• Nenhum resultado encontrado

Elementos prosódicos e identidade linguística em cada situação de comunicação

No documento Estudos da Língua Brasileira de Sinais III (páginas 84-89)

Markus J Weininger

3.4 Elementos prosódicos e identidade linguística em cada situação de comunicação

O conceito de prosódia como estrutura suprassegmental (ou seja, que atravessa os limites dos segmentos de análise linguística, tais como fonema, morfema, sílaba, item lexical, constituintes, frase, oração e sentença) que ser- ve ao mesmo tempo a fins sintáticos, semânticos e pragmáticos foi introduzido em 1948 pelo linguista inglês John Rupert Firth, analisando a estrutura de dife- rentes línguas na tradição de Saussure e Hjelmslev38. Existem muitas definições

diferentes do conceito de prosódia39, algumas mais atreladas à sintaxe, outras à

fonética, e outras ainda a aspectos pragmáticos. Para os fins desse artigo, faz-se necessário elaborar uma descrição sucinta da abrangência desse conceito com alguns exemplos.

Os principais recursos prosódicos nas línguas orais são (alterações de) velocidade de articulação (ppm), volume (dB), frequência (Hz), acento/ênfase

37 Leeson (2005, p. 270).

38 Veja Ogden (2001) sobre a história do conceito Firthiano.

39 Alguns autores usam o termo entonação para descrever uma parte dos recursos prosódicos, po-

rém, como entonação é mais associada à melodia da fala (mudança no tom), prefiro usar o conceito mais abrangente e exato de prosódia.

e a pausa. A aplicação de um ou de vários recursos em combinação serve dife- rentes propósitos:

t Sintaxe, p. ex., marcar e separar frases como frase nominal e grupo ver- bal, orações subordinadas e apostos, marcar grupos lógicos, estrutura tema-rema, dêixis;

t Semântica, p. ex., desambiguar itens lexicais e enunciados que poderiam ter vários significados;

t Retórica, p. ex., contribuir para marcar a função expressiva, função ape- lativa, ironia, modalização;

t Pragmática, p. ex., identificação da intenção comunicativa, referência a conhecimento compartilhado entre interlocutores, negociação de turnos. A prosódia é inseparável da sintaxe, pois sem a prosódia adequada, as conexões sintáticas não ficam claras40. Mesmo na leitura silenciosa de um tex-

to escrito realizamos os elementos prosódicos mentalmente, senão, o texto não pode ser decodificado corretamente. Na modalidade escrita das línguas orais, a prosódia é marcada de forma básica por recursos gráficos, tais como o espa- ço entre os itens lexicais41 (inexistente dessa forma na fala), sinais de pontua-

ção e elementos de ênfase como negrito, itálico etc. O fato da prosódia exercer funções tão importantes na marcação da estrutura sintática da fala tem várias consequências. É um dos motivos pelos quais um aprendiz de uma língua es- trangeira ou segunda língua sente tanta dificuldade ao compreender um texto ou uma fala na LE: ele ainda não adquiriu a competência prosódica necessá- ria. Winston (2000, p. 103) escreve: “Muitas vezes, a prosódia eficiente falta em sinalizantes e intérpretes iniciantes – sua comunicação parece ser monótona, desinteressante e difícil de entender”. Mesmo o aprendiz cometendo erros sintá- ticos ou semânticos sérios, um enunciado ainda é compreendido perfeitamente se o padrão prosódico condiz com a situação comunicativa. Ao contrário disso, mesmo sem erros sintáticos ou semânticos, um enunciado não é compreendido com facilidade se o padrão prosódico não estiver de acordo com a expectativa dos participantes. Dwight Bolinger (1981) descreve a importância da prosódia para o agrupamento em trechos de informação significativos42. Porém, mesmo

com todo esse peso da prosódia como marcador sintático, as outras funções dela não podem ser subestimadas e elas sempre co-ocorrem com a função sintática.

40 Esse fato é ainda mais importante nas línguas de sinais.

41 Existem sistemas de escrita que desconhecem essa segmentação visual dos itens lexicais, por

exemplo a escrita Devanagari, no sânscrito.

