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A superação dos Hospitais Psiquiátricos Judiciários italianos

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 130-136)

ITINERÁRIOS DESVIANTES

Capítulo 2 MEDO E PERICULOSIDADE

3.3 O PROCESSO DE DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DO “LOUCO INFRATOR” NA ITÁLIA

3.3.1 A superação dos Hospitais Psiquiátricos Judiciários italianos

Desde 201243, vínhamos acompanhando as discussões sobre o fechamento dos Hospitais Psiquiátricos Judiciários italianos (Ospedali Psichiatrici Giudiziari/OPG) através das matérias divulgadas pelo Movimento StopOPG44. Este movimento reúne cerca de 40 associações e fóruns de trabalhadores e usuários da saúde mental, em toda a Itália, na luta pela abolição dos Hospitais Psiquiátricos Judiciários, já que a instituição não foi atingida pela lei n. 180, de 1978 – que obrigou o fechamento de todos os Hospitais Psiquiátricos do país – por ter sido parte da estrutura pública vinculada ao Ministério da Justiça, até 2008. Após a última prorrogação da data estabelecida para o fechamento dos seis OPG italianos, vi a possibilidade de realizar, por três meses (entre novembro/2014 e fevereiro/2015), o doutorado sanduíche na Itália, com o objetivo de acompanhar as discussões e negociações políticas para o fechamento dos OPG.

 

42 Notas da fala na palestra Progetto : “Luce e Libertà”, proferida por Gaspare Motta no Corso di

aggiornamento professionale. L’OSPEDALE PSICHIATRICO GIUDIZIARIO: Fondamenti storici, giuridici, culturali Saperi, indirizzi, organizzazioni per il suo superamento, em Salerno, em 16 de janeiro de 2015.

43 Em julho 2012, realizei breve visita à cidade de Trieste com o objetivo de buscar informações sobre o alcance da Reforma Psiquiátrica às pessoas em medida de segurança, bem como de conhecer parte da rede de serviços da saúde mental da cidade italiana onde Franco Basaglia deu continuidade à Reforma Psiquiátrica com o fechamento do Parco San Giovanne, grande espaço asilar que chegou a ter 1.200 pessoas internadas; experiência que resultou na aprovação da Lei n. 180/1978.

Das medidas de desinstitucionalização dos manicômios judiciários realizadas, na última década, apresentamos resumidamente, a seguir, aquelas que tiveram maior impacto no modo como o processo vinha ocorrendo na Itália. Embora sempre tenha sido pauta entre os militantes da Reforma Psiquiátrica italiana, apenas a partir de 2008, alguns acontecimentos começam a mover esta instituição do seu, até então, cômodo lugar. Desde a década de 1990, a país tentava buscar respostas ao problema da saúde no sistema prisional, mas em 2008, a Comissão de Prevenção à Tortura do Conselho da Europa visita um Hospital Psiquiátrico Judiciário italiano e exige explicações ao governo italiano quanto à precariedade extrema do espaço e ao tempo ilimitado das medidas de segurança.

Em abril de 2008, o governo italiano lança o Decreto del Presidente del Consiglio dei

Ministri/DPCM - 1 aprile 2008 (ITÁLIA, 2008), que define as modalidades e os critérios para

a transferência das questões relativas à saúde do Departamento de Administração Penitenciária e do Departamento da Justiça Juvenil, do Ministério da Justiça, para o Serviço de Saúde Nacional. O Ministério da Saúde passa, então, a ser o responsável pelas instalações, instrumentais e equipes de saúde nos presídios, centros de internação, manicômios judiciários e todos os demais estabelecimentos prisionais. Assim, o vínculo institucional dos servidores da área da saúde dos Hospitais Psiquiátricos Judiciários, antes subordinados ao Ministério da Justiça, passa ao Ministério da Saúde, e esta passa a financiar as ações de saúde no mesmo, o que abre espaço para a Reforma psiquiátrica italiana avançar neste campo. Em seu Anexo C, o documento determina que um programa específico para os OPG e para as Casas de Tratamento e Custódia45 (Case di Cura e Custodia/CCC) deveria ser ativado para a passagem gradual da medida de segurança ao tratamento em saúde regionalizado, nos serviços territoriais, com vistas a ser possível realizar intervenção terapêutica reabilitativa. Define, através uma série de ações a serem pactuadas entre o Ministério da Saúde e Ministério da Justiça, um programa para a superação dos OPG e, para tanto, determina que recursos financeiros de ambos os Ministérios sejam a este propósito destinado.

