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Impasses e desafios à Reforma Psiquiátrica no Estado do Pará

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 147-152)

ITINERÁRIOS DESVIANTES

Capítulo 2 MEDO E PERICULOSIDADE

3.4 A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO BRASIL No Brasil, a discussão sobre as pessoas em medida de segurança ainda é bastante

3.4.1 Impasses e desafios à Reforma Psiquiátrica no Estado do Pará

Como vimos, a manutenção dos manicômios não permite a criação de novas respostas às questões consideradas mais complexas, o que alimenta a lógica do “revolving door” (porta giratória) – aqui não no sentido proposto por Foucault (2001) (Ver p. 75) – e a própria cronicidade desse sistema. O “revolving door” quer dizer que, mesmo que se busque reduzir o número de internações e aumentar as altas, há proporcionalmente o aumento das recidivas pelo abandono dos casos mais difíceis, que acabam sofrendo um processo de transinstitucionalização, isto é, a passagem de uma instituição fechada a outra (do manicômio para casa de repouso, comunidades terapêuticas, asilos para idosos, manicômios apelidados de Unidades de Reabilitação Psicossocial56; ou dos abrigos da assistência social aos centros de

 

56 No Pará, há um espaço manicomial cinicamente chamado deste modo, onde foram depositados os doentes crônicos do antigo manicômio, fechado após incêncio em 1989, e mais atualmente os egressos do HCTP, sobre o qual falamos adiante.

internação, para a prisão etc.). Rotelli, Leonardis e Mauri (1990, p. 21) falam que quando a desinstitucionalização é praticada como desinternação, desospitalização ou transinstitucionalização, os efeitos de abandono são evidentes e, o que é pior, são usados contra a Reforma Psiquiátrica: como justificativa para argumentar a favor da necessidade de mais manicômios. Segundo De Leornadis (1998) a periculosidade deve ser entendida como um resíduo institucional que não pode ser identificado ou atribuído como próprio de determinados grupos sociais, mas efeito das instituições que buscam reduzir as existências e seus sofrimentos a soluções institucionais previamente definidas, codificadas e, portanto, fragmentárias e seletivas. Quando não há uma compreensão do que seja o processo de desinstitucionalização, é a periculosidade das instituições que gerará novas formas de segregação em circuitos de internação, com efeitos de cronificação e/ou abandono.

Pergunto: o investimento político na direção do fechamento dos Hospitais Psiquiátricos, sem o devido cuidado com as estruturas análogas ao manicômio convencional, não provocariam quase que automaticamente um processo de desospitalização ou transinstitucionalização? Na Itália, apesar do exemplar modelo triestino, na Região da Emilia Romagna, os Hospitais Psiquiátricos fecharam por força da lei e o resultado foi a manutenção da institucionalização de boa parte da população em outras instituições fechadas. O Reino Unido passou de 900 para 6 mil leitos nos últimos anos e gasta 165 mil libras por ano para manter uma pessoa institucionalizada: os esforços para o fechamento dos Hospitais Psiquiátricos que abrigavam provocaram, em poucos anos, o transbordamento dos HCTPs57. Ainda segundo a mesma pesquisa mencionada por Mezzina, realizada sobre processo de reinstitucionalização: em seis países europeus a diminuição de leitos psiquiátricos foi compensada por leitos em estruturas judiciárias, já que, no cruzamento do cárcere e das estruturas psiquiátricas de internação – com suas funções de controle social punitivo da miséria –, a não superação da noção de periculosidade faz convergir excessos de hipercarcerização e psiquiatrização dos problemas sociais. Ele completa, afirmando que:

A Itália é o único país do mundo que tem o tratamento obrigatório pautado de fato na necessidade de cuidado/tratamento da pessoa e não em noções de risco e perigo que justifiquem intervenções de contenção e controle que possam requisitar intervenção jurídica. E o TSO (Tratamento Sanitário Obrigatório) não dura mais que uma semana.