Outra consequência desse fato é a dificuldade de se analisar a prosódia das línguas de sinais cujos marcadores sintáticos são mais versáteis e fluídos que os paradigmas de conjugação e declinação limitados das línguas orais. Nas lín- guas de sinais, como em todas as línguas naturais, também há recursos prosódi- cos, aliás, apesar da diferença de modalidade, são bastante parecidos. Velocida- de de articulação, tamanho do espaço de sinalização, intensidade do movimento de sinalização, pausas, marcadores não manuais (franzir a testa e torcer o na- riz, movimentos de bochecha, boca e língua, cabeça e tronco, direção do olhar, abertura e piscar dos olhos etc.). As suas funções são as mesmas das línguas orais. Nicodemus (2009) constata que “prosódia possui um papel essencial na produção e percepção de cada enunciado de uma língua, falada ou sinalizada”43

e postula que a prosódia talvez seja a área mais complexa e difícil de se estudar no sistema linguístico, porque está intimamente relacionada com todos os ou- tros aspectos da linguagem, desde a fonética até o discurso44. Como Nicodemus,

também Sandler (2010, p. 299) concorda com o paralelismo da prosódia entre línguas orais e línguas de sinais, mas alerta que não se devem confundir as fun- ções sintáticas (linguísticas) e paralinguísticas dos articuladores envolvidos na prosódia nas línguas de sinais:

Na teoria da prosódia de línguas de sinais aqui desenvolvida, constituin- tes prosodicamente marcados (demarcados por mudanças do tempo de fala, incluindo as pausas e manifestados pelas mãos sinalizantes) mos- tram a mesma relação com a sintaxe nas línguas de sinais como nas lín- guas orais, na medida em que interagem com unidades sintáticas, mas não se sobrepõem perfeitamente com elas. [...] Isso implica que atribuir propriedades sintáticas estruturais diretamente a elementos da entonação e usar a sua distribuição como diagnóstico para as estruturas sintáticas subjacentes – parte integral de alguns programas de pesquisa em línguas de sinais – significa colocar o carro na frente dos bois.

Na continuação, Sandler analisa a função prosódica para demarcar tipos de orações interrogativas, atribuir e manter o tópico e ela elabora uma hierar- quia de elementos prosódicos para a língua de sinais israelense, verificada com exemplos de diversas outras línguas de sinais, para demonstrar com nitidez a função sintática da prosódia. Neidle et al. (2000, p. 11-12, 22 e 25) alertam para o fato de que nas línguas de sinais por um lado há uma maior aceitação de dife- rentes realizações, por outro lado, a metodologia usada (transcrição por glosas)

43 Nicodemus (2009, p. 13). 44 (Ibid., p. 16).

pode ser problemática e ainda faltam pesquisas para documentar as caracterís- ticas das línguas de sinais com precisão suficiente para poder identificar onde se manifesta variação sociolinguística.

Como a prosódia está relacionada a praticamente todos os subsistemas linguísticos, ela é um recurso maravilhoso para os intérpretes de línguas de si- nais aumentarem a qualidade, eficácia e aceitação das suas interpretações. Isso é válido ainda mais ao produzir na língua de sinais, pois a língua de sinais faz mais uso desses recursos em comparação com as línguas orais que dispõem de recursos lexicais mais diversificados para a diferenciação da mensagem codifi- cada. Isso não quer dizer que as línguas orais são superiores, pelo contrário. A codificação auditiva num sistema com relativamente poucas variáveis (em torno de 50 sons diferentes para cada língua oral natural) é muito mais limitada do que a codificação visual num sistema com quase infinitas variáveis. Todas as línguas naturais conseguem dizer tudo, apenas utilizam outros recursos para atingirem os mesmos fins. As línguas naturais são um jogo de soma zero, ou seja, determinadas línguas orais, como latim, alemão ou sânscrito, dispõem de um repertório de declinação, conjugação e afixação muito diferenciado, portanto, não necessitam um léxico tão amplo para poder codificar todas as nuanças de forma eficaz. Outras, como, por exemplo, o inglês, possuem uma gramática mais reduzida, apenas duas formas de conjugação de pessoa, nenhum gênero grama- tical e nenhuma marcação de casos; a compensação vem pelo tamanho neces- sariamente maior do léxico. Como as línguas de sinais possuem uma variedade enorme na forma de realização dos seus elementos, necessitam de menos raízes lexicais para poder dar conta de todas as necessidades comunicativas possíveis45.