Apesar do que previu o anexo C do DPCM/2008, as negociações para o Programa de Superação caminharam a passos lentos, até que em 2011, uma comissão de parlamentares do Senado italiano, coordenados pelo Senador Ignazio Marino, realizou uma espécie de Comissão Parlamentar de Inquérito/CPI sobre os seis OPG italianos, nos quais se

 

45 Espécies de Alas de Tratamento Psiquiátrico existentes no interior dos presídios italianos, onde os presos com sentença para cumprimento de medida de segurança aguardavam vaga nos OPG para, então, serem encaminhados.

encontravam quase 1400 pessoas. A Comissão realizou um vídeo46 no interior das horrendas estruturas manicomiais judiciárias e levou à público a péssima situação das pessoas em medida de segurança, o que tornou vexatória a sua existência e mobilizou o processo de superação dos OPG de modo mais contundente. No mesmo ano, surge o Movimento

StopOPG, com o objetivo de acompanhar, de perto, o processo de superação dos OPG

italianos, proposto em Projeto de Lei do Senado, já que os discursos do Parlamento mais lhes anunciavam o simples fechamento das estruturas – comparável aos processos de desospitalização – do que a sua superação pelas vias da desinstitucionalização.

Em 2012, o parlamento aprova a lei n. 9/2012 que determina o fechamento dos OPG e a criação das Residências para a Execução das Medidas de Segurança (REMS). Foi prevista a liberação de 180 milhões de euros com a proposta de criar aproximadamente 70 REMS, com pelo menos 900 vagas, com fins de territorialização do cumprimento das medidas de segurança nos novos serviços, sob gerência da saúde. Sob coordenação do Instituto Nacional de Saúde italiano e pressão do Movimento StopOPG, uma avaliação psiquiátrica nacional foi realizada na população dos seis OPG, financiada pelo Ministério da Saúde, com o objetivo de obter “informações confiáveis sobre o diagnóstico psiquiátrico, o funcionamento pessoal e social e as necessidades dos pacientes psiquiátricos autores de delito; informações indispensáveis para a construção das intervenções terapêutico-reabilitativas apropriadas e individualizadas” (LEGA et al., 2014, p. 04).

O Movimento StopOPG pressionava o governo para a realização da avaliação psiquiátrica nacional em virtude da necessidade de verificar, a partir das condições clínicas e sociais dos presos/internados nos OPG, em que medida todas essas mini-estruturas, ainda manicomiais, eram de fato necessárias. Naquele momento, já havia 826 internos, para os quais foram elaborados Projetos Terapêuticos Singulares a partir da avaliação nacional realizada. Segundo o “Relatório sobre o estado de atuação das iniciativas para a superação dos OPG” (ITÁLIA, 2014), de setembro de 2014, apresentado pela Câmara dos Deputados ao Parlamento italiano, do total de pessoas avaliadas, aproximadamente 52% eram imediatamente “desinternáveis”; 40% não foram assim considerados em virtude de problemas clínicos – o que, obviamente, o Movimento critica, considerando que a estrutura penitenciária jamais será adequada para o tratamento de questões clínicas apontadas como impeditivas para a desinternação desse contingente; afinal embora a maioria dos servidores dos OPG fossem da  

46 Parte 1 e 2 do vídeo disponíveis em: <https://www.youtube.com/watch?v=zXRY6QT8W2I> e <https://www.youtube.com/watch?v=dxcxo2a6oTk>

área da saúde, sua estrutura e cultura ainda eram carcerárias. E, na mesma avaliação psiquiátrica nacional, 8% da população total, algo em torno de 70 pessoas, foram consideradas “perigosas socialmente”, o que na realidade o Movimento StopOPG entende como pessoas para as quais não se conseguiu criar um projeto terapêutico que pudesse responder às suas necessidades, considerando os perversos efeitos dos longos anos de institucionalização, isto é, considerando a periculosidade da instituição que os reduziu aos sobreviventes destes campos de exceção. Para Del Giudice (informação verbal)47, “Os OPG são depósitos da miséria; destino de abandono; de distanciamento muitas vezes indicado pelos próprios Centros de Saúde Mental”, quando estes são fracos e não assumem a responsabilidade sanitária devida. Além da periculosidade das instituições contra as quais é preciso se prevenir (ROTTELI, 1990), Del Giudice diz ainda que “é preciso realizar avaliação da periculosidade olhando o contexto social para onde o egresso deverá voltar” e garantir que possa ir a outro lugar, caso o retorno à casa não o permita desenvolver suas capacidades e reconstituir-se como pessoa.

