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A PRODUÇÃO DO MEDO COMO ESTRATÉGIA DE GOVERNAMENTALIDADE

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 54-71)

ITINERÁRIOS DESVIANTES

Capítulo 2 MEDO E PERICULOSIDADE

2.1 A PRODUÇÃO DO MEDO COMO ESTRATÉGIA DE GOVERNAMENTALIDADE

agenciamentos compostos por linhas molares, pertencentes a um campo de organização e desenvolvimento, onde as intensidades são restritas e a subjetividade é modular, isto é, identificada a uma série de verdades julgadas como essenciais como se fossem parte da natureza de cada indivíduo e, portanto, não passível de questionamento e mudança. Encontra- se aí a compreensão da vida regida por identidades que seriam definidas por regimes de pessoalidades11 (ROSE, 2001) que variam sempre entre dois extremos: normal e anormal, louco e são, delinquentes e não delinquentes, virtuosos e não virtuosos, portanto, bipolarizando e hierarquizando seus componentes de modo maniqueísta, tendendo a esterelizá-la. Os sistemas punitivos e de controle social têm, a partir dessa linha divisória (FOUCAULT, 1995), alvos fáceis contra os quais agir e neutralizar com o fim de evitar o caos no mundo supostamente ordenado, onde não há espaço para o conflito.

As prisões, os hospitais psiquiátricos, os manicômios judiciários, suas derivações e simulacros, bem como os saberes que os sustentam como práticas legítimas e resolutivas, fazem-se amparados nessa perspectiva. São, por excelência, os aparatos para se lidar com todo tipo de desordem, imprevisibilidades e ameaças a esse regime. Afirmam e reafirmam cotidianamente a necessidade de afastar do convívio os incapazes de manterem-se submissos à ordem, os que se insurgem contra os assujeitamentos e colocam em questão a suposta natural ordenação e paz do mundo.

Neste capítulo, apresentamos o medo como estratégia de governamentalidade neoliberal. Partimos de uma breve contextualização da produção do medo e dos seus usos para a gestão dos corpos na contemporaneidade e depois fazemos um recuo na história para situar o medo construído no entorno do personagem mítico do “louco infrator”, relacionando- o à invenção da medida de segurança como prática correlata à noção de periculosidade, criada no século XIX. A partir daí, achamos necessário levantar alguns marcos legais que instituíram a execução da medida de segurança como meio de neutralizar o medo proveniente da virtualidade dos perigos, acionada pela persistente concepção preconceituosa da loucura.

2.1 A PRODUÇÃO DO MEDO COMO ESTRATÉGIA DE GOVERNAMENTALIDADE  

11 Os “regimes de pessoalidade”, segundo Rose (2001a), são esquemas mais ou menos racionalizados bem inventados para ocupar o ser humano da busca incessante de seu lugar no mundo, sendo este lugar enquadrado em conceitos pré-formatados acerca de si, como, por exemplo, os conceitos de cidadão, masculinidade, feminilidade, mãe, honra, generosidade, etc. Neste caso, o conceito de homem trabalhador e disciplinado.

(...) raramente as pessoas têm a coragem de admitir simplesmente que tem medo, recorrendo a argumentos lógicos sofisticados para desqualificar e combater aquilo que é visceralmente temido. O medo esse móvel amargo e inconfessável dos sujeitos históricos, pode ser tão elucidativo em alguns momentos, ou até longos períodos, quanto o estudo da acumulação de capital (CHALOUB apud BATISTA, 2003, p. 37).

Vera Malaguti Batista (2003), em “O medo na cidade do Rio de Janeiro”, busca fazer uma análise do imaginário do medo como modo de contribuir para o questionamento do caráter autoritário das estratégias de controle social no Brasil. Parte da hipótese de que “a hegemonia conservadora na nossa formação social trabalha a difusão do medo como mecanismo indutor de tomadas de posição estratégicas seja no campo econômico, político ou social” (p. 23).

Segundo Neder (apud BATISTA, 2003), em nossa formação sócio-econômica, as fantasias de controle social e policial absoluto têm como matriz a cultura jurídico-política da Península Ibérica. Imagens de morte e terror nos acompanham desde a colonização, não apenas por seus efeitos genocidas, de escravização e sujeição dos povos ditos primitivos, mas também pela cultura inquisitorial ibérica que fantasiava exercer um absoluto controle social sobre qualquer ameaça à sua hegemonia política.

