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Num cenário em que a música popular ganhava importância, os cantores e as cantoras acabaram se consagrando como as figuras de maior destaque, transformando- se nos grandes ídolos do período. A partir de uma prática que, segundo Federico (1986, p. 56), iniciou-se com o apresentador César Ladeira, os cantores e cantoras do rádio foram “rebatizados”, ganhando uma espécie de epíteto que os acompanhava em suas aparições na programação. Em alguns casos, tais epítetos eram motivados pela suposta popularidade ou aceitação do cantor, como eram os casos de Déo, “o Ditador de Sucessos”, Sílvio Caldas, “o Caboclinho Querido”, Cyro Monteiro, “o Cantor de Mil e Uma Fãs” e Francisco Carlos, “o Cantor Namorado do Brasil”. Em outros, os intérpretes eram exaltados por suas qualidades como cantor, como se nota em Vicente Celestino, “a Voz Orgulho do Brasil”, Carlos Galhardo, “O Cantor que Dispensa Adjetivos”, Francisco Alves, “o Rei da Voz” e Albertinho Fortuna, “o Menino-Revelação”.

Além disso, à semelhança do já se notou em Francisco Alves, havia muitas alusões à realeza dos cantores, o que pode ser entendido como uma expressão da proeminência destes no cenário radiofônico. Contudo, ao contrário do Rei da Voz, em geral as outras adjetivações de alusão monárquica traziam também menções não às qualidades performáticas, mas ao repertório que os intérpretes costumavam apresentar. Assim, Ademilde Fonseca era rainha do chorinho; Carmélia Alves e Luiz Gonzaga eram, respectivamente, rainha e rei do baião; Ruy Rey era o soberano no reino do mambo; Manezinho Araújo era o rei da embolada; e Robertinho Silva aparecia como príncipe do samba11.

Tais adjetivações podem ser pensadas a partir daquilo que o sociólogo Michel Nicolau Netto (2009), referindo-se a outro contexto, apontou como sendo uma segunda alienação, que aconteceria no universo musical. De acordo com o autor, no contexto da indústria cultural, a alienação não se esgota no processo tal qual descrito por Karl Marx, no qual o criador tem o seu trabalho destacado de si. Além dessa, há ainda uma segunda alienação, na qual “o criador do bem cultural se torna, ele mesmo, uma imagem destacada de si – ou seja, autônoma a ele – a ser apoderada pela indústria cultural” (NICOLAU NETTO, 2009, p. 191). Nesse caso, o artista não fornece apenas um produto para ser vendido pela indústria cultural, mas ele próprio se transforma em um produto.

Convém destacar que as reflexões de Nicolau Netto foram elaboradas para se pensar o contexto contemporâneo e, mais ainda, mundializado, no qual a integração sistêmica da indústria cultural encontra-se num estágio muito mais avançado do que o dos anos 1940 e 1950. De qualquer modo, tais rotulações que associam os intérpretes a determinado segmento do repertório musical acabavam, de certa forma, cristalizando imagens fixas para eles, que deveriam se manter o mais adequado possível a elas. Surgem, portanto, indícios de que o repertório desses intérpretes já passava por alguma forma de gerenciamento pela incipiente indústria fonográfica.

Além de sua eventual participação em programas musicais, prenunciadas por suas adjetivações, alguns intérpretes chegaram a ter seus programas exclusivos na programação radiofônica. Aguiar (2007, p. 43-4) menciona dois exemplos que se

encaixam nesse caso, cujos protagonistas foram Francisco Alves e Ângela Maria. O programa de Francisco Alves se chamava Quando os ponteiros se encontram, e era irradiado aos domingos, ao meio-dia, com apresentação de Lúcia Helena. O programa Ângela Maria Canta era transmitido aos sábados, às 14h30min., com produção de Nestor de Holanda, direção musical do maestro Chiquinho e narração de Hamilton Frazão. Seus patrocinadores eram o Colírio Moura Brasil e Cilion, que eram evidenciados logo na apresentação do programa. Nota-se que o próprio corpo da cantora era empregado no marketing dos patrocinadores.

Com seus lindos olhos, muito bem tratados e protegidos pelo Colírio Moura Brasil, com suas pestanas recurvadas com Cilion, aqui está, diante de nós, senhores ouvintes, o olhar terno de uma das mais populares cantoras do rádio brasileiro, Ângela Maria. (RÁDIO NACIONAL, 16 jul. 1955, 1min07s. a 1min26s.)

