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A produção social do espaço no sistema capitalista

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Produção social do espaço nas periferias urbanas: redes religiosas, e migratórias, no município de Rio Grande da Serra.

2.1 Produção social do espaço urbano

2.1.1 A produção social do espaço no sistema capitalista

A formação de grandes cidades não é um fenômeno recente. O desenvolvimento da urbe fez parte, inclusive, das sociedades antigas. Em período pretérito a cidade funcionava, mormente, como centro político-administrativo, e nem sempre lhe coube a função de produzir os meios de subsistência. A cidade tal qual a conhecemos hoje é fruto de significativas modificações, engendradas no interior das relações sociais e produtivas, nos últimos dois ou três séculos. O implemento gradativo, mas, impactante, do processo de “modernização tecnológica” – revolução industrial – alterou, de forma sem precedentes, a estrutura econômica das sociedades modernas (SANTOS, 1979). A urbanização, na cidade contemporânea, é regida pelo sistema de produção capitalista (CASTELLS, 1975; 1983, HARVEY, 2009).

É no capitalismo, no contexto em que o “capital” se diversifica e, ao mesmo tempo, produz tensões internas que Castells – especialmente na obra A questão urbana (1983) –, analisa como o espaço é produzido. O autor foca sua análise na relação entre os indivíduos e o Estado, este como gestor do consumo coletivo de habitação e de serviços públicos.46 A cidade, nessa perspectiva, ganha contorno próprio e serve como “reprodutora

46 As principais críticas ao pensamento de Castells residem, essencialmente, na falta de uma análise mais

da força de trabalho”, pois, é nesse espaço que os indivíduos moram, estudam ou trabalham. O pensamento de Castells, sobre o processo de urbanização, é elaborado de forma a evitar cair no reducionismo da oposição cidade/campo, realizado por alguns dos primeiros estudiosos da “questão urbana”.

Simmel (1987), por exemplo, baseado num pensamento “evolucionista”, estabelece uma oposição (no sentido qualitativo) entre a cidade e o campo, formatando uma espécie de “cultura urbana”. Seguindo essa trilha, Wirth (1987) – menos afeito à concepção “dualista” por compreender que os espaços de campo e cidade se interpenetram – constrói, a partir de elementos como aglomeração, densidade e heterogeneidade, a noção de “urbanismo” como modo ou estilo de vida. Esses autores traçam um continuum que vai do campo à cidade. A crítica, que recai sobre essa teoria, é que ela se baseia na ideia de urbanização como um processo ligado, mais precisamente, ao “crescimento demográfico” das cidades.

Castells (1983), distante desse modo de pensar, busca a caracterização das cidades modernas que não se apoia nas diferenças, quantitativa e qualitativa, relativas ao campo, mas, acima de tudo, na própria estrutura urbana que surge a partir da ideologia capitalista. Referindo-se às grandes cidades, afirma: “O que distingue essa nova forma das precedentes não é só o seu tamanho (...), mas também a difusão no espaço das atividades, das funções e dos grupos, e sua interdependência segundo uma dinâmica social amplamente independente da ligação geográfica” (CASTELLS, 1983, p.29). A aglomeração, por si só, não define o urbano, que deve ser analisado em relação com o desenvolvimento técnico-cientifico e seu impacto nas relações sociais e modificações do espaço ao longo de tempo (SANTOS, 1979 e 2012; LIMONAD, 1999).

Castells (1983) trabalha com ideia de “sistema urbano”, tendo a cidade como polo organizador e integrador entre determinados processos. Seriam esses: a produção, entendida com força de trabalho, o consumo, especificamente de habitação e serviços, e pensado como reprodução da força de trabalho, a troca, como relação entre produção e consumo, e a gestão, visto como planejamento urbano. A difusão do transporte urbano (ferroviário e rodoviário), portos, sistemas de comunicação, organização de unidades produtivas, são exemplos de como a cidade se organiza no sentido de permitir, e otimizar, o fluxo de capital. Nesse processo, determinados “lugares” (terrenos, imóveis) se beneficiam mais do que outros, o que contribui para a especulação imobiliária.