Para Zaffaroni (2007), o poder punitivo, como instrumento de controle e verticalização social, impôs-se perversamente desde sua origem através de preconceitos que impunham medo. A perseguição às bruxas, no modelo inquisitorial, foi seguido por tribunais laicos e, depois, generalizou-se. “Na Espanha, os principais inimigos nunca foram as bruxas – embora muitas tenham sido eliminadas –, mas sim os opositores do monarca, acusados de hereges e dissidentes, isto é hostis judicatus, prolongando-se a Inquisição até o século XIX” (p. 34).

Nas sociedades colonizadas, dado que os povos nativos eram considerados biologicamente inferiores, o poder punitivo as transformou em imensos campos de concentração. Dentre os povos mestiços e nativos, impôs-se uma separação que desestimulava a mestiçagem, já que os primeiros eram considerados menos domesticáveis. O discurso penal tratou de considerá-los desequilibrados ou loucos morais em potencial; consequentemente, inimputáveis para, então, conseguir exercer sobre eles maior controle e exclusão, quando “convertiam os mais rebeldes em inimigos” (ZAFFARONI, 2007, p. 47). Ao discurso penal voltaremos mais adiante.

Jean Delumeau (apud BATISTA, 2003), historicizando o medo, divide-o em dois grandes blocos: de um lado, os medos da maioria, relacionados à Peste e aos flagelos

tradicionais, como a fome e as guerras; e de outro, o medo da cultura dirigente de perder sua hegemonia política. A relação entre eles está no fato de que os medos da maioria, com o consequente medo da morte, serviram e muito bem para atender à cultura dirigente, já que atuaram como importantes elementos na construção de instrumentos de ordenação e limpeza do espaço:

O medo explica a ação persecutória conduzida pelo poder político-religioso. As fórmulas de confinamento ‘saneiam as cidades’, diminuem os ‘perigos de contágio’, têm alcance moral. O sentido maior desta estratégia é disciplinar populações, produzindo alinhamentos (BATISTA, 2003, p. 45).

Em artigo recente, Batista (2012) converge os efeitos dessa história, somando ao atual contexto neoliberal – analisado a partir das obras de Löic Wacquant – a produção de uma subjetividade contemporânea predominantemente punitiva. O desejo de punir cada vez mais encrustado na população corresponderia ao excesso de insegurança social provocado, de modo sintético, pelas características mais centrais do neoliberalismo, quais sejam: a (1) desregulação do mercado com consequente (2) esfacelamento do trabalho, somados à (3) ênfase na responsabilidade individual e na (4) ampliação das estruturas penais.

Há uma série de mudanças culturais, apontadas por Wacquant (2007, p. 28) como promotoras de “sentimentos de insegurança” – “crise da família patriarcal e erosão das tradicionais relações de autoridade entre os sexos e as faixas etárias, decomposição dos territórios da classe trabalhadora, generalização da competição escolar” – que geralmente são confundidas com insegurança social e acabam canalizando à figura do delinquente as ansiedades difusas provocadas pelo que é mais central no neoliberalismo. Para o autor, a fonte de insegurança social estaria nos efeitos da precarização do trabalho, antes assalariado e estável, e a consequente vulnerabilização de parcelas da população que, com baixa qualificação profissional e menor capital cultural, escoam para o trabalho informal ou para o desemprego e tornam-se alvo das políticas de segurança pública. Estas serão incumbidas de fazer um rígido controle social, apoiadas no fortalecimento do sistema penal, em franca expansão de suas estruturas punitivas, em contraposição ao recuo das políticas de assistência social que deveriam sanear a insegurança sofrida pela população pobre ou empobrecida.

Seria o avanço do Estado Penal em sincronia com os recuos do que seria função do Estado de bem-estar social, dentro do que Wacquant (2007, p. 30) descreve como tríplice

transformação do Estado: aliança da “amputação do seu braço econômico à retração de seu

regaço social e à maciça expansão do seu punho penal”. O autor afirma que o neoliberalismo transformou a assistência social em prática de tratamento penal da marginalidade urbana e

demonstra que os EUA impuseram um “novo governo da insegurança social” não apenas pelo deslocamento dos gastos públicos do social para o penal, mas também pelo manejo da população a partir da área assistencial através da “lógica punitiva e panóptica” (Ibidem, p. 04).

