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A antítese central presente em “Hoje quem paga sou eu” pode ser compreendida, inspirando-se em Antônio Cândido (1970), como uma oposição entre os polos da ordem e da desordem. No caso, o polo da ordem é representado pelo lar e pelo trabalho, aos quais estão associadas as ideias de felicidade, sorte e bênçãos. Já o polo da desordem tem o bar com seu representante, associado à tragédia e desgraça. Em sua análise do romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida (1830-1861), Cândido identifica nele um “princípio estrutural” (CÂNDIDO, 1970, p. 77), que consiste na dialética da ordem e da desordem. Em suas reflexões acerca do personagem central do livro, Leonardo Filho, o crítico literário aponta que havia, de um lado, um hemisfério positivo da ordem, representado por personagens “que vivem segundo normas estabelecidas”. De outro, havia o hemisfério da desordem, do qual participavam personagens que viviam “em oposição [às normas] ou pelo menos

integração duvidosa em relação a elas”. Esses hemisférios funcionam “como dois ímãs que atraem Leonardo” (CÂNDIDO, 1970, p. 77).

Contudo, não é só no personagem central da trama que essas polaridades operam. O crítico mostra que o romance de Almeida como um todo consiste num “balanceio caprichoso entre ordem e desordem” (CÂNDIDO, 1970, p. 82), e que o livro se pauta por uma equivalência entre esses dois hemisférios (CÂNDIDO, 1970, p. 79). Diante disso, verifica-se no universo do romance “certa ausência de juízo moral” (CÂNDIDO, 1970, p. 78-9), no qual “o remorso não existe” (CÂNDIDO, 1970, p. 85). Em outras palavras, ao se pautar pelo equilíbrio entre ordem e desordem, Manuel Antônio de Almeida criou, em Memórias de um sargento de milícias, um “mundo sem culpa” (CÂNDIDO, 1970, p. 84).

Cândido também sinaliza que o jogo dialético entre ordem e desordem presente no romance era correlato ao que se manifestava na sociedade brasileira do século XIX, na qual seu autor viveu. Nas palavras do crítico, naquele contexto, a ordem era

dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz, que antepunha vinte mancebias a cada casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia. Sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificências, da sorte ou do roubo miúdo. (CÂNDIDO, 1970, p. 82)

Antônio Cândido afirma que, ao longo do processo de racionalização ideológica das sociedades, elaboram-se “pares antitéticos, entre os quais é preciso escolher, e que significam lítico ou ilícito, verdadeiro ou falso, moral ou imoral”, e que a antítese entre essas opções se torna tão mais intensa quanto mais rígida for a sociedade (CÂNDIDO, 1970, p. 84). A sociedade estadunidense aparece, para o autor, como um exemplo de intensa rigidez, uma vez que, em sua formação histórica, a lei religiosa e civil atuaram como uma foça constritora, “delimitando os comportamentos graças à força punitiva do castigo exterior e do sentimento interior do pecado. Daí uma sociedade moral” (CÂNDIDO, 1970, p. 86, grifo no original).

Contudo, “no Brasil, nunca os grupos ou indivíduos encontraram efetivamente tais formas”, de modo que outros modos de sociabilidade, mais espontâneos e menos sujeitos a uma lei rígida, “abrandaram os choques entre a norma e a conduta, tornando

menos dramáticos os conflitos de consciência” (CÂNDIDO, 1970, p. 86). Daí o “mundo sem culpa”, que se manifestava na sociedade brasileira do século XIX e que, conforme a análise de Cândido, serviu como princípio estruturador do romance de Manuel Antônio de Almeida.

Porém, ao contrário do que acontece nas Memórias de um sargento de milícias, em “Hoje quem paga sou eu” não existe um equilíbrio entre ordem e desordem; ao contrário, conforme já apontado, há uma oposição entre essas duas polaridades. Se a vida de Leonardo Filho consiste numa “oscilação entre os dois hemisférios” (CÂNDIDO, 1970, p. 78), o mesmo não pode ser dito sobre o personagem do tango de Herivelto Martins e David Nasser. Enquanto tinha lar e trabalho, ele até transitava pelo bar, mas se sentia desconfortável, como um estrangeiro; então, bebia rapidamente o que lhe ofereciam e voltava para seu domicílio. Por sua vez, quando se aproximou do hemisfério da desordem, integrando-se ao botequim, seu lar estava desfeito.