Encontramos em Harvey (2009) uma construção teórica que se coloca em diálogo com o pensamento de Castells. Harvey considera a urbanização uma produção do capital. “Quando olho para a história, vejo que as cidades foram regidas pelo capital, mais do que pelas pessoas” (HARVEY, 2009, p.269). O autor reivindica o direito, de todos nós, em construir uma cidade que nos satisfaça. Para tanto será necessária uma luta contra o capital.

O direito à moradia – transformada em um “bem de consumo” pelo capitalismo (CASTELLS, 1983) – está submetida aos interesses especulativos da propriedade e da terra. “(...) para construir condomínios de luxo e casas exclusivas, os capitalistas têm de empurrar os pobres para fora de suas terras – têm de tirar nosso direito à cidade” (HARVEY, 2009, p.271). Para Harvey, as crises financeiras, dos últimos trinta anos, teriam origem na propriedade urbana. A recente crise, de 2009, dos Estados Unidos seria um exemplo disso.

O que formulam os autores citados acima, acerca da produção do espaço, permitem compreender questões como o porquê da concentração de indústrias, comércio e serviços, em uma determinada localidade, cuja “centralização” beneficia certas regiões em detrimentos de outras. O grau de importância que uma região adquire, ao longo de tempo, para a produção e reprodução do capital, determinará maior ou menor fluxo do transporte urbano, a fixação, ou não, de equipamentos públicos de qualidade, maior incentivo ao deslocamento de pessoas, maior ou menor valorização imobiliária. Então, o espaço se transforma em uma “mercadoria” e “se converte numa gama de especulações de ordem econômica, ideológica, política, isoladamente ou em conjunto” (SANTOS, 2012, p. 30).

A contribuição desses autores, que aqui interessa, é a “desnaturalização” da ordenação desigual do espaço. Assim, podemos analisar a urbanização no Brasil, mais propriamente em São Paulo, compreendendo que os processos de industrialização (ou falta dela) e migração (internas e externas) estão fortemente imbricados e relacionados à forma como o “espaço urbano” brasileiro se configurou, principalmente, ao longo do século XX.

Urbanização e produção do espaço

A análise da relação existente entre os processos de urbanização e industrialização contribui para que se possa melhor compreender como a introdução dos meios técnicos

científicos interferiu, nas grandes cidades, nas relações sociais de produção e trabalho e

como isso influenciou no deslocamento de pessoas (migração). De forma específica, ensejamos discutir como o espaço, no bojo de sua produção, se tornou elemento de “segregação”.

A urbanização no Brasil ocorreu, mais propriamente, nas primeiras décadas do século XX e, de forma pouco homogênea, privilegiou determinados lugares em detrimento de outros (MARICATO, 2008; SANTOS, 2008). Esse processo acelerado, pouco organizado, e fortemente excludente, caracterizou o crescimento das grandes cidades em boa parte da América Latina. Ao contrário do que ocorreu na Europa, em que a urbanização, impactada pela revolução industrial, ocorreu de forma gradual – permitindo que as cidades se adaptassem às transformações decorrentes do implemento de novos meios de produção –, na América Latina o avanço tecnológico imprimiu rápido processo de urbanização.47 Houve, entre os países industrializados e os ditos subdesenvolvidos, uma

urbanização desigual (SANTOS, 1982).

A questão explica a desproporção, no caso dos países de industrialização recente, entre o significativo crescimento demográfico, e a capacidade de fixação dos equipamentos públicos necessários para atender adequadamente o referido crescimento.48

Registre-se que a aglomeração em determinadas cidades, explicada em parte pelo processo migratório, se deu atendendo às necessidades de produção e reprodução do capital – por exemplo, mão de obra para indústrias e construção civil. O resultado foi a alta concentração de pessoas nas grandes cidades, com níveis desiguais de renda e atendimento do poder público (SANTOS, 2009; KOWARIC, 1993 e 2009).