Em trabalho anterior, o autor exemplifica essa nova governamentalidade com a globalização da política de Tolerância Zero e o consequente encarceramento em massa, iniciados na década de 1970 nos EUA, sociedade que fortalecida após o 11 de setembro de 2011, sinalizou ao mundo a instauração de um Estado Penal (WACQUANT, 2001), concomitante à do Estado Democrático de Direito, com práticas que influenciam fortemente os países da América Latina. Com efeito, no Brasil, nos anos 1990 e 2000, assistimos a um aumento vertiginoso da população carcerária. Segundo os dados do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), em 1990, havia no sistema penitenciário 90 mil presos; em 2012, esse número chega a quase 550 mil, o que significa um aumento de 511% da população carcerária no país.

Para Wacquant, desenvolver o Estado penal é restabelecer uma verdadeira "ditadura sobre os pobres", já que o mesmo funciona para:

responder às desordens suscitadas pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário (WACQUANT, 2001, p. 10).

Nesse sentido, não apenas se autoriza o uso da violência estatal como se permitem práticas extremas de arbitrariedade, sem que ninguém se escandalize – como era de se esperar – a exemplo dos métodos de tortura como formas de investigação – desde que direcionadas aos setores da sociedade identificados como suspeitos ou perigosos. Como diz Kolker (2002, p. 93): “Quando pensávamos que as democracias modernas teriam mais instrumentos para coibir a violência estatal, verificamos que a tortura coexiste muito bem com a ordem constitucional”.

Considerando a realidade brasileira, parece mais fácil entender as análises de Wacquant quando as relacionamos ao período da ditadura civil-militar, já que o estabelecimento da Doutrina de Segurança Nacional, em que a segurança do país se volta às ameaças provocadas por “inimigos internos”, justifica o explícito sacrifício do que viria a ser função de um Estado de bem-estar social com “a limitação das liberdades, das garantias constitucionais, dos direitos da pessoa humana” (COIMBRA, 1998, p. 09). Os dispositivos do

Sistema Internacional de Segurança, que deveriam servir para a garantia da soberania do país, tornam-se a base do Sistema de Segurança Nacional, em que as táticas de guerra passam a ser utilizadas contra a própria população com vistas a garantir a ordem.

No entanto, a demora para a abertura dos arquivos da ditadura para a devida responsabilização dos mandantes dos crimes que ensejou – modo de o Estado brasileiro assumir posição explícita contra práticas de tortura, deslegitimando sua continuidade em outros contextos – somada ao processo de democratização do estado brasileiro totalmente ancorado nos princípios neoliberais, atualizam a violência estatal e a figura do inimigo interno, a exemplo das cenas corriqueiras de ataques brutais das polícias contra a população, legitimados pelo Estado. Vale citar as ações dos órgãos de segurança nas manifestações populares de 201312 e o violento confronto entre a polícia militar e professores da rede pública do Estado do Paraná13, ocorrido em maio de 2015. A extrema violência policial a mando do governo neoliberal demonstra de que modo as reivindicações pelo não retrocesso das políticas de assistência social incitam a truculência do Estado Penal. Cenas de guerra que as camadas populares vivem frequentemente sem qualquer atenuação: enfrentando balas mortais, toques de recolher, invasões domiciliares sem mandado de segurança, mortes registradas, até 2013, como Resistência Seguida de Morte/RSM, expressão substituída por “homicídios decorrentes de intervenção policial” (RAUTER, 2014), desaparecimentos, dentre outros absurdos.

De todo modo, vale a pena fazer algumas ponderações quanto às análises de Wacquant aproximando-nos um pouco mais do contexto brasileiro. Tivemos de fato um aumento significativo na taxa de encarceramento na década de 2000, como já dissemos, especialmente a partir de 2006, com a Lei sobre drogas (n. 11.343/2006), e o recrudescimento das práticas penais e ampliação das estruturas punitivas, o que veio sendo acompanhado por alguns recuos na ampliação da garantia de direitos. A recente aprovação parcial da Proposta de Emenda Constitucional/PEC que reduz a maioridade penal14 e do Projeto de Lei que regulamentou a

 

12 As manifestações de 2013 começaram contestando o aumento das tarifas do transporte público em algumas cidades do Brasil, mas ganharam proporção nacional após a violenta resposta da polícia militar contra a manifestação ocorrida em São Paulo, no dia 13 de junho. A violência policial, a má qualidade dos serviços públicos, a corrupção e os excessivos gastos com os eventos esportivos (copa do mundo, copa das confederações) passaram a ser mote das manifestações, que se espalharam por várias capitais do Brasil e algumas cidades do exterior. Os impactos das manifestações foram comparados por especialistas ao episódio de

impeachment de ex-presidente Fernando Collor de Mello, ocorrido em 1992 (FREITAS, 2013).