Também não se pode dizer que “Hoje quem paga sou eu” consista num mundo sem culpa. Isso se percebe, especialmente, quando o eu-lírico caracteriza seu antigo lar como um “mundo abençoado”. O adjetivo abençoado carrega consigo uma dimensão sagrada, ligada à esfera religiosa. Desse modo, dizer que o lar é abençoado implicava em dizer que havia algo de divino nele. Com isso, o rompimento do lar se configurava como algo que desagradava à divindade e, portanto, passava a ser lido sob a ótica do “pecado”. Trata-se, assim, de um mundo impregnado de um profundo senso de culpa.

Como compreender essa diferença entre o mundo sem culpa de Memórias de um sargento de milícias e o sentimento de culpa do narrador de “Hoje quem paga sou eu”? Possivelmente essa mudança tenha relações com o processo de consolidação de uma civilização urbano-industrial em nosso país. Conforme já se discutiu (item 2.1), desde os anos 1930 houve diversas ações da esfera governamental no sentido de estimular o desenvolvimento industrial brasileiro e, ao mesmo tempo, disseminar valores éticos do trabalho. Renato Ortiz aponta alguns desdobramentos desse processo na esfera dos intelectuais brasileiros. O autor mostra que, desde o século XIX até a década de 1920, o pensamento sociológico brasileiro se amparava em grande medida em teorias raciológicas e positivistas. Dessa forma, o mestiço, por sua herança biológica, seria “preguiçoso”, “indolente”, pouco afeito ao trabalho (ORTIZ, 2012, p. 36-9). Esse tipo de

interpretação foi contestado nos anos 1930, sobretudo por uma obra que, segundo Ortiz (2012, p. 42), foi saudada “por todas as correntes políticas, da direita à esquerda”. Tratava-se de Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, que transformava a “negatividade do mestiço em positividade” (ORTIZ, 2012, p. 41). No entender de Ortiz, a aceitação praticamente unânime do livro de Freyre se deveu, em grande medida, à sua capacidade de propor uma nova interpretação para a sociedade brasileira, substituindo aquela forjada pelos intelectuais do século XIX que se mostrava “incompatível com o processo de desenvolvimento econômico e social do país” (ORTIZ, 2012, p. 42).

O repertório de Nelson Gonçalves, por sua vez, traz indícios de que não foram apenas entre os intelectuais brasileiros que se operaram transformações decorrentes da nova ordem urbano-industrial que se consolidava. Ao contrário, uma canção como “Hoje quem paga sou eu” aponta para uma assimilação da ética trabalhista por parte das camadas mais populares da sociedade brasileira. Dentro desse ideário, o ambiente boêmio se tornava incompatível. Com isso, nessa canção de Herivelto Martins e David Nasser, o mundo dos botequins era retratado como um espaço de tragédia, sendo que apenas uma vida familiar e laboriosa poderia trazer felicidade ao indivíduo.

Talvez esse aspecto fique ainda mais evidente em outra canção interpretada por Gonçalves: o samba “Vida de caboclo”, gravado em 1958 no LP Escultura, de autoria de Roberto Roberti, Marques Júnior e Radamés Gnattali (GONÇALVES, 1958, LP, faixa 2). Seu texto descreve o dia de trabalho de um caboclo, que não atua no ramo industrial, mas trabalha no campo. Mesmo que não se refira a um ofício exercido na cidade, a ideologia do trabalho está presente. Segundo o narrador dessa canção, o caboclo passa o dia inteiro capinando, assistindo tanto ao nascer quanto ao pôr do sol. Embora esteja velho e cansado, ele “se mata no trabalho o dia inteiro porque tem / Ai, ai... seus filhos pra criar”. Diante disso, nada pode detê-lo em seus objetivos, “nem geada, nem seca, nem chuva”, pois “ele enfrenta qualquer contratempo”. Tudo isso com esperança e com “fé em Nosso Senhor” de que “um dia, um de seus filhos, como recompensa, venha a ser doutor”.