O Movimento defende que o princípio presa in carico deva ser assumido pelas estruturas sanitárias de cada cidade para que realizem o acompanhamento contínuo de todos os egressos e o acolhimento institucional breve daqueles que assim necessitarem, prescindindo das novas estruturas para o cumprimento da medida de segurança, apelidadas pelo Movimento de “mini-OPG”. Estas estruturas, conforme previstas em Lei, permanecerão sob um regimento penitenciário, embora com operadores da saúde mental, o que muito provavelmente os convocará a retomar a função de polícia e controle punitivo que, a tanto custo, conseguiram superar em algumas cidades italianas. Para os militantes basaglianos, tratamento e custódia são definitivamente inconciliáveis, o que torna as REMS uma aberração. Para o Movimento StopOPG, além da necessidade de conseguir diminuir a quantidade de REMS, já que não era possível negociar sua total ausência, uma outra necessidade para a superação dos OPG era o convencimento dos serviços locais de assumirem os egressos a partir do princípio da responsabilidade sanitária, caso contrário, essas pessoas novamente permaneceriam ad eternum nas novas estruturas. Para D’Anza, a superação dos OPG depende do quanto os Departamentos de Saúde Mental estarão dispostos a acompanhar os egressos em processos reabilitativos através de boas práticas de desinstitucionalização, para confrontar os magistrados, assegurando que os Projetos Terapêuticos Reabilitativos Individuais (como  

47 Seminário Lo stato e l’attuazione L. 9/2012 proferido por Giovana Del Giudice no Curso de Atualização para a Superação dos Hospitais Psiquiátricos Judiciais, ocorrido na cidade de Salerno, em 18 de dezembro de 2014.

chamam os Projetos Terapêuticos Singulares) são capazes de substituir a internação em OPG, bem como as REMS, onde passarão a ocorrer, predominantemente nas cidades em que os Departamentos não estiverem dispostos a tal (informação verbal) 48.

Em 2013, a aprovação da lei n. 57, dentre outras determinações, altera a lei n. 9/2012, estabelecendo nova data – 01 de abril de 1014 – para o fechamento dos OPG, data que será novamente alterada com a aprovação da lei n. 81/2014, pelo Parlamento, para um ano depois, 31 de março de 2015. A nova Lei traz várias alterações significativas com relação as REMS, embora continue problemática, já que continua prevendo destinação de recursos da Saúde a essas estruturas, o que deveria ser exclusivamente direcionado aos serviços substitutivos já existentes no território. E também, segundo Del Giudice (informação verbal)49, porque mantém a noção de periculosidade sempre referida ao indivíduo, como um a priori, desconsiderando o meio social onde vive, o que reafirma a função de controle social desse do dispositivo para o manejo da miséria. Na mesma aula, ela afirma que:

Apesar da Lei 81/2014 não propor o superamento dos OPGs, mas apenas seu fechamento, quando prevê as REMS como espaço de cumprimento das medidas de segurança, a lei estabelece a obrigatoriedade de construção do Projeto Terapêutico Reabilitativo Individual para cada interno dos OPGs existentes, apoiados no Budget

di Salute (PTRI/BdS).

Além disso, apesar de a Lei não ter alterado o Código Penal, nessa matéria, o que representa o principal nó jurídico que sustenta a existência dos OPG, a nova lei torna norma adotar medida alternativa à internação, tornando as REMS espaços cada vez mais residuais, na medida em que os Departamentos de Saúde Mental assumirem a devida responsabilidade diante do percurso terapêutico reabilitativo de cada egresso. A Lei também prevê que cada uma das 20 regiões (quase equivalência unidade federativa) da federação deva determinar quantos leitos em REMS de fato serão necessários para atender aos seus munícipes egressos, destinados apenas àqueles que não forem assumidos pelos serviços territoriais, incentivando os serviços a orientarem-se pelo princípio presa in carico para viabilizar a diminuição do número de REMS e do número de leitos por REMS, em cada Estado e, assim, viabilizar a conversão do recurso excedente para o fortalecimento dos serviços de saúde mental no território. Deste modo, o Movimento StopOPG faz campanha intensa para o fechamento dos OPG na data prevista e três meses depois da data de fechamento, o Movimento publica o  

48 Fala proferida por Vitor D’Anza na mesa-redonda Il ruolo dei servizi per la salute mentale, ocorrida em 16 de janeiro de 2015 no curso L’ospedale psichiatrico giudiziario. Fondamenti storici, giuridici, culturali. Saperi, indirizzi, organizzazioni per il suo superamento na cidade de Salerno

49 Seminário Lo stato e l’attuazione L. 9/2012 proferido por Giovana Del Giudice no Curso de Atualização para a Superação dos Hospitais Psiquiátricos Judiciais, ocorrido na cidade de Salerno, em 16 de dezembro de 2014.