13 Em 29 de maio de 2015, a polícia militarizada feriu aproximadamente 200 professores da rede pública do Estado do Paraná porque se manifestavam contra a votação de mudanças no plano previdenciário que atingiriam a categoria (LIMA, 2015).

14 A PEC n. 171/1993 impõe responsabilização penal para adolescentes a partir dos 16 anos e sua consequente entrada no sistema penal de adultos. Na ementa, “altera a redação do art. 228 da Constituição Federal

terceirização do trabalho15 foram os mais recentes ataques à garantia de direitos da juventude e dos trabalhadores do país, duas significativas categorias sociais e populacionais. No entanto, poderíamos considerar que, mesmo com todos os problemas políticos, econômicos, sociais e culturais que estamos vivendo – o que não pode ser considerado privilégio do atual governo, mas herança dos séculos de gestão conservadora e efeito da continuidade da política econômica neoliberal, tivemos uma contrapartida de investimentos em políticas sociais nunca antes efetivadas16 que parece apontar em direção a uma tentativa de consolidação do Estado Democrático de Direito, embora de modo já restrito se compararmos ao que foi proposto, na década de 1990, em termos de universalização das políticas sociais.

O investimento político necessário para garantir a universalidade das políticas sociais, na década de 1990, resultou na criação de agendas governamentais de longo prazo e crescente financiamento em saúde, educação e assistência social. As eras Fernando Henrique Cardoso (FHC, 1994 - 2002) e Lula (2003 - 2010) ressoaram uma nova constitucionalidade social e novas institucionalidades administrativas na gestão das políticas relativas. Porém, ainda no primeiro governo FHC, os empreendimentos financeiros no âmbito social passaram a sofrer pressões contrárias pelas agências multilaterais internacionais, que forçaram o Brasil a inaugurar uma nova conta-poupança para a qual se deveria transferir parte do orçamento timidamente crescente no campo social, parte essa que, logo, comporia o chamado “superávit primário”. É nesse momento, portanto, que, junto com o financiamento social, colocam-se em risco o princípio da universalidade das políticas sociais e as estratégias de radicalização planejadas durante a fase constituinte do Estado brasileiro. As ações de universalização das

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

(imputabilidade penal do maior de dezesseis anos)”. A PEC já foi aprovada em primeiro turno na Câmara dos deputados.

15 O PL n. 4330/2004 legitima a precarização dos contratos de trabalho através da regulamentação da terceirização. Na ementa, “dispõe sobre o contrato de prestação de serviço a terceiros e as relações de trabalho dele decorrentes”.

16 Nos últimos 12 anos, o governo investiu em políticas de transferência de renda, a partir das quais mais de 36 milhões de pessoas que se encontravam abaixo da linha da miséria, saíram da extrema pobreza, e o Brasil deixou de fazer parte dos países que figuram no mapa da fome no mundo. Além da inclusão social pela via do consumo, em virtude das políticas de transferência de renda, também investiu no acesso à educação superior para a população pobre (REUNI, PROUNI, FIES); instituiu ou ampliou cotas de ingresso nas universidades para negros; qualificou professores do ensino básico e fundamental com a oferta de graduações intervalares das universidade públicas (PARFOR); efetivou programas de 1º emprego a jovens; garantiu a presença de médicos da atenção básica às unidades de saúde das mais recônditas cidades do país (Mais médicos); aumentou o número de Benefício de Prestação Continuada/BPC (atualmente são mais de 4 milhões de beneficiários); ampliou a rede de saúde mental, etc. Além de instituir as Redes de Atenção à Saúde e, com isso, a própria Rede de Atenção Psicossocial (Portaria GM/MS n. 3.088/2011), vale fazer referência ao número de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), implantados nos últimos 13 anos para efeitos de comparação. Segundo dados requeridos diretamente ao Ministério da Saúde, em 2002, havia 424 CAPS; em 2015, há 2241.

políticas sociais abriram larga avenida para o desfile das embrionárias políticas de focalização (COSTA, 2009).