Vida de caboclo

Composição: Radamés Gnattali / Roberto Roberti / Marques Júnior Interpretação: Nelson Gonçalves (1958) Classificação: samba

Nasce o dia, sol queimando O caboclo capinando Capinando vê o sol morrer Cai a noite, pouco a pouco No entanto, esse caboclo Só quer ver o dia amanhecer Ele ‘tá velho, ‘tá cansado Bem que podia descansar

Porém se mata no trabalho o dia inteiro porque tem

Ai, ai... seus filhos pra criar

Nada pode deter o caboclo

Nem geada, nem seca, nem chuva

Ele enfrenta qualquer contratempo, ele vence a saúva

Caboclo tem fé em Nosso Senhor Que um dia, um de seus filhos, como recompensa, venha a ser doutor

Subjaz à canção a expectativa de ascensão social por meio do trabalho. O caboclo descrito pelo eu-lírico não alimenta essa pretensão para si próprio, talvez por ser de idade avançada, mas almeja que seus filhos consigam fazê-lo41. Para isso, o trabalho

deve ser incansável e não se pode ceder a nenhum obstáculo. Porém, só o esforço individual não bastava: era preciso ter fé. Todo esse texto é cantado através de um samba de andamento mais acelerado, em torno de 95 BPM, cujo acompanhamento fica a cargo de uma formação próxima às big bands. Assim, parece constituir-se numa apologia ao trabalho, entendendo-o como meio para o sucesso individual.

Outras canções de Nelson Gonçalves também se pautaram pela oposição entre a ordem – representada pela vida privada, familiar, a estabilidade afetiva, o trabalho – e a desordem – na qual aparecem o universo da boemia e do botequim. Dentre elas encontra-se o samba-canção “Comentário”, composto por Dário de Souza e Nóbrega de Macedo. O cantor o registrou primeiramente em um disco de 78 rotações no ano de 1952 (SOUZA; MACEDO, 1952, 78 rpm). A canção foi interpretada na tonalidade de Dó sustenido menor, num andamento moderado, próximo a 66 BPM; não se trata, portanto, de um samba-canção muito lento. No acompanhamento, ouvem-se um naipe de cordas, saxofone, trompete com surdina, piano, contrabaixo acústico e percussão leve.

41 Interessante notar que, mesmo que a canção visasse retratar um trabalhador rural, a expectativa de ascensão social se daria por meio do exercício de profissões liberais, ligadas à vida na cidade.

A letra desse samba-canção tece comentários a um grupo de ouvintes sobre um terceiro, designado como “esse que passa por aí”. Assim como aconteceu com o personagem de “Hoje quem paga sou eu”, o homem retratado nessa canção teve um passado venturoso que se perdeu em virtude de sua aproximação da boemia. O ambiente boêmio aparece aqui intimamente ligado às relações amorosas efêmeras, que levaram o personagem a ter “muitos amores”. Com essa caracterização, a boemia se opunha diametralmente ao matrimônio. Há um forte teor moralista nessa canção, uma vez que, ao se aproximar do polo da boemia e de suas mulheres, o personagem teve inúmeras perdas: “Ele perdeu a saúde, perdeu os amigos e a própria mulher”. Com isso, ele agora ficava perambulando, “vagando, sozinho, falando”, tendo se tornado um “ninguém”. Em outras palavras, a boemia era aqui representada como rejeição ao matrimônio, que acarretava em desgraças para os que faziam essa opção.

Comentário

Composição: Dário de Souza / Nóbrega de Macedo Interpretação: Nelson Gonçalves (1952) Classificação: samba-canção

Esse que passa por aí, senhores Já foi boêmio também

Já teve muitos amores Hoje, vive sem ninguém Às vezes, fico pensando, O destino, quando quer Um homem se derrotando Por causa de uma mulher

Hoje, ele vive sozinho, sem ter um carinho, um amor qualquer

Ele perdeu a saúde, perdeu os amigos e a própria mulher

Esse que vive vagando, sozinho, falando, parece ninguém

Mas esse que passa por aí, senhores Já foi boêmio também

Com isso, para não passar por infortúnios, era preciso rejeitar a boemia e aceitar o matrimônio. Essa postura aparece em outro samba-canção, gravado por Nelson Gonçalves em 1952, intitulado “Última seresta”, composto por Adelino Moreira e Sebastião Santana. Nele, o eu-lírico se despede do mundo boêmio, pois estava prestes a se casar. Em seu texto, o narrador da canção se mostra dividido entre a alegria da vida a dois e a tristeza por abandonar seus amigos da noite, como se nota logo em seus primeiros versos: “Nesta última seresta / Tenho o coração em festa / Quando devia chorar / Sigo triste por deixar a boêmia / Porém cheio de alegria / Por ela me acompanhar”. Na sequência, o eu-lírico dá adeus a tudo e a todos os que está abandonando: serenatas,

montes, rios, cascatas, noites de luar e amigos leais. A se julgar pela quantidade de despedidas, tem-se a impressão de que aquele estava sendo um momento doloroso para o personagem.