Porém, essa diversificação das línguas de sinais ocorre em grande parte pelos recursos acima descritos como sendo também prosódicos. Isso explica porque a interpretação libras-PB precisa criar essa mesma diversificação através de uso diferenciado da base lexical do português e não cair no erro de produzir um texto em PB que não passa de glosas conectadas entre si pelas regras sintáticas

45 Dicionários conhecidos de libras ou ASL registram em torno de 10 mil sinais diferentes. Além

da variabilidade enorme desses sinais (o que pode ser visto como correspondência aos recursos de derivação, afixação e composição nas línguas orais) há o uso ilimitado de classificadores ou descritores visuais. Ao mesmo tempo, as línguas de sinais hoje existentes são relativamente novas em comparação com as línguas orais. Assim, na medida em que a comunidade Surda tiver acesso a mais áreas de atuação profissional, por exemplo, haverá uma expansão da base lexical em LS na área de línguas técnicas da respectiva área como podemos observar agora na área de estudos da linguagem após a criação do curso de Letras-Libras na UFSC com a necessidade de criar um grande número de sinais para poder tematizar os novos conteúdos em libras.

do português! Aqui o código de ética mal-interpretado em relação à exigência de equivalência causa bastantes problemas. O conceito de equivalência46 na área

de tradução e interpretação é ao mesmo tempo onipresente e bastante elusivo e perigoso. A rigor, não existe equivalência, pois mesmo sem haver tradução ou interpretação, o mesmo texto se desfaz em tantas variantes quanto tiver des- tinatários, cada um deles entendendo algo levemente diferente, portanto não equivalente. Ainda mais isso é verdade superando uma barreira linguística e cul- tural. Mesmo assim, os intérpretes e tradutores querem e devem sempre tentar alcançar essa equivalência impossível47.

Mas voltaremos à função expressiva da prosódia, sobre a qual Sandler (2010) constata:

Um outro tipo de ação facial é a expressão facial afetiva ou paralinguís- tica acima referida. Esse sistema usa (alguns d)os mesmos articuladores que a expressão facial linguística, mas possui propriedades diferentes em termos de distribuição temporal, número de articuladores envolvidos e função pragmática.48

Essa camada da prosódia que não está servindo ao suporte da estrutura sintática é o que interessa especialmente para a dimensão sociolinguística do presente artigo. Ela é responsável pelo estilo pessoal de cada falante. Nela se ma- nifesta a sua leitura específica da situação de comunicação, baseada nos fatores sociolinguisticamente relevantes. Nela se mostram elementos pessoais (a relação de cada falante com o objeto da sua fala) e interpessoais (a relação afetiva com outros falantes), como também se manifesta nela a maneira como cada falante gostaria que sua fala fosse recebida. Cada fala é de certa maneira única, determi- nada por muitos fatores e estabelece um perfil e uma identidade linguística de cada interlocutor para essa comunicação específica.

Resumindo, os elementos prosódicos são um recurso chave na decodi- ficação e codificação do discurso intermediado por intérpretes no par linguís- tico libras-PB ou qualquer outra combinação de uma língua de sinais e uma língua oral.

46 Chesterman (1997, p. 9-10) inclui o conceito de equivalência nos cinco “supermemes” da teoria

da tradução. Veja também Weininger (2009) a este respeito.

47 Para uma discussão mais detalhada desta questão, veja o meu artigo Estrela guia ou utopia inal-

cançável – uma breve reflexão sobre a equivalência na tradução, Weininger (2009).

No documento Estudos da Língua Brasileira de Sinais III (páginas 84-89)