“apelo”: “Fechar verdadeiramente os OPG é igual a mais serviços de saúde mental e não

REMS”, e assim permanece em luta para o fechamento definitivo dos OPG, através da

desinternação responsável dos mais de 600 internos ainda presentes nos espaços, em julho de 2015, para a não abertura de nenhuma REMS e para o investimento exclusivo nos serviços territoriais de saúde mental.

Em conversa com o Francesco Mogurno, vice-diretor do OPG de Aversa, médico psiquiatra da equipe de desinstitucionalização, ele destacou que o legislador responsável pelo desenho final da lei n. 81/2014, num dos primeiros módulos do curso de Salerno, explicava que a Itália não tem a cultura necessária para realizar a superação dos OPG. Segundo o legislador, a sociedade rejeita a ideia de que a pessoa com transtorno mental em conflito com a lei não seja perigosa, pois não foi preparada para pensar diferente, assim como os magistrados. Por isso, as REMS, como foram propostas, carregam exatamente a mesma lógica dos OPG: apesar da presença da saúde na gestão das novas estruturas penitenciárias para o cumprimento das medidas de segurança, quem determina o que é melhor para o interno é a segurança pública. O vice-diretor do OPG completa: “a última palavra será a do comandante. Como executar PTRI sob gestão militar?” (informação verbal)50.

A oportunidade de passar uma semana frequentando o OPG de Aversa, na Região da Campagna, no sul da Itália, possibilitou-me entender a estratégia de desinstitucionalização, instituída por todos esses normativos, desde 2008 (com o Anexo C do DPCM), para os Departamentos de Saúde Mental das Regiões onde se encontram os seis OPG italianos:

Sicilia, Campagna, Emilia Romagna, Toscana, Lombardia. Em resumo, foram encaminhadas

grandes equipes para “a Superação dos OPG” (Il Superamento degli OPG), as quais deveriam elaborar Projetos Terapêuticos Reabilitativos Individuais para cada um dos internos, já em articulação com os serviços territoriais que iriam acolhê-los quando egressos, num movimento de convencimento das equipes dos serviços territoriais para envolverem-se no processo. Além dos PTRI, as equipes realizavam atividades reabilitativas nos OPG e busca ativa das suas famílias, articulando benefícios e outras possibilidades de moradias, nos casos de ausência da família ou dos vínculos familiares necessários ao processo de desinstitucionalização. Em Aversa, a equipe para a Superação do OPG tinha aproximadamente 130 profissionais, dentre os quais 25 médicos, 7 psicólogos, 13 assistentes sociais e vários técnicos de reabilitação. A equipe começou a atuar em 2011, quando havia quase 300 internos. Segundo o diretor da equipe, Raffaello Liardo, em três anos, entraram 386 pessoas e saíram 549. No final de 2014,  

todos os internos haviam sido encaminhados ao OPG; Não havia mais nenhum interno há mais de um ano no estabelecimento. Era hora de fechar as portas de entrada e abrir apenas a porta de saída (informação verbal)51.

No último contato feito com o diretor, em 22 de maio, logo, depois da data oficial de fechamento dos OPG, ele fala sobre a situação de Aversa:

Dal 1° aprile gli OPG sono chiusi e stiamo dimettendo tutti i ricoverati. Ad Aversa ne sono rimasti ad oggi circa 60 e le REMS sono ancora poco utilizzate. I magistrati sono ancora disorientati e non sanno come fare: stanno chiedendo sempre dove mandare i rei con patologia mentale. Spesso cerchiamo di convincerli a mandarli in semplici strutture sanitarie. Nell'ASL di Caserta abbiamo aperto solo una REMS a Mondragone (solo 8 posti) in attesa di aprire a settembre quella di Calvi Risorta (20 posti). Si sta procedendo lentamente così che tutti abbiano chiaro che i malati si curano e non si rinchiudano52 .

3.4 A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO BRASIL

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