Última seresta

Composição: Adelino Moreira / Sebastião Santana Interpretação: Nelson Gonçalves (1952) Classificação: samba-canção

Nesta última seresta Tenho o coração em festa Quando devia chorar

Sigo triste por deixar a boêmia Porém cheio de alegria Por ela me acompanhar Digo adeus às serenatas Aos montes, rios, cascatas E às noites de luar

Adeus, adeus, minha gente Uma canção diferente Vai o boêmio cantar

Adeus, amigos leais Que não deixaram jamais Fazer-me qualquer traição Vosso amigo vai partir Mas vai feliz a sorrir Com ela no coração Adeus, seresta de amor Adeus, boêmio cantor Perdoa a ingratidão

Pois, para meu novo abrigo Eu levo apenas comigo Ela e o meu violão

Esse tom lamentoso, por sua vez, é intensificado na dimensão musical da canção. “Última seresta” foi gravada na tonalidade de Si bemol menor, com predominância do naipe de cordas em seu acompanhamento. Seu andamento se situa por volta de 68 BPM, fazendo com que não figure entre as músicas mais lentas do repertório de Nelson Gonçalves. Entretanto, sua linha melódica apresenta uma ampla tessitura, abrangendo um intervalo de décima segunda diminuta, tendo como extremidades as notas Lá 2 e Mi bemol 4. Além disso, especialmente nos momentos em que o personagem se despede de seus amigos boêmios, como no verso “Adeus, amigos leais”, a canção apresenta saltos melódicos em direção ao agudo, finalizados por notas de maior duração, que ganham intensidade na emissão de Nelson Gonçalves. Desse modo, tem-se a sensação de que, apesar do texto dizer que o coração do eu-lírico estava “em festa”, o abandono do circuito boêmio era um processo doloroso. Apesar disso, o personagem não titubeia e faz a opção pelo matrimônio. No embate entre ordem e desordem, a canção culmina com o predomínio da primeira, mas não sem deixar um traço melancólico.

Outra canção que merece ser comentada é o samba “Três sorrisos”, de Chocolate e Mário Lago, que foi gravado em 1959 no LP Nelson Gonçalves em Hi-Fi (GONÇALVES, 1959, LP, faixa 3). Nele, o narrador se dirige aos seus antigos amores, Rosinha, Maria, Alice e Teresa, pedindo para que não mais procurem por ele, porque “o boêmio de outrora está esvaziando o seu coração”. Porém, dessa vez não era o matrimônio que se opunha às relações fortuitas da vida boêmia, mas era a paternidade, afinal, o que levou o personagem da canção a se afastar dessas mulheres foram seus três filhos, ou melhor, os “três sorrisos mais lindos, mais puros”, conforme diz o narrador. Desse modo, ao invés de escutar os dizeres de amor daquelas quatro mulheres, o eu- lírico afirma: “Eu prefiro, pra minha alegria / Três boquinhas chamando ‘papai’”.

Três sorrisos

Composição: Chocolate / Mário Lago Interpretação: Nelson Gonçalves (1959) Classificação: samba

Rosinha, não mais me procure, Maria, esqueça de mim, Alice, não me telefone, Teresa, chegamos ao fim. Perdões, mil perdões, eu imploro Por esta resolução

É que o boêmio de outrora está esvaziando o seu coração

Três sorrisos mais lindos, mais puros Bem mais puros que os beijos que eu dei Transformaram em realidade

Tantos sonhos de amor que sonhei Não me chamem de amor como outrora Esse tempo distante já vai

Eu prefiro, pra minha alegria Três boquinhas chamando “papai”

Nessa canção, ao contrário, não se nota lamentação por parte do eu-lírico. Ainda que haja um verso no qual ele implore perdão às quatro mulheres pela sua opção de abandoná-las, a dimensão musical traz leveza para esse texto. A canção está na tonalidade de Mi maior e possui um andamento próximo a 77 BPM. Seu acompanhamento é feito por um conjunto cuja formação se aproxima das big bands, com o acréscimo de um pandeiro, que marca com clareza as quatro semicolcheias, acentuando um caráter mais corporal, aludindo à dança. Sua melodia possui uma tessitura relativamente grande, mas apresenta uma maior atividade rítmica, não

possuindo muitas notas longas, remetendo ao que Tatit (2002) chamou de tematização42.

