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Linguagem, sociedade, identidade linguística – a dimensão sociolinguística e sua função

No documento Estudos da Língua Brasileira de Sinais III (páginas 74-80)

Markus J Weininger

3.2 Linguagem, sociedade, identidade linguística – a dimensão sociolinguística e sua função

Antes de entrar na análise dos aspectos sociolinguísticos relevantes para a interpretação, é necessário esclarecer o uso e a significação de alguns conceitos básicos. Indubitavelmente, o ser humano se torna humano através da lingua- gem e da consciência que permitem a autorreflexão, sendo que a primeira é ao mesmo tempo a condição e a consequência da segunda. Na relação entre ser humano e linguagem desdobram-se inevitavelmente as dimensões individual e coletiva, cada uma nos dois planos. A linguagem e as línguas naturais sempre são um produto social e coletivo, são resultantes da interação de gerações de membros de uma comunidade de falantes. A fala organizada e estruturada – convencionalizada – só pode surgir no plano coletivo. Essa ferramenta coletiva da língua (formada pela interação contínua dos indivíduos), por sua vez, forma os indivíduos e a sua percepção de mundo. Isso acontece de forma clara durante a aquisição da linguagem, ou seja, durante a socialização linguística, que necessariamente ocorre de forma concomitante nos dois planos: adquirir estruturas e regras de interação social e linguística através da práxis. Não há socialização sem aquisição precoce e satisfatória da linguagem (o problema do Kaspar Hauser) e, vice-versa, não há aquisição do sistema linguístico sem participar ao menos parcialmente da sociedade e cultura que é transmitida de forma inseparável através dessa língua. Porém, essa influência da língua persiste mesmo depois da aquisição do sistema linguístico, durante toda a vida posterior do indivíduo, pois a linguagem é o filtro perceptual através do qual conseguimos enxergar o mundo16. Nas palavras de Ludwig Wittgenstein, “os limites da minha

língua significam os limites do meu mundo”17.

Assim, com base em Wilhelm v. Humboldt e sua famosa frase: “A lín- gua é o órgão formador do pensamento”18, é possível entender que as funções

da linguagem são muito mais fundamentais do que a apenas a comunicação. A primeira função da linguagem é a percepção. Pois, sem os rótulos conceituais linguisticamente estabelecidos e organizados, a nossa percepção discriminatória é cega. Para nós, algo é “x” por não ser “y” ou “z”. Apenas com a ajuda de “tra- ços ideológicos” que formam “corredores isotópicos” que resultam nos “óculos

16 Blikstein (1997) demonstra que na verdade a língua gera uma projeção de mundo através da

práxis social que para nós substitui o acesso à “realidade” objetiva.

17 Tractatus logico-philosophicus, 5.6, tradução minha. 18 Humboldt (2006a, p. 125).

sociais”19 da linguagem conseguimos enxergar o mundo de forma estruturada

ao ponto de criar um sentido ao menos relativamente estável, embora nunca absoluto ou “objetivo”, na melhor das hipóteses intersubjetivamente verificável.

Então, seguindo o pensamento de Humboldt, a segunda função da lin- guagem depois da percepção é a cognição, ou seja, o processamento dessas per- cepções, conectando as mesmas entre si de acordo com determinadas operações mentais cujas regras são linguisticamente estabelecidas, com o propósito de nos relacionarmos com o ambiente externo e nos encaixarmos melhor na estrutu- ra do mundo em nossa volta. Apenas na medida em que a criança amplia seu domínio da linguagem, abrem-se em etapas sucessivas as suas possibilidades de interação com o mundo e o seu raio de alcance cognitivo e físico. Somente a terceira função da linguagem é a comunicação, ou seja, a troca com outros in- divíduos sobre o resultado do processamento cognitivo das percepções. Nesse sentido, se compararmos o nosso cérebro com a CPU de um computador, a língua seria o sistema operacional sem o qual os recursos físicos periféricos des- se computador são inutilizáveis, não podem ser acessados, não emitem e não retornam nada. Esse fato explica, entre outras coisas, porque em línguas ad- quiridas após o período sensível de aquisição da L1 em geral não se alcança a mesma proficiência da L1: elas servem apenas o propósito da comunicação, mas não mais da percepção e cognição porque o indivíduo já possui com sua L1 o “sistema operacional” necessário, sua visão de mundo já está formada e apenas admite algumas ampliações e complementações através do novo sistema de co- dificação de mundo que é a nova língua (L2 ou LE). Também fica claro desta forma porque a língua de sinais sempre deve ser considerada a L1 dos surdos (muitos autores da área preferem usar “língua natural” para evitar qualquer po- lêmica), mesmo que ela seja adquirida tardiamente e de forma incompleta. Ela é a única que consegue exercer plenamente todas as três funções linguísticas para os Surdos: percepção, cognição e comunicação. Mais uma decorrência da aplicação dessas análises de Humboldt e Wittgenstein é a existência necessária de uma “cognição visual” Surda, formada não apenas por causa do estímulo e desenvolvimento cerebral maior das áreas de processamento visual, mas ainda mais pelo fato da língua que forma o pensamento dos Surdos ser viso-espacial.