 

57 Notas da fala do Seminario “La disciplina e la situazione dei manicomi giudiziari in Europa” proferida por Roberto Mezzina, no curso L’ospedale psichiatrico giudiziario. Fondamenti storici, giuridici, culturali. Saperi,

Retomando Picth (2003), o fechamento dos Hospitais Psiquiátricos (em cidades com rede territorial substitutiva forte) da Itália é o que evita que se crie um “núcleo duro” com um circuito de seleção e de reenvio dos casos para os quais não se consegue encontrar outras respostas, exatamente pela resposta pronta de apartação das pessoas, em situações mais complicadas, em instituição separada. A inexistência dessa instância dura, tornaria ainda mais complicada a relação da psiquiatria com o sistema de justiça penal, o que consideraríamos positivo para o equacionamento do problema se passasse a ocorrer de modo distinto dos já fracassados: “a área cinza entre a perturbação social e psiquiátrica, que era de competência do manicômio, se torna objeto de redefinição e conflitos institucionais, como também políticos e sociais” (Ibidem, p. 194).

Em Belém/PA, a Lei Municipal de Saúde Mental (n. 7892/1998) para a reorientação do modelo de atenção às pessoas com transtornos mentais surgiu no final da década de 1990, junto com o Movimento da Luta Antimanicomial, núcleo Pará. Nesse período, foram inaugurados, pela prefeitura, quatro Centros de Atenção Psicossocial/CAPS (1 CAPS ad III, 1 CAPS III, 1 CAPS I, 1 CAPS i). Em meados da década de 2000, a estes se somam mais 5 serviços (CAPS ad III, 3 CAPS III, 1 CAPS II), desta vez implantados pelo governo do Estado, permanecendo até hoje sob o mesmo nível de gestão. Na Rede de Atenção Psicossocial do território paraense, há apenas dois Serviços Residenciais Terapêuticos, ambos localizados em Belém. O primeiro foi inaugurado em 2010, o segundo em 2015. Há uma Unidade de Acolhimento Adulto, um Consultório na Rua, nenhum Centro de Convivência. Apenas em 2014, a prefeitura de Belém implantou Núcleos de Apoio à Saúde da Família, embora tenham sido regulamentadas em 2008 para formação das Equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF), os quais permitiriam maior articulação entre saúde mental e atenção básica, mobilidade que, até então, era bastante frágil, para não dizer inexistente. Em 2012, no Estado do Pará, havia 60 CAPS implantados e 11 aguardando habilitação, para os seus 143 municípios.

Até duas décadas atrás, nossa história não diferia tanto do que ocorria no resto do país. Na mesma lógica de exclusão social da loucura, o Hospital dos Alienados foi criado em 1892, o qual passou a ser chamado Hospício dos Alienados Juliano Moreira, em 1937. No século XIX, até a data da inauguração do Hospital, o Código de Postura do município de Belém estabelecia “[p]rovidências sobre loucos, bêbados e feras em jaula (GRAM-PARÁ apud FUCKNER, 2009, p. 79) e destinava os perturbadores da ordem às prisões, já que considerados de alta periculosidade. A partir de 1865, passam a ser enviados a uma das duas

enfermarias que funcionavam como casas de assistência e caridade, dentro do Hospital Geral Santa Casa de Misericórdia. Em 1873, fica pronto um espaço exclusivamente destinado aos alienados, local que cinco anos depois, com um surto epidêmico de varíola, passa a abrigar os variolosos, sob administração da Santa Casa. Devido à pequena quantidade de vagas, apenas 30, logo vai se exigir outro espaço que possa, além de abrigar maior número de alienados, passar da caridade a espaço de formação científica e aplicação do saber médico dos alienistas, quando, então, surge o Hospital de Alienados.

