• Nenhum resultado encontrado

Outra dimensão que esteve presente em duas das canções já mencionadas é uma certa moral religiosa, regida pela doutrina do pecado. Isso apareceu em “Esta noite me embriago”, na qual o narrador da canção, ao se deixar envolver pela beleza daquela mulher, diz que se tornou “mal e pecador”. Seu erro não foi, portanto, uma mera transgressão moral em relação à sua companheira, mas se desdobrava numa dimensão sagrada, pois ele havia contrariado o caráter indissolúvel do matrimônio, tal qual pregado na ética católica. Isso teve consequências tanto para o narrador, que perdeu suas posses, seus amigos e sua moral, quanto para sua antiga amada, cuja beleza se definhou ao longo dos anos. Portanto, a situação de ambos seria uma espécie de “castigo divino”.

Outra canção já mencionada na qual a dimensão religiosa apareceu foi “Meu vício é você”. Conforme já se observou, a personagem feminina é descrita pelo eu-lírico como alguém que “peca só por prazer, vive para pecar”. Assim, entende-se que é um viés religioso que orienta o olhar do eu-lírico ao encarar a sua “boneca de trapo”. Talvez venha daí a intensidade da adjetivação pejorativa dessa canção, afinal, o narrador está descrevendo uma “pecadora”.

Esse moralismo de fundo religioso esteve presente em outras canções do período. No repertório de Nelson Gonçalves, isso reaparece no samba-canção “Que me importa”, de autoria do violonista Dilermando Reis e de Jair Amorim, gravado em 1957 (REIS; AMORIM, 1957, 78 rpm). Seu texto consiste num diálogo entre o eu-lírico e sua amada, no qual ele parece tentar convencer a si próprio de que não se importa com a partida dela. Em meio a essa conversa, o personagem não deixa de dirigir pequenas ofensas àquela que o abandonou, como ao dizer que ela nunca foi “capaz de amar”. Além disso, o eu-lírico considera o ato de amar como uma arte, para a qual ela não possuiria aptidões. Por fim, a dimensão pecaminosa é trazida à tona no momento em que o narrador afirma que ambos são pecadores, mas que condena sua antiga companheira por se manter no erro: “Errar é humano, bem sei / Que eu, como tu, já pequei / Se queres pecando viver / Que me importa saber”.

Que me importa

Composição: Dilermando Reis / Jair Amorim Interpretação: Nelson Gonçalves (1957) Classificação: samba-canção

Que me importa saber que perdi O amor que vivia a sonhar Se tu nunca foste capaz de amar O amor é uma arte também Que não se ensina a ninguém Foste uma artista incolor Num papel sem nenhum valor

Que me importa saber, afinal Que hoje tu chamas por mim Se tudo de bom já chegou ao fim Errar é humano, bem sei

Que eu como tu, já pequei Se queres pecando viver Que me importa saber

Se o abandono do lar é visto como forma de pecado, havia outros casos em que o próprio ato de amar se configurava como uma emanação divina. Já se notam alguns indícios dessa concepção em “Que me importa”, no qual o amor, embora seja uma arte, não pode ser ensinado a ninguém. Em outras palavras, a capacidade de amar seria uma característica inata, de modo que algumas pessoas a possuiriam e outras não. A origem divina, nesse caso, pode ser subentendida, mas não fica explícita. Já no samba “Amigo”, de Herivelto Martins, gravado por Nelson Gonçalves em 1950 (MARTINS, 1950, 78 rpm), a capacidade de amor é claramente apresentada como uma dádiva de Deus, como se nota no verso: “Há mulheres / Que nasceram com o destino / De não ter o dom divino / De viverem só pra um”53.

Outra canção do repertório de Nelson Gonçalves que traz em relevo a dimensão religiosa é “Redoma de vidro”, samba composto por Herivelto Martins em parceria com o intérprete, gravado em 1952 (MARTINS; GONÇALVES, 1952, 78 rpm). O título da canção tem relação com o intenso ciúme que o eu-lírico dizia alimentar por sua amada, a ponto de desejar mantê-la trancada numa redoma de vidro. Porém, o que convém destacar para a discussão em curso é que, diante de tanta paixão por sua companheira, ele chegou a compará-la com a “Virgem Maria”. Depois de fazer isso, ele compreendeu que havia ofendido a santa ao tê-la igualado a uma mulher (“Até a Virgem Maria ofendi / Quando disse de joelhos / Que ela era igualzinha a ti”). O desfecho da

53 Não será apresentada a letra completa dessa canção porque seu foco principal não é o de retratar uma mulher, e sim apresentar um diálogo entre dois amigos cujo tema é a traição. De qualquer modo, o verso apresentado merecia ser citado, pois ajuda na compreensão dos olhares sobre a mulher presentes no repertório de Nelson Gonçalves.

canção é emblemático: o narrador se reconcilia com a esfera divina e rompe com sua amada: “Deus perdoou esse meu erro / Tenho a santa em meu altar / E tu, felizmente, deixaste meu lar”.