Instantaneamente fica claro também que, no caso da maioria dos surdos que nascem em famílias ouvintes, esse processo do indivíduo adquirir uma lín- gua do coletivo para poder se orientar no mundo se torna ainda mais complexo e complicado do que em geral. Nunca o processo relacional recíproco entre um ser humano e a sociedade através de uma língua compartilhada é fácil. J. Piaget

(1977) foca no plano individual e usa o modelo de quatro fases de construção do conhecimento: 1) perturbação onde uma nova experiência entra em choque com a interpretação de mundo anterior; 2) assimilação, quando a mente e a experiên- cia interagem mutuamente para preparar o rearranjo da organização mental da percepção de mundo; 3) adaptação e 4) equilibração que de novo estabelecem uma interpretação de mundo consistente e temporariamente estável. L.Vigotski (2001) salienta o plano coletivo e social. A construção do conhecimento pela linguagem exige a inserção numa interação social relevante e significativa. Nesse processo, a percepção de mundo individual em geral não coincide 100% com a visão e os valores do coletivo. A. Leontiev (1971) chega a definir a comunicação em si como a luta do sentido individual pela conquista de significação social. Ou seja, estamos sempre tentando negociar num jogo linguístico infinito com os outros o significado e a aceitação dos nossos conteúdos e tentando convencer os demais da nossa visão de mundo.

Inevitavelmente, nesse processo ocorrem modificações constantes no in- divíduo, nos interlocutores sociais e na própria língua. U. Eco (1977) fala da permanente crise constitutiva do ser humano e do sistema linguístico. Todo indivíduo e toda sociedade, em sua identidade cultural, em última análise são linguisticamente constituídos. Fica óbvio de novo que o surdo isolado numa família e sociedade de ouvintes que se negam a reconhecer a língua natural dele como língua e tentam impor a língua oral majoritária, não plenamente acessível ao indivíduo surdo, não será muito bem-sucedido nesse processo e estará sujeito a experiências traumáticas com potencial de grande sofrimento pessoal.

Também essa visão moderna da constante renegociação de significação e sentido foi antecipada por Humboldt que postulou já no início do século XIX que a língua não deve ser considerada uma obra pronta – έςγον (érgon), e sim um processo em constante desenvolvimento – ενέςγεια (enérgueia). Com isso estamos nos aproximando ao primeiro tema central do presente artigo: à análi- se sociolinguística propriamente dita mediante registros da variação linguística. Como já foi inicialmente constatado, a relevância de fatores sociolinguísticos para a interpretação é amplamente reconhecida na área por publicações brasi- leiras. Porém, na maioria dos casos trata-se de declarações genéricas, ainda por cima com um uso muito amplo ou um tanto vago do termo “sociolinguístico”, no sentido de fatores sociais e linguísticos que influenciam a interação a ser in- terpretada ou no sentido do indivíduo ser determinado pelo seu contexto social na sua interação linguística e vice-versa.

Apenas para fins ilustrativos sejam citados alguns exemplos: V. Barbosa Lima Jr. postula de maneira geral “O conhecimento gramatical e sociolinguís- tico são fundamentais para que haja fidelidade na mediação da comunicação e

clareza na sinalização.”20 E. Bremm e C. Bisol declaram “A língua de sinais pos-

sibilita práticas sociais que tornam seus membros participantes de um grupo so- ciolinguístico e permitem a interação e o compartilhamento de significados”21.