Com o incêndio no Hospital Juliano Moreira, ocorrido em 1982, o espaço foi parcialmente desativado em 1984, deixando apenas um pavilhão e um anexo em funcionamento, até o seu total fechamento em 1989. Embora o anexo tenha mantido 30 leitos para internação breve, atendimentos ambulatoriais e de urgência e emergência, o fechamento do Hospital causou forte impacto na população, já que não havia outras estruturas de atendimento ambulatoriais ou com leitos para internação, levando muitos ex-pacientes às ruas. As pressões da comunidade e da mídia sobre o governo o fez tomar providências: inaugurou, em 1989, a Unidade Psiquiátrica do Hospital das Clínicas Gaspar Viana, tornando-se “Unidade de Referência Psiquiátrica, dotada de ambulatórios, de atendimento de urgência e emergência e de trinta leitos para internação breve” (BRAGA, 2009, p. 52). O “HC”, embora com internações que deveriam ser breves, permanece existindo, até hoje, como um “núcleo duro” com o circuito de seleção e reenvio dos casos difíceis, sobre o qual sempre ouvimos dos usuários dos serviços substitutivos, que já estiveram internados lá, queixas de violência e graves violações de direitos.

No mesmo ano do incêndio do Hospital Juliano Moreira, foi inaugurado o Centro Integrado de Assistência Social do Pará/CIASPA, projeto criado dez anos antes “com o objetivo de atrair mais uma vez a ortodoxa psiquiatria paraense” (MOTA, 2012, p. 67) para atender aos pacientes crônicos do Juliano Moreira e que, depois, passou a abrigar os remanescentes do asilo Dom Macedo Costa. Segundo Bezerra e Machado (apud GUERRA, 2004, p. 86), o CIASPA foi “planejado e patrocinado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) na França, sob o modelo idealizado por Paul Sivadon nas trilhas do clássico da psicodinâmica Henry Ey”. Localizada inicialmente em Benevides, foi, posteriormente, transferida para Ananindeua (municípios da Região Metropolitana de Belém), onde permanece ainda hoje numa pequena rua sem saída, na qual também estão localizadas outras instituições totais (unidades de internação para adolescente em conflito com a lei). Ironicamente chamada de Unidade de Reabilitação Psicossocial (URPS), mantinha, até o

término desta pesquisa, aproximadamente 25 pessoas institucionalizadas, em sua maioria idosas, com tendência a aumentar o número, considerando o novo público de egressos do HCTP transinstitucionalizados.

A história do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Pará tem particularidades: colocado em funcionamento em 2007, foi o último HCTP do Brasil, após a Lei da Reforma Psiquiátrica. Na ausência de equipamentos de desinstitucionalização no Pará para atender aos seus egressos, assistimos grave processo de transinstitucionalização em 2014, quando a presença do CNJ em Belém forçou uma medida articulada entre SUSIPE e SESPA para a retirada imediata de seis pessoas do HCTP – já com desinternação condicional determinada pelos juízes da 1ª e 2ª VEP, há alguns meses, chegando há um ano – dos quais quatro foram transferidos a dois CAPS III de Belém58, os outros dois foram encaminhados à, até então, única Residência Terapêutica do Estado59. Passado um mês, três delas foram transferidas ao antigo CIASPA, onde permaneceram até a conclusão desta pesquisa. Este acontecimento só afirma o corte racista e absolutista que guia as práticas de governo do Estado do Pará diante da população egressa do HCTP, população secularmente alijada de direitos, e o posiciona como avesso aos princípios constitucionais e aos pressupostos Estado Democrático de Direito. Este é o perfeito exemplo do perigo das instituições que apenas respondem ao poder e nunca às pessoas para manterem-se intactas em suas práticas de controle social punitivo.

No capítulo que segue, contaremos parte da recente história do HCTP, a partir dos fatos narrados por quem a viveu de perto, bem como apresentaremos sua dinâmica de funcionamento, estrutura, equipe, para então chegar à população lá institucionalizada, a partir do que chamamos de “Dispositivo Perfil”, um dos instrumentos de desinstitucionalização, criado no decorrer da pesquisa como máquina de fazer contar as vidas que não se conta ou sobre as quais não se conta.

 

58 Parte dos efeitos desse acontecimento é relatado no último caso do filme Crônicas (des)medidas, sobre o qual falamos no capítulo 4.

Capítulo 4

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