O modelo brasileiro de urbanização – comparado ao europeu – foi tardio e acelerado. No limiar do século XX, pouco mais de 10% da população habitava as grandes cidades.49 Em 1940, a população urbana já representava 31,24% da população brasileira e 39% da Região Sudeste (SANTOS, 2008). No que diz respeito à formação das cidades,

47 Esse fenômeno deve ser visto considerando diferenças, entre países, no interior do que chamamos de

América Latina. Há países, ainda, pouco industrializados e com diminuta taxa de urbanização quando estabelecem-se comparações (Cf. BÁRCENA, 2001 - dados do CEPAL/Divisão de População).

48 Santos (1982) explica que além de um período mais longo, e gradual, para o processo de urbanização, as

cidades na Europa, viram-se, entre os séculos XVII e XIX, acometidas por surtos de doenças, gerando enorme mortalidade (infantil e adulta), o que, paradoxalmente, contribui para menor aglomeração de pessoas. A urbanização na AL se deu num momento em que avanços científicos, especialmente na medicina, contribuíram para a diminuição da mortalidade colaborando assim para aumento da densidade demográfica.

49 Em 1872, apenas três capitais brasileiras contavam com mais de 100 mil habitantes: Rio de Janeiro

(274.972), Salvador (129.109) e Recife (116.671). Em 1890, além dessas, apenas outras três passavam dos 50 mil moradores: São Paulo, Porto Alegre e Belém (SANTOS, 2008).

estas se constituíram com portes diferentes (SANTOS e SILVEIRA, 2006). Inicialmente, houve um aumento do número dos núcleos com mais de 20 mil habitantes, nomeado pelos autores de urbanização aglomerada. Posteriormente, ocorreria a urbanização concentrada que experimenta a multiplicação de cidades de tamanho intermediário, para, logo em seguida, alcançarmos o estágio de metropolização. Isso levaria ao aumento das cidades médias e milionárias (SANTOS e SILVEIRA, 2006).50 O crescimento das cidades

fomentou um mercado importante de bens e serviços, de novas técnicas produtivas, ampliação das redes de transporte e comunicação, constituindo, de forma geral, espaços de maior “aglomeração” (SINGER, 2002; SANTOS e SILVEIRA, 2006).

A industrialização também se desenvolveu nas primeiras décadas do século XX.51

Até 1930 se mostrou sem grande magnitude, e, fortemente ligada à indústria do café – sua produção e circulação – principalmente em São Paulo. Pode-se dizer que industrialização, no Brasil, não começou como “grande indústria”, e os principais grupos econômicos surgiram (último quarto do século XIX) para substituir a produção artesanal e doméstica e apenas com o tempo se tornaram “grandes” (MARTINS, 1981). Para Furtado (1980), Santos e Silveira (2006), a industrialização, nas primeiras décadas do século XX, ocorreu de forma “não intencional”. Somente a partir de 1945/1950, ocasião em que a metrópole industrial passaria abrigar todos os tipos de fabricação, vigoraria a industrialização “intencional”.52

Como observado, anteriormente, não é apenas a concentração de pessoas que caracteriza o processo de urbanização. Os grandes centros urbanos se distinguem, igualmente, pela concentração de indústrias, comércio e serviços (públicos e privados). Santos (2008), ao discutir a urbanização brasileira, se refere às transformações nas cidades (centros urbanos) a partir do desenvolvimento dos meios técnico-científicos, distanciando- se dos meios naturais. Esses, que atualmente são também “informacionais”, dividem áreas regidas pelo automatismo, próprios à modernidade tecnicista, e áreas onde sua presença é exígua (ibidem).

