo Horizonte: UFMG, 2008.

BRASIL. LEI N. 10.436 de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Brasília, DF: Senado Federal, 2002. DELGADO, S. (Org.). Ñe’e rendy: Poesía guaraní contemporánea. Asunción: Atlas, grupo editorial, 2011.

LOPES, A. H. Performance e história (ou como a onça, de um salto, foi ao Rio do princípio do século e ainda voltou para contar história). In: O Percevejo, ano 11, n. 12. 2003, p. 5-16.

NIRANJANA, T. Siting translation: history, post-structuralism, and the colonial context. Berkeley: University of California Press, 1992.

PAVIS, P. O teatro no cruzamento de culturas. Tradução de Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008.

TAYLOR, Diana. Hacia uma definición de performance. In: O Percevejo, ano 11, n. 12. 2003, p. 17-24.

WEININGER, M. J. Algumas reflexões inevitáveis sobre a tradução de poesia. In: Blume, Rosvitha F. / Weininger, Markus J. (Orgs.). Seis décadas de poesia alemã: do pós-guerra ao início do século XXI. Florianópolis: EdUFSC, 2012, p. 193-216.

ANEXO A

No documento Estudos da Língua Brasileira de Sinais III (páginas 152-159)