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Enquanto no período da “radiofonia educadora” a música popular não encontrava espaço, a partir da adoção do modelo comercial esse repertório passava a se fazer cada vez mais presente na programação radiofônica. O Programa Casé, apresentado pelo radialista Adhemar Casé na Rádio Philips, costuma ser tomado como um caso emblemático dessa modificação. Suas transmissões se iniciaram no dia 14 de fevereiro de 1932, ou seja, antes ainda de se autorizar o uso da publicidade no rádio. Conforme narrado pelo jornalista e crítico musical Sérgio Cabral (1990, p. 94), o apresentador havia dividido o programa em duas partes, sendo que na primeira irradiava música popular e, na segunda, música erudita.

Contudo, Casé foi percebendo que apenas recebia telefonemas com pedidos de música na primeira parte do programa, e não na segunda. Desse modo, foi reduzindo o período dedicado ao repertório erudito, especialmente em virtude de sua necessidade de encontrar anunciantes para cobrir as despesas do programa. Nesse contexto, a popularidade do rádio era a moeda de troca com a qual se negociava com os anunciantes em potencial. No caso do Programa Casé, era a música popular que estava atraindo mais ouvintes. Compreendendo esse mecanismo, Casé começou a contratar cantores para se apresentar no programa, dentre os quais se encontravam Almirante (1908-1980), Noel Rosa (1910-1937), Sílvio Caldas (1923-1942), Carmen Miranda (1909-1955), Gastão Formenti (1894-1974), Mário Reis (1907-1981) e Francisco Alves (1898-1952).

O interesse crescente de ouvintes pela programação radiofônica começou a motivar muitos a se dirigir pessoalmente aos estúdios para ver seus programas. Com isso, muitas emissoras tiveram que procurar locais maiores para acolher esse público, além de acomodar melhor seus técnicos e seus equipamentos. Assim, algumas estações passaram a dividir suas instalações entre, de um lado, o estúdio e, de outro, um auditório que comportasse um pequeno público, de modo que esses dois ambientes eram separados por um vidro (TINHORÃO, 1981, p. 50). Tempos depois, o próprio vidro caiu em desuso e as rádios se transformaram em pequenos “teatros-auditórios”, podendo abrigar um público cada vez maior e que, sem o isolamento acústico, passava a fazer parte da própria transmissão (TINHORÃO, 1981, p. 55-6).

Essa reestruturação dos estúdios, intimamente ligada à incorporação dos ouvintes à programação radiofônica, acabou gerando os chamados programas de auditório, nos quais os interlocutores interagiam com o público presente. O programa Caixa de perguntas, idealizado e apresentado por Almirante, cuja estreia aconteceu em 5 de agosto de 1938, transmitido pela Rádio Nacional, é lembrado como um pioneiro nesse gênero. Nele, Almirante oferecia prêmios em dinheiro às pessoas presentes no estúdio que acertassem as perguntas que lhes fossem feitas (AGUIAR, 2007, p. 29-30; TINHORÃO, 1981, p. 65). A partir dele, muitos outros programas nesse formato foram criados, levando muitas pessoas aos auditórios das rádios, que queriam conhecer as feições das vozes que ouviam em seus aparelhos receptores. O público presente era constituído, em sua maioria, por mulheres negras, que passaram a ser chamadas depreciativamente de “macacas de auditório” (PEREIRA, 1967, p. 108).

Para certos setores da crítica radiofônica, a presença do público gerava muito ruído sonoro nos programas, o que dificultava a audição do ouvinte domiciliar. Para além da questão estritamente acústica, uma parcela dessas críticas também condenava, implícita ou explicitamente, o comportamento das pessoas ali presentes. Esses dois elementos aparecem em um pequeno texto, publicado na Revista do Rádio de 26 de dezembro de 1953, que comemorava uma melhora nos programas de auditórios.

Melhorou sensivelmente o nível de comportamento nos programas de auditório. Já não se nota a balbúrdia dos assistentes, os gritos, as vaias, o excesso de entusiasmo. (...) E ganham todos com isso, inclusive os próprios ouvintes presentes nos auditórios. Afinal, rádio é para ser ouvido, antes de tudo, antes de

qualquer outra finalidade. Pobre dele, do rádio, no dia em que sua força e sua audiência ficassem restritas às áreas limitadas das plateias das emissoras. Há, do lado de fora, por toda a extensão que as antenas atingem, um mundo de ouvintes, legião imensa que não poderia ficar sacrificada, sujeita ao alarido e à impertinência dos frequentadores de auditórios. Felizmente a ordem volta a imperar. (MAIS ORDEM, 26 dez. 1953, p. 58)

Apesar da comemoração, o texto não deixa de expressar uma crítica aos frequentadores dos auditórios. Para isso, parte de um modelo de ouvinte ideal, que sabe que o “rádio é para ser ouvido” e convida o ouvinte que está no auditório para que adote uma postura compatível com essa ideia, pois supostamente também sairia ganhando. Para isso, o público do auditório deveria melhorar seu “nível de comportamento”, evitando “excessos de entusiasmo”, bem como o “alarido” e a “impertinência”.