Redoma de vidro

Composição: Herivelto Martins / Nelson Gonçalves Interpretação: Nelson Gonçalves (1952) Classificação: samba

Uma redoma de vidro era pouco Eu tinha um ciúme louco

Amar assim nunca vi Até a Virgem Maria ofendi Quando disse, de joelhos Que ela era igualzinha a ti Deus perdoou esse meu erro Tenho a santa em meu altar E tu, felizmente, deixaste meu lar

Agora podes beijar a quem quiseres Já não tenho mais ciúme

Conheci outras mulheres

Uns beijos mais quentes, outros mais frios Não foram para mim desafios

Que já te conhecia bem És o padrão da mulher Dessas que ninguém quer E que eu não quero também

A canção “Argumento”, faixa de abertura do LP de Nelson Gonçalves de 1959, composta por Adelino Moreira (GONÇALVES, 1959, LP, faixa 1), também traz elementos que atestam esse olhar religioso. Contudo, ao contrário das outras canções, nesse caso é o próprio eu-lírico masculino que se assume como pecador. A canção consiste num longo pedido de desculpas do narrador para sua interlocutora pelo fato dele lhe ter dado “um beijo sem permissão”. Aqui, assim como já havia acontecido em “Meu vício é você”, a luta do eu-lírico parece ser em controlar seus impulsos, o que não acontece em nenhum dos dois casos54. Diante daquele “pecado, quase crime” de ter beijado a garota sem seu

consentimento, ele tenta se explicar, dizendo que a culpada por seu gesto foi, na verdade, a lua (!), que, ao se esconder, “provocou aquele beijo”. Porém, o próprio narrador entende que se trata de um péssimo argumento – ou melhor, de um “farrapo de desculpa”, como ele próprio diz – e, por isso, apela para a nobreza (“Mas, sabendo o quanto és nobre / Sei que podes perdoar”) e pela compaixão (“Se impetuoso fui, tem compaixão”) de sua amada para que possa desculpá-lo.

54 Apenas para relembrar, em “Meu vício é você”, o narrador, mesmo ciente dos “erros, pecados e vícios” da mulher retratada, não consegue resistir aos seus encantos e decide aceitá-la. Por sua vez, em “Argumento”, o eu-lírico não consegue controlar seu encanto por uma mulher e a beija mesmo sem seu consentimento

Argumento

Composição: Adelino Moreira Interpretação: Nelson Gonçalves (1959) Classificação: choro-canção

Sei que esse argumento é muito pobre Mas, sabendo o quanto és nobre Sei que podes perdoar

Sei que este farrapo de desculpa Não redime a minha culpa Mas, enfim, eu vou tentar

Sei que fui ousado no meu gesto Não ouvindo teu protesto

Para ouvir meu coração

Sei que uma desculpa não redime Meu pecado, quase crime

De um beijo sem permissão

Mas, se fui pecador, condeno a lua Que abandonou a rua

E fugiu com o luar

Pois ela, adivinhando meu desejo Provocou aquele beijo

E assim me fez pecar

Se impetuoso fui, tem compaixão E, em nome do amor

Suplico teu perdão

Perdoa, meu amor, este pecado Sublime impulso de te haver beijado

O homem pecador aparece também em canções de contemporâneos de Nelson Gonçalves. Esse é o caso do samba-canção “A devota e o pecador”, que também é de autoria de Adelino Moreira, compositor de “Meu vício é você” e “Argumento”, mas foi lançada em disco por Carlos Galhardo. A canção foi gravada na tonalidade de Dó menor, com andamento em torno de 52 BPM. A tessitura da canção é de 10m, de Dó 3 a Mi bemol 4, permanecendo em uma região mais próxima da extremidade aguda. No timbre de Galhardo, em comparação com o de Nelson Gonçalves, nota-se uma presença maior de harmônicos agudos, sugerindo que o cantor se utilize mais dos ressoadores frontais.

Nessa canção, o eu-lírico se revela apaixonado por uma mulher que é devota da “Virgem Maria” e vai diariamente à igreja para “fortalecer sua crença”. Assim, para ser notado por ela, o personagem fica “na porta da igreja / A qualquer hora do dia”. O narrador entra numa espécie de disputa com as entidades sagradas, dizendo que tem inveja da Virgem Maria e que sente em sua própria boca o beijo que a amada desfere na fita de devoção. Contudo, diante dessa “blasfêmia”, ele pede perdão (“Se é pecado / A Deus, eu peço perdão”) e ainda faz a promessa de se tornar devoto de Maria se ela o ajudar a conquistar sua amada: “Se ela perguntar um dia / À Virgem Santa Maria / Se o meu amor lhe convém / Se a Virgem disser que sim / Serei, até ver meu fim / Um mariano também”.