A focalização pode ser entendida como prática política sobre um recorte dos segmentos populacionais considerados mais atingidos pela política neoliberal – ou historicamente mais vulneráveis – para serem o foco dos principais direcionamentos políticos para a garantia de direitos fundamentais. Apesar do binarismo que acompanha a história dos direitos humanos, opondo direito público ao direito privado, humanos e sub-humanos e, correlativamente, aqueles que têm direitos e os que não têm, o processo de focalização parece ter buscado abrir uma brecha para a inclusão de pelo menos parte dos segmentos desde sempre massacrados e excluídos socialmente.

O expressivo impacto do Plano Real (1994) nas políticas públicas intensificou-se a partir do momento em que reverberou no interior das salas de decisão econômica internacional, das quais, portanto, saíram grandes temas necessariamente presentes e determinantes no Brasil até os anos 2000:

incentivo à centralização e insulamento das políticas macroeconômicas, em especial da política monetária, pela autonomia do Banco Central em relação ao Executivo e do Legislativo; a privatização das atividades de prestação de serviços públicos; a liberação do comércio externo e outras reformas orientadas para a abertura do mercado interno; a adoção de políticas focalizadas e de proteção seletiva aos

grupos mais vulneráveis aos processos de ajuste no modelo desenvolvimento [grifo nosso] (COSTA, 2009, p. 695).

Assim, nos anos 1990 e 2000, o Brasil cumpria o desafio de equacionar os gastos públicos sociais e econômicos na medida em que tentava saldar as dívidas sociais históricas e responder aos ditames econômicos internacionais. As políticas estratégicas de focalização, portanto, foram a saída pela porta dos fundos das políticas sociais básicas: a assistência social e os programas de segurança alimentar (bolsa-alimentação e Fome Zero) e de transferência de renda (bolsa-família). Essas ações, porém, não mantiveram ilesas as ações prioritárias constitucionais: entre 1995 e 2006, o financiamento em saúde e educação teve constante queda em relação ao PIB, com exceção dos últimos quatro anos, período em que a política de saúde apresentou crescimento no financiamento de municípios e estados (COSTA, 2009).

Concordamos com Coimbra, Lobo e Nascimento (2008, p. 98), que afirmam que “sempre estiveram de fora desses direitos à vida e à dignidade os segmentos pauperizados e percebidos como marginais: os deficientes de todos os tipos, os desviantes, os miseráveis”. Porém, arriscamo-nos a dizer que a focalização das políticas sociais, especialmente ligadas à transferência de renda e à segurança alimentar, parecem coadunar com a hipótese de Zaffaroni

(2007) quanto à necessária delimitação ou redução dos drásticos efeitos da governamentalidade neoliberal, com controle do seu braço punitivo voltado às camadas marginalizadas, para que o Estado de direito não desapareça.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (BRASIL, 2008), assinada em 2008 pelo Brasil – sobre a qual retomaremos nos capítulos 3 e 6 –, e a aprovação do Estatuto da pessoa com deficiência, em junho de 2015 (BRASIL, 2015), são deslocamentos importantes para a inclusão de segmentos historicamente considerados “sub- humanos” ou menos humanos, já que de alguma forma comprometiam o “ideal do homem” forjado no iluminismo e na Declaração dos Direitos do Homem, como sustentáculo da revolução burguesa. Não obstante, a figura do inimigo da sociedade continua sendo resguardada e atribuída seletivamente a alguns que devem ocupar o lugar do perigoso da vez que, segundo Zaffaroni (2007), seria aquele de quem se retira a condição de pessoa e se direcionam as garras do poder punitivo, muitas vezes, às margens dos limites do direito penal liberal, o que seria, para o autor, intolerável e inconciliável com o Estado de direito: “são as concessões do Estado liberal ao Estado absoluto, que debilitam o modo orientador do Estado

de direito [grifo do autor] (Ibidem, p. 13).

Em consonância às análises de Wacquant, Cecília Coimbra empresta a expressão “paradigma da insegurança” de Pegoraro (apud COIMBRA, 2001) para descrever o fenômeno que se instaura no Brasil já na década de 1980, anunciando o cenário das décadas seguintes, a partir de pelo menos duas questões: de um lado uma forte campanha das grandes mídias associando o fim da ditadura civil-militar ao aumento da criminalidade, colocando em voga discursos e práticas sobre a violência e perigos contra os quais a população deveria se

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