Um exame da programação da Rádio Nacional de setembro de 1956, apresentado por Aguiar (2007, p. 160-3), revela que o gênero que tinha maior número de programas era o de auditório, com 22 diferentes títulos. Atrás dele ficavam os musicais, com 19 programas, as novelas e seriados com 17 e o radioteatro com 11. A listagem apresentada pelo autor traz ainda outros 15 programas classificados como de mistos e 8 rotulados como especializados.

Chama a atenção nessa lista o fato de que os programas musicais, ao menos em sua quantidade, superavam até mesmo as novelas9. A presença da música no

contexto radiofônico se intensifica ainda mais ao se lembrar que muitos cantores também se apresentavam nos programas de auditório. Além disso, a se julgar pelo seu título, alguns programas classificados pelo autor como “de auditório” parecem se dedicar à música, como são os casos de A voz da RCA Victor, Nas asas das canções, Placar musical e Seleções musicais ABC. O mesmo pode ser afirmado em relação aos programas rotulados como mistos, dentre os quais podem ser citados Música e beleza, Nova história do Rio pela música e Recolhendo o folclore. Por último, o programa Discos Impossíveis, classificado como especializado, também parece abarcar a música.

Contudo, paralelamente à popularização da radiofonia e à proliferação de programas musicais dentro dela, havia indícios de certa segmentação na programação

9 Em uma pesquisa de opinião pública realizada no ano de 1947, apresentada por Ortiz (2006, p. 40-1), a ordem se inverte, de modo que as novelas aparecem em primeiro lugar, com cerca de 45% da preferência do público, e os programas musicais em segundo, com pouco menos de 20%. Dessa pesquisa, a categoria de “programas de auditório” está ausente.

das emissoras. Conforme discute o pesquisador Rodrigo Vicente (2014, p. 49), o chamado “horário nobre” do rádio costumava ser ocupado por programas de maior audiência, especialmente radionovelas, audições humorísticas e programas de auditório. Por outro lado, os “fins de noite” da programação radiofônica eram ocupados por programas voltados à música instrumental. Esse era o caso, por exemplo, de Quando os maestros se encontram, que era transmitido às sextas-feiras, às 21h40min, pela Rádio Nacional, contando com arranjos elaborados pelos maestros do cast da emissora. Além desse, pode-se citar também o programa Ritmos do Copacabana, que era irradiado a partir de 23h30min. diretamente da boate do hotel Copacabana Palace (VICENTE, 2014, p. 52).

Por fim, Vicente (2014) destaca o programa Música em Surdina, que também ocupava a mesma faixa de horário, e que deu origem ao Trio Surdina, conjunto que foi bastante elogiado por uma parcela da crítica musical em virtude de seu “apuro técnico” e seu “valor artístico”10. O conjunto era formado pelo violonista e guitarrista Aníbal Augusto

Sardinha, mais conhecido como Garoto (1915-1955), pelo violinista Fafá Lemos (1921- 2004) e por Chiquinho do Acordeon (1928-1993). De acordo com o pesquisador, a estética desse grupo

se coadunava com a das pequenas boates em voga, sobretudo, na zona sul do Rio de Janeiro, que eram frequentadas predominantemente por membros de uma fração da classe média que esteve no centro da vida noturna e boêmia de bairros como Copacabana e Ipanema no segundo pós-guerra. (VICENTE, 2014, p. 49)

As reflexões de Edgar Morin sobre a cultura de massa podem ser úteis para esclarecer o que se operava no contexto brasileiro. Segundo o autor, há um duplo movimento que se opera na cultura massificada: por um lado, ela visa abarcar um aspecto o mais amplo possível; por outro lado, cria novas estratificações em seu no interior (MORIN, 1984, p. 37). Morin identifica esse processo acontecendo no rádio, que buscou a partir da década de 1930 abarcar “todo o campo social”, mas também diferenciava seus ouvintes “pelas escolhas das estações e dos programas” (MORIN, 1984, p. 40-1). O autor

10 O Trio Surdina foi objeto da tese de doutorado de Rodrigo Vicente (2014), que traz discussões aprofundadas sobre o grupo. Em relação à origem do trio e às primeiras críticas que recebeu, ver o item “O início de uma nova era” (VICENTE, 2014, p. 47-52).

vai além e afirma que “essa diferenciação de gostos é também uma diferenciação social parcial” (MORIN, 1984, p. 41).

Tais discussões auxiliam na construção de um olhar sobre o contexto do rádio no Brasil. O aumento do número de emissoras, a ampliação de seu alcance, o surgimento de novos programas, a presença do público nos estúdios e nos auditórios, tudo isso aponta para um veículo de comunicação de massa que buscava ampliar ao máximo o seu alcance. Ao mesmo tempo, a programação radiofônica buscava diferenciar essa grande massa de ouvintes. Assim, em um extremo, apareciam os programas de auditório, que ocupavam o horário de maior audiência e contavam predominantemente com a presença de mulheres negras na plateia. Em outra extremidade, surgiam programas de música instrumental, como o Ritmos do Copacabana, transmitido diretamente de uma das boates da zona sul carioca, espaços por onde circulavam segmentos sociais de maior poder aquisitivo. Em outras palavras, à semelhança do que apontou Morin, as tendências à massificação e à segmentação também se delineavam no contexto radiofônico brasileiro, levando a música popular a igualmente se situar em torno dessas polarizações.