A devota e o pecador

Composição: Adelino Moreira Interpretação: Carlos Galhardo (1959) Classificação: samba-canção

Ela vai todo santo dia Linda filha de Maria Fortalecer sua crença Ela é santa e eu pecador Mas cego por seu amor Eu nem vejo a diferença Para que ela me veja Fico na porta da igreja A qualquer hora do dia Se é pecado

A Deus, eu peço perdão Mas ao vê-la em contrição Invejo a Virgem Maria

Mãos postas e olhar sereno Ela fita o Nazareno

E eu sinto no meu desejo Quando ela beija contrita As contas da sua fita Na minha boca seu beijo Se ela perguntar um dia À Virgem Santa Maria Se o meu amor lhe convém Se a Virgem disser que sim Serei, até ver meu fim Um mariano também

Por fim, convém citar ainda uma última canção, na qual o componente religioso aparece como o assunto principal, figurando até mesmo em seu título. Trata-se de “Nono mandamento”, composição de René Bittencourt e Raul Sampaio, que foi interpretada por Cauby Peixoto em 1958 (BITTENCOURT; SAMPAIO, 1958, 78 rpm). O título faz alusão a um dos “dez mandamentos”, que teriam sido escritos pelo próprio Deus, e que orientam a conduta cristã. Em seu texto, o eu-lírico dirige uma prece pedindo perdão por não ter cumprido “um mandamento / O nono da vossa lei”, que consiste em não praticar adultério. O narrador se mostra muito arrependido, dizendo estar ajoelhado, com os olhos vermelhos e lacrimejantes. Em sua súplica, afirma que cometeu “um erro de momento” e que, embora gostasse da mulher com quem se relacionou, “não sabia que ela / A um outro pertencia”. Diante de seu erro, ele implora: “Perdão, por esse amor que foi cego / Por esta cruz que carrego / Dia e noite, noite e dia”.

Nono mandamento

Composição: René Bittencourt / Raul Sampaio Interpretação: Cauby Peixoto (1958) Classificação: samba-canção

Senhor, aqui estou eu de joelhos Trazendo os olhos vermelhos De chorar porque pequei

Senhor, por um erro de momento Não cumpri um mandamento O nono da vossa lei

Senhor, eu gostava tanto dela Mas não sabia que ela A um outro pertencia

Perdão, por esse amor que foi cego Por esta cruz que carrego

Dia e noite, noite e dia

Senhor, dai-me a vossa penitência Quase sempre a inconsciência Traz o remorso depois

Mandai, para este caso comum Conformação para um

Felicidade pra dois

Diante desse conjunto de canções, verifica-se nele a presença da dimensão religiosa. O sofrimento, experimentado tanto por homens quanto por mulheres, nesses casos, tinha por causa uma transgressão da “lei divina”. Tais constatações fazem lembrar o caráter policultural que Morin atribui às sociedades modernas. De acordo com o autor, nessas sociedades entram em conjunção diferentes sistemas culturais, dentre os quais menciona as religiões, o Estado nacional e a tradição das humanidades, os quais “afrontam ou conjugam suas morais, seus mitos, seus modelos” (MORIN, 1984, p. 16). Ainda conforme Morin, a cultura de massas se configura como mais um desses sistemas culturais, de modo que “o mesmo indivíduo pode ser cristão na missa de manhã, francês diante do monumento aos mortos, antes de ir ver Le Cid no T.N.P. e de ler France-Soir e Paris-Match” (MORIN, 1984, p. 16)55.

Algo semelhante pode ser percebido nas canções até aqui comentadas. Seus narradores se situam em meio a uma confluência de valores morais provenientes do Estado, especialmente a ideologia do trabalhismo conforme se discutiu na seção 5, bem como da religião, conforme se nota em “Nono mandamento” e outras composições, mesclado a um sentimentalismo presente na temática da disjunção amorosa56, tudo isso

permeado pela canção popular, pelo rádio e pelo disco. Assim, esse repertório ilustra de

55 Os exemplos citados por Morin se referem à peça tragicômica Le Cid, escrita por Pierre Corneille, que estreou em Paris no ano 1637, cujo enredo se baseia na história do conquistador espanhol conhecido como El Cid. Por sua vez, T.N.P. é a sigla para o Théâtre National Populaire, teatro que se localiza na capital parisiense e busca realizar apresentações com ingressos a preços mais acessíveis. Por fim, France-Soir é um jornal francês de periodicidade diária e Paris-Match é uma revista que de circulação semanal.

que modo certos valores morais presentes em camadas mais populares da sociedade brasileira se expressam em forma de canção.