Com isso, não há margem para que Nelson Gonçalves confira um caráter passional em sua maneira de cantar. Dessa forma, se o eu-lírico de “Última seresta” estava triste por abandonar a boemia, o de “Três sorrisos” mostra-se muito mais convicto em romper as relações com as mulheres e assumir as funções paternas.

Trabalhador, casado e pai. Vê-se, portanto, que a boemia aparece nas canções de Nelson Gonçalves mais como uma rejeição do que como uma adesão a esse cenário. Contudo, como se situa, nesse quadro, um dos maiores sucessos do cantor, a saber, o samba-canção “A volta do boêmio”, de autoria de Adelino Moreira? De fato, à primeira vista, essa canção parece ser o oposto daquilo que se argumentou até agora, uma vez que seu narrador está se reintegrando ao circuito boêmio. Porém, ao se atentar para alguns detalhes, pode-se perceber que a canção não trata exatamente disso.

O samba-canção “A volta do boêmio” foi gravado na tonalidade de Lá menor, acompanhado por um conjunto regional ao qual foi acrescido um saxofone (MOREIRA, 1956, 78 rpm). Seu andamento se situa por volta de 50 BPM, configurando-se como um dos mais lentos dentre as canções investigadas neste trabalho. Sua extensão máxima é de uma décima segunda diminuta, abrangendo as notas de Si 2 a Fá 4. Cabe lembrar que, dentre todas as canções de Nelson Gonçalves transcritas, essa foi a única em que a nota Fá 4 apareceu; no restante de seu repertório, o cantor havia atingido, no máximo, a nota um semitom abaixo dela, Mi 4.

A canção se inicia com o eu-lírico retornando à vida boêmia e pedindo – ou melhor, suplicando – para ser aceito novamente. O motivo da súplica é que, em virtude de seu afastamento daquele ambiente, muitos frequentadores deveriam estar ironizando o seu retorno. O próprio narrador tem consciência disso e dá voz aos comentários que imagina estarem circulando: “Ele voltou! O boêmio voltou novamente / Partiu daqui tão contente... Por que razão quer voltar?”. O tom de deboche de “Ele voltou!” parece ter seu correspondente na linha melódica, que se inicia na região aguda, em Mi 4, seguido de

42 A tematização, para Tatit, é obtida por meio da ênfase na segmentação das consoantes, da redução das tessituras e da reiteração melódica. No entender do autor, esse processo privilegia o aspecto rítmico e sua “sintonia natural com o corpo”, provocando estímulos como “o tamborilar dos dedos, a marcação do tempo com o pé, ou com a cabeça e o envolvimento integral da dança espontânea ou projetada” (TATIT, 2002, p. 10-1).

movimento descendente, como se a melodia estivesse imitando uma risada. Assim, o circuito boêmio não é apresentado como um espaço acolhedor, especialmente em relação ao caso desse personagem, que havia deixado de frequentar esse ambiente.

Diante dessa situação, o eu-lírico tenta se explicar e, para isso, alude à sua companheira, caracterizada por ele como “a mulher que floriu meu caminho / De ternura, meiguice e carinho / Sendo a vida do meu coração”. Entende-se assim que ele havia anteriormente deixado de frequentar a boemia para se unir a essa mulher. Subjaz, portanto, a ideia de que a vida na boemia é desprovida de ternura, meiguice e carinho, e que tais sentimentos só foram encontrados pelo eu-lírico em sua vida matrimonial.

Porém, além de todos esses atributos, a mulher idealizada nessa canção era também compreensiva. Isso porque, provavelmente percebendo que a boemia fazia falta na vida de seu companheiro, ela o autoriza (!) a regressar para aquele cenário. Em todo o restante da canção, que abrange mais de dois terços de seu texto, o narrador reproduz aquilo que sua companheira supostamente teria dito a ele. No início, a fala dessa mulher parece ter um tom mais terno, como quando diz “Meu amor, você pode partir”. Porém, ao final, o texto ganha um caráter mais imperativo, dando a impressão de que ela está