Analisando as relações de programas da Rádio Nacional apresentadas por Cláudia Pinheiro (2006, p. 234-44) e por Saroldi e Moreira (2005, p. 203-17) verifica-se que outros 14 cantores, sendo 2 duplas e 10 de carreira solo, tiveram seus próprios programas. Foram eles: Alvarenga e Ranchinho, Cauby Peixoto, Dalva de Oliveira, Dick Farney, Elizete Cardoso, Ivon Curi, Linda Batista, Jararaca e Ratinho, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Sílvio Caldas e Vicente Celestino. Certamente outras rádios também adotaram semelhante prática, destinando programas específicos para determinados cantores ou cantoras, o que aponta para o destaque que esses artistas ganhavam no cenário radiofônico.

Outro ramo no qual a música popular e seus intérpretes tiveram inserção foi o cinema. Com o advento do cinema falado, algumas empresas cinematográficas brasileiras investiram na produção de filmes com números musicais, contando, para isso, com os intérpretes do período. Um dos pioneiros desse formato foi o filme Cousas nossas, de 1931, que levava às telas Paraguassu (1890-1976), cantor atuante nas serestas paulistanas (GALVÃO; SOUZA, 1997, p. 468). Alguns anos depois, outra produção bastante comentada, o filme Alô, alô, carnaval, de 1936, já reunia em seu elenco um grande número de músicos, dentre os quais se incluíam as cantoras Carmen Miranda e Dircinha Batista; os cantores Francisco Alves, Mário Reis, Almirante e Lamartine Babo; a dupla Joel e Gaúcho; os conjuntos vocais Bando da Lua e Quatro Diabos; e, por fim, o regional de Benedito Lacerda (AUGUSTO, 1989, p. 217).

Durante a década de 1940, a produção de filmes musicais teve grande impulso com a fundação da Atlântida em 1941, especializada nesse gênero, especialmente em sua vertente cômica. Sua primeira comédia musical, Tristezas não pagam dívidas, de 1944, contou com a presença de Silvio Caldas, Quatro Ases e Um Coringa, Zilah Fonseca, Joel e Gaúcho, Blecaute, Marion, Dircinha Batista e Emilinha Borba (CIOCCI; CARRASCO, 2013, p. 76). Ao longo das produções cinematográficas, os números musicais foram adquirindo progressiva importância na progressão dramático-narrativa dos filmes, de modo que os cantores e cantoras do rádio passaram a ocupar o espaço antes reservado a atores de formação teatral. Conforme analisam Ciocci e Carrasco, “como as canções tinham um lugar de destaque nas produções, era pré-requisito que o protagonista cantasse. Se o ator não conseguia se adaptar ao canto, ele perdia seu lugar para o cantor que conseguisse atuar” (CIOCCI; CARRASCO, 2013, p. 80).

Além das comédias musicais, a música popular e seus cantores se inseriam em produções cinematográficas de teor dramático. Nesse segmento, o destaque ficou com o filme O ébrio, de 1946, estrelado pelo cantor Vicente Celestino e dirigido por sua esposa, Gilda de Abreu. Seu enredo se baseava na canção homônima, composta por Celestino, que a gravou pela primeira vez em 1936, cujo texto narra a trajetória de declínio de um personagem após ser abandonado por sua companheira. A partir dessa canção, o cantor elaborou um roteiro para uma peça teatral, que começou a ser encenada em 1941 e que, por fim, chegou às telas de cinema. Segundo Galvão e Souza, o filme O ébrio constituiu “um dos maiores sucessos que o cinema brasileiro já conheceu em toda a sua história” (GALVÃO; SOUZA, 1997, p. 484).

Outro mecanismo digno de menção eram os concursos de Rei e de Rainha do Rádio. A eleição da Rainha do Rádio passou a ser feita de maneira mais sistemática pela Associação Brasileira de Rádio a partir de 1948. A entidade tinha o objetivo de construir o Hospital dos Radialistas, bem como de levantar fundos para fazer uma Caixa de Aposentadoria e Pensões. Para isso, concebeu a ideia de organizar os concursos para eleger a Rainha do Rádio, vendendo o direito ao voto (HUPFER, 2009, p. 41).

Porém, antes ainda dos concursos da ABR, outros órgãos tomaram para si a atribuição de coroar os cantores radiofônicos. No caso dos homens, a primeira menção a esse concurso que se localizou ao longo dessa pesquisa apareceu em um breve

comentário publicado na revista Carioca, de 21 de fevereiro de 1942, no qual se lê que o título de Rei do Rádio havia ficado, mais uma vez, com Francisco Alves. Segue o texto: “Francisco Alves possui, no nosso ‘broadcasting’, uma situação ímpar. Ainda há pouco, assistimos a mais uma prova do seu prestígio, não deixando que passasse a outra cabeça a disputada coroa de ‘rei do rádio’” (POR TRÁS, 21 fev. 1942, p. 40). Há indícios, portanto, de que o concurso já havia se realizado anteriormente e que se tratava de algo que despertava a cobiça dos cantores por se constituir numa forma de ter prestígio

Tempos depois, mais precisamente em 1948, encontram-se referências a Nelson Gonçalves como o detentor da coroa do rádio. Em uma minibiografia do cantor publicada na Revista do Rádio, nota-se que a obtenção desse título aparecia, assim como no caso da de Francisco Alves, como indício de consagração artística.