Semelhante no manual de política de educação dos Surdos da Fundação Catari- nense de Educação Especial (FCEE): “As questões da construção da identidade e cidadania do surdo envolvem o reconhecimento de seu modo de vida, de sua visão do mundo, bem como, das situações sociolinguísticas específicas vividas por esta comunidade.”22 Oliveira e Oliveira (2011) afirmam com base em Guisan

(2009) que a língua de sinais é a grande marca indentidária da pessoa Surda e descrevem o “perfil sociolinguístico” como “uma maneira de moldar a identida- de dos indivíduos socialmente falando”23. Alisedo (1994) constata de forma ge-

ral que fatores sociolinguísticos são condicionantes para a constituição da iden- tidade surda, mas sem exemplos não fica claro a que fatores está se referindo. Ao mesmo tempo, as duas últimas citações parecem estar dizendo, na verdade, que a condição social e as possiblidades linguísticas em combinação formam a iden- tidade surda. Isso é algo bem diferente de olhar para fatores sociolinguísticos propriamente ditos, ou seja, aspectos sociológicos como idade, gênero, classe social etc. que se manifestam na produção linguística do indivíduo ou grupo. Ou será que a afirmação acima quer dizer que a forma socialmente marcada de se expressar forma a identidade, num tipo de retroalimentação? Essa retroali- mentação de fato existe, como já Humboldt constatou, o ser humano forma a língua e é formado por ela24. Porém, nas afirmações acima isso não parece ser

tematizado. Resumindo, há uma confusão bastante difundida no uso de “socio- linguístico”: esse termo não significa a combinação ou o cruzamento de fatores “sociais” e “linguísticos”, mas a manifestação linguística de critérios sociologica- mente definidos.

Sousa (2011) afirma: “A competência sociolinguística considera o papel dos falantes no contexto da situação e a sua escolha de registro e estilo.”25 Essa

declaração, embora igualmente genérica já é mais adequada, ou seja, a forma so- ciologicamente marcada de se expressar de cada falante precisa ser considerada. A questão de registro e estilo também é de extrema relevância, embora pouco pesquisada em relação à língua de sinais brasileira antes do trabalho pioneiro de Custódio (2013), veja a seção II deste volume.

20 Lima Jr. (s.a., p. 11). 21 Bremm/Bisol (2008, p. 277). 22 Santa Catarina FCCE (2004, p. 12). 23 Oliveira e Oliveira (2011, s.p.). 24 V. Humboldt (2006b). 25 Souza (2011, s.p.).

Pereira e Fronza (2007), no contexto da avaliação da proficiência de in- térpretes de libras para os fins do exame PRO-LIBRAS, definem de forma pare- cida com Sousa (2011) a competência sociolinguística ao lado das competências gramaticais, discursivas e estratégicas de forma mais clara, embora ainda geral e sem dar exemplos: “Competência Sociolinguística: é a produção e a compre- ensão das expressões nos diversos contextos, levando em conta a situação dos participantes, as intenções, as normas de intercâmbio linguístico daquela comu- nidade etc.”26

Azevedo (2011) se baseia na sociolinguística interacional de Goffman e cita o volume de Ribeiro e Garcez (2002) na sua “etnopesquisa sociolinguística com alunos surdos”. Esses últimos oferecem uma definição concisa da aplicação de conceitos sociolinguísticos para a análise de situações concretas do uso da linguagem:

‘O que está acontecendo aqui e agora nesta situação de uso da lingua- gem?’ Essa é a pergunta que se fazem os sociolinguistas interpretativos que partem das linhas mestras delineadas pelos autores dos textos desta coletânea, que propuseram que se visse cada um desses pequenos mo- mentos de interação face a face como cenários de construção do signifi- cado social e da experiência, passíveis de análise e de interesse sociológico e linguístico.27

Porém, “o que está acontecendo aqui e agora?” ainda é um questiona- mento um tanto vago, embora aponte para a direção correta, a saber, de incluir mais o contexto interacional, sociologicamente definido e sociolinguisticamente perceptível, e não priorizar apenas o fluxo de itens lexicais na superfície linguís- tica da interação.

O objetivo desse artigo é detalhar um pouco mais quais aspectos socio- linguísticos podem ser analisados para dar uma reposta melhor a essa pergunta e depois sugerir estratégias concretas para a aplicação na interpretação. O foco mais importante da sociolinguística não é o indivíduo ou a constituição da iden- tidade do indivíduo. A sociolinguística analisa principalmente a linguagem, nas duas dimensões de variação sincrônica e mudança diacrônica de uma língua. De forma geral, a variação linguística, ou seja, todas as diferentes formas de uma língua se manifestar de acordo com categorias que podem ser descritas com as ferramentas da sociologia, é mais importante como base para uma interpretação bem-sucedida do que a mudança linguística.