50 Dados sobre o crescimento das cidades brasileiras ver Santos e Silveira (2006, especialmente o cap. 09.). 51 Considerando “urbanização” e “industrialização”, nas sociedades modernas, como fenômenos imbricados,

é possível pensar que um conjunto de fatores contribuiu para que, no Brasil, ocorressem somente mais para o final do século XIX. Entre eles: a não permissão, por parte da Metrópole, que suas colônias se industrializassem. Problemas com recursos energéticos (o Brasil não tinha “carvão”) e o favorecimento a determinados grupos, entre eles, os latifundiários (BASTIDE, 1978).

52 Esse período marca a chegada das indústrias automobilísticas na Região do Grande ABC (KLINK, 2001;

GARCIA, 2007). Ressalte-se que já havia, em período anterior, indústrias na região concentradas principalmente, no ramo têxtil (FRENCH, 1995).

Nas áreas em que a tecnologia, científica e informacional, se desenvolveu (entre o final do século XIX, e ao do longo século XX) houve, em alguma medida, o crescimento das cidades, e, em perspectiva dialética, maior concentração industrial. Isso porque, invariavelmente, as indústrias optam por se “concentrar” em regiões que, de alguma forma, tenham ao seu redor os insumos de que precisa para redução de custos e maior produtividade. Não trataremos da complexidade que envolve o tema dos diferentes níveis de industrialização brasileira, mas, tal reflexão tem grande relação com a produção e distribuição desigual da riqueza, consequentemente com a produção da pobreza urbana (Santos, 2009).

Baseamos-nos, para tal afirmação, na ideia, proposta por Santos, de que as transformações tecnológicas levaram à formação de dois “circuitos econômicos” – visto aqui como fluxos internos entre dois subsistemas de uma estrutura urbana global (SANTOS, 1977, 1979 e 2009). O autor sugere um “circuito superior” e um “circuito inferior” da economia. Parte do princípio de que a cidade do ponto de vista da estrutura econômica – com os processos de “modernização” e “aumento do consumo” – não deve ser vista como um todo homogêneo. De maneira simplificada, digamos que o circuito superior seja formado, por exemplo, por grandes indústrias e redes de supermercados, cuja produção somente pequena parcela da sociedade tem acesso. O circuito inferior da economia, destinado a produzir para as massas, é formado pela pequena indústria e comércio e muitas vezes pelo setor informal.

Um dos dois circuitos [o superior] é o resultado direto da modernização tecnológica. Consiste nas atividades criadas em função dos progressos tecnológicos e das pessoas que se beneficiam deles. O outro [o inferior] é igualmente um resultado da mesma modernização, mas um resultado indireto, que se dirige aos indivíduos que só se beneficiam parcialmente ou não se beneficiam dos progressos técnicos recentes e das atividades a eles ligadas (SANTOS, 1979, p.29).

A existência, como premissa, dos dois circuitos da economia nos impele a pensar a “pobreza urbana” como uma questão complexa. Não é possível explicá-la, tão somente, pela falta de esforço, ou iniciativa pessoal, dos indivíduos agravada pela falta de educação ou qualificação. Tampouco é adequado entendê-la como decorrente da falta de emprego, habitação, ou equipamentos públicos, gerada simplesmente pela “pressão demográfica” fruto do processo migratório (SANTOS, 2009). O processo parcial, e precário, de inclusão

(MARTINS, 2012)53 a que as pessoas são submetidas é fruto, justamente, das relações

sociais produzidas no interior do sistema, e subsistemas, econômico. A pobreza é “socialmente produzida”, tanto quanto o espaço.

A ideia de produção do espaço está imbricada, no processo de análise de periferias urbanas, com conceitos que explicam os problemas enfrentados por sua população, como segregação e vulnerabilidade social. Antes, porém, de iniciarmos o exame desses conceitos, faremos breve exposição sobre a formação do “espaço territorial” de Rio Grande da Serra. O intuito é colocar em relevo elementos que contribuíram para sua caracterização como periferia urbana.

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