Nelson Gonçalves. Outro gaúcho que venceu no Rio de Janeiro. Nasceu no Rio Grande do Sul, foi criado em São Paulo e canta no Rio de Janeiro. – O que é que ele é? – Um ótimo cantor... Tem fãs por toda parte, já gravou mais de duzentos discos. Durante anos consecutivos, foi aclamado “Rei do Rádio” e no Carnaval do ano passado... Um grande cantor, não resta dúvida. (BIOGRAFIAS, 2 mar. 1948, p. 20, grifos nossos)

Já em 1952, Lenharo (1995, p. 69) localizou a notícia de que o título passava de Nelson Gonçalves para Jorge Goulart. Redigida por Fernando Lobo para o periódico A Noite de 26 de junho de 1952, a matéria associava a eleição de Goulart à sua consagração no meio musical.

Sem dúvida, o notável cantor da Nacional tem este ano o seu ano de boa estrela. O contrato alto e logo do Copacabana Palace, o sucesso de “Dominó” – o êxito em marcha de “Jezebel” e agora um título cobiçado, ganho por conta de seu prestígio seguro. (apud LENHARO, 1995, p. 69)

Em relação às mulheres, o primeiro concurso se deu em 1936, organizado pelo periódico Diários Associados. A votação não foi aberta ao grande público, mas foi feita apenas por jornalistas e profissionais do meio radiofônico. Nele, Linda Batista sagrou-se como a Rainha do Rádio. Tempos depois, outros dois concursos foram realizados, em 1941 e 1943, ambos afirmando a realeza de Linda Batista. Somente em 1948, já sob a organização da ABR, que Linda abdicou do certame, mas o título ainda ficou em família, uma vez que quem se consagrou como Rainha do Rádio foi sua irmã, Dircinha Batista (HUPFER, 2009, p. 59-60).

Nos anos seguintes, o concurso de Rainha do Rádio foi promovido de maneira sistemática, e envolvia não só o público, que votava em seus ídolos, mas também as gravadoras, emissoras e arrecadadoras, uma vez que a vitória no certame significava “triunfo, prêmio, reconhecimento público, estrelato” (LENHARO, 1995, p. 70). Nesse sentido, como os votos eram comprados e o principal interesse da Associação era justamente angariar fundos, a decisão raramente ficava, de fato, nas mãos dos ouvintes, mas sofria interferência de setores economicamente fortes.

O concurso de 1949 tornou-se emblemático nesse sentido. A cantora paulistana Marlene ainda estava no início de sua carreira, mas havia sido escolhida pela Antarctica para promover seu novo produto, o Guaraná Caçula. Com isso, a empresa investiu na formação de fã-clubes da cantora, estimulando a votação do público. Além disso, compraram uma quantidade expressiva de votos, que fez com que Marlene superasse Emilinha Borba, que era a cantora de maior popularidade na época e que, durante praticamente todo o concurso, esteve na liderança (HUPFER, 2009, p. 42-4). Com isso, nos dizeres de Hupfer, a Antarctica não só “vendeu o guaraná Caçula como um outro produto chamado Marlene” (HUPFER, 2009, p. 44).

A Tabela 1 traz uma cronologia das cantoras consagradas como Rainhas do Rádio, conforme dados trazidos por Hupfer (2009, p. 57-72). Dentre elas, a votação mais expressiva foi alcançada por Ângela Maria, que obteve quase 1,5 milhão de votos.

Ano Cantora 1936 Linda Batista 1948 Dircinha Batista 1949 Marlene 1951 Dalva de Oliveira 1952 Mary Gonçalves 1953 Emilinha Borba 1954 Ângela Maria 1955 Vera Lúcia 1956 Dóris Monteiro 1958 Julie Joy

Tabela 1: Rainhas do Rádio. Fonte: Hupfer (2009, p. 57-72).

Nos dizeres de Napolitano (2010, p. 65), os concursos de Rei e Rainha do Rádio apontam para a existência de um star-system no Brasil, ainda precário, mas em

vias de consolidação. Nesse sistema, os cantores e cantoras do rádio ocupavam um papel de destaque. Mesmo com o sucesso das radionovelas ou dos programas de auditório, não foi em torno de atores ou atrizes e tampouco dos animadores dos auditórios que se definiu a realeza do rádio, e sim em torno dos intérpretes da música popular.