26 Pereira e Fronza (2007, s.p.). 27 Ribeiro e Garcez (2002, p. 7).

Alguns exemplos clássicos dessas variáveis sociológicas que influenciam a variação linguística são: idade, local de nascimento/residência, descendência étnica, religião, profissão, classe social, gênero, orientação sexual, orientação política/filosófica, escolaridade, afiliação com grupos culturais, grupos de ati- vidades de lazer hobbies etc.28. Em geral, diferencia-se entre variação diatópica

(decorrente do local geográfico), diastrática (causada pela segmentação ou estra- ficação hierárquica da sociedade em classes socioeconômicas) e diafásica (rela- cionada a adequação a um determinado contexto de comunicação). Aqui já fica claro que os surdos não formam um “grupo sociolinguístico”, como foi erronea- mente colocado acima, apesar de compartilharem uma mesma condição social de minoria excluída pela maioria e uma mesma língua viso-espacial, totalmente diferente da língua oral da maioria. Como em qualquer comunidade de falantes de uma língua, também na área da língua de sinais há todas as subdivisões de acordo com as variáveis sociológicas, idade, gênero, classe social, região etc. No caso da interpretação, essa confusão conceitual cria o risco de estereotipar o indivíduo Surdo linguisticamente, como se todos os surdos fossem iguais e não considerar a personalidade individual de cada Surdo na interpretação.

Também no caso dos falantes da comunidade Surda, a combinação de determinadas dessas categorias sociológicas forma socioletos, a forma de se expressar de determinados grupos, como é o caso nos ouvintes, por exemplo, jovens urbanos de classe média com formação superior, que se expressam de forma distinta de idosos da zona rural ou profissionais da área médica, jurídica, tecnológica, acadêmica, linguagem masculina e feminina, gay etc. A ação con- junta de diversas dessas variáveis em sobreposição cria uma identidade linguís- tica. Em geral, cada indivíduo participa de vários contextos sociais. Assim, uma mesma pessoa pode acumular diferentes identidades linguísticas, de acordo com diferentes contextos sociais nos quais está inserida e interage. Essas identi- dades normalmente correspondem pelo menos até certo ponto a determinados papéis que a pessoa exerce. Ou seja, a mesma pessoa vai falar de maneira distinta com os seus superiores e colegas de trabalho, com amigos, com os seu pais e seus filhos, ao mesmo tempo satisfazendo expectativas culturalmente estabele- cidas para interações em cada contexto e projetando esse papel linguisticamente para poder alcançar os seus propósitos comunicativos e interacionais com êxi- to, reivindicando assim, linguisticamente, o status institucional relacionado ao respectivo papel social. Algumas dessas variáveis podem ser persistentes atra- vés das diferentes variações socioletais que a pessoa domina, por exemplo, um

28 Mollica e Braga (2003) dão uma excelente introdução e visão geral sobre a análise da variação

sotaque regional. Mas também é possível que um jornalista gaúcho que reside no Rio de Janeiro use o sotaque padrão carioca ao aparecer na TV enquanto em casa continue falando com marcas regionais do Rio Grande do Sul. Algu- mas variáveis são passíveis de um verdadeiro code-switching de acordo com as exigências situacionais. Para continuar no exemplo do sotaque regional, uma pessoa que mora longe do local de origem e já assimilou a variação local de sua nova residência, digamos alguém com origem na Bahia que mora em São Paulo há muitos anos e assimilou a dicção paulistana para não ser discriminado como “nordestino”, pode mudar para o sotaque baiano imediatamente ao atender um telefonema de um familiar de Salvador. O mesmo ocorre com um médico que usa o jargão profissional técnico e distanciado com seus colegas e pacientes no local de trabalho, mas muda sua forma de falar sobre a mesma doença se, por exemplo, algum parente próximo for acometido por ela.

Em outras palavras, a L1 de cada falante se desdobra em muitos subcon- juntos, sendo que cada falante participa de vários desses subconjuntos na me- dida em que a diversificação da sua experiência vivencial o permite e/ou exige. Mario Wandruszka (1979) chamou essa capacidade do ser humano de plurilin- guismo interno (em oposição ao plurilinguismo externo, ou seja, a capacidade de adquirir mais de um idioma ao longo da vida). Em resumo, a nossa identida- de linguística no mínimo deve ser vista como multifacetada e, em geral, é mais complexa do que o conceito sugere à primeira vista.

A função dos diferentes socioletos é constituir identidades de grupos lin- guisticamente, excluir os que não pertencem ao grupo e legitimar os que perten- cem ao grupo perante os membros desse grupo e pessoas externas. Um médico que não fala como um médico terá dificuldades para ser aceito profissional- mente no seu meio. Assim, todos nós adotamos determinadas formas de falar para sermos aceitos em determinados contextos e para facilitar alcançarmos os nossos objetivos nas respectivas interações linguísticas.

No documento Estudos da Língua Brasileira de Sinais III (páginas 74-80)