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Aludindo mais uma vez a “Dolores Sierra”, já se sublinhou que, nessa canção, a cidade aparece como um objeto de desejo daqueles que habitavam nas regiões rurais. Embora a canção retratasse uma história que supostamente teria se passado na Espanha, esse elemento de sua letra diz muito sobre a sociedade brasileira no período em que foi composta e gravada. Conforme se discutiu no item 2.1, as décadas de 1940 e 1950 se inserem em um contexto de modernização da sociedade brasileira que é caracterizado, dentre outros aspectos, por uma acentuada urbanização, acompanhada por um grande contingente de migrantes que saíam dos territórios rurais rumo às cidades mais desenvolvidas. Assim, para retomar a ideia de Mello e Morais (1998, p. 574), a cidade exercia um grande poder de atração.

Porém, já em “Dolores Sierra”, o fascínio que as cidades alimentavam em muitas mentes era caracterizado como ilusório (“Como quem nasce na roça tem sempre a ilusão de viver na cidade”). Tal caracterização não ficou restrita à canção de Wilson Batista e Jorge de Castro, mas permeou outras criações musicais do período. Nelas, a antítese não se dava mais em relação ao campo, uma vez que eram canções ambientadas em um cenário urbano, mas entre morro e cidade. Tal oposição já havia aparecido em outras canções da música popular, especialmente no que se referia à origem do samba. Porém, agora, esses dois ambientes se revestiam de outro significado: o morro aparecia, de certa forma, como símbolo de pureza e a cidade como local de perversão.

No repertório de Nelson Gonçalves, esse tipo de diagnóstico aparece em “Mariposa”, composição de Adelino Moreira em parceria com o próprio intérprete, que foi inserida no LP Nelson Gonçalves em Hi-Fi, de 1959, sob a classificação de samba-choro (GONÇALVES, 1959, LP, faixa 7). De fato, a referência ao choro se faz presente desde o início do fonograma, nos quais se ouve uma introdução com um conjunto regional, cuja melodia principal é tocada pelo bandolim, novamente com a possibilidade de ter sido

executado por Jacob. No início da canção, o narrador se dirige a uma interlocutora e relembra o dia em que a conheceu: ela estava numa roda de samba – ou melhor, “numa roda de bambas” –, “remexendo as cadeiras / Gingando e sambando com simplicidade”. Tal visão parece ter causado uma forte impressão nesse eu-lírico, pois este afirma que jamais esqueceria aquele dia.

Porém, logo na sequência, o narrador informa que essa mulher havia decidido trocar “o meu samba / E a lua do morro pela luz da cidade”. O texto em si já é algo lamentoso, pois o eu-lírico se vê abandonado por aquela que o encantara desde o dia em que a conheceu. Há que se destacar o fato de que essa partida atinge ao eu-lírico de maneira pessoal, afinal, aquela garota não estava trocando o samba – genérico – pela “luz da cidade”, mas estava deixando “o meu samba” – particular. A melodia, por sua vez, reforça esse aspecto. No início, ela realizava um movimento de expansão em direção ao agudo, saindo de Lá 3 e atingindo Ré 4. Porém, quando comenta da partida da mulher para a cidade, a melodia alcança uma região mais grave, finalizando-se em Dó 3 (Figura 23).

Figura 23: versos 5 a 8 de “Mariposa” (rítmica simplificada).

Na sequência, há uma modulação da tonalidade, que estava em Dó maior, para sua relativa, Lá menor, e a melodia se desenvolve numa região ainda mais grave. Em seu texto, o eu-lírico se despede da mulher, agora chamada por ele de “mariposa”, numa comparação ao inseto que, como muitos outros, é atraído pela luminosidade. Em tom grave de voz, sugerindo certa contrariedade, o narrador fala para que a “mariposa”, embriagada pela luz da cidade, siga seu caminho, mas lhe dá algumas advertências, ainda empregando linguagem metafórica, alertando-a dos perigos da cidade. Primeiramente, pede para que ela não se esqueça de que “toda luz se apaga”, o que

pode sugerir que a cidade não permaneceria encantadora o tempo todo. Depois, pede- lhe atenção, pois dará o “aviso derradeiro: / Antes que a luz da cidade se apague / Pode cegar-te primeiro”. Em outras palavras, antes ainda que ela perdesse o encanto pela cidade, ela própria poderá “não ver a luz do dia”, expressão popular que faz alusão à morte. Portanto, o eu-lírico não se mostra nada satisfeito com a partida da mulher, mas, diante da decisão por ela tomada, procura dar-lhe conselhos ou no intuito de dissuadi-la da ideia – o que parece mais provável – ou de protegê-la. A cidade aparece, portanto, como um espaço que pode ser atrativo, mas que cobra um preço, que pode ser a própria vida de seus moradores.

Mariposa

Composição: Adelino Moreira / Nelson Gonçalves Interpretação: Nelson Gonçalves (1959) Classificação: samba-choro

Na batida do samba Foi que eu te conheci Numa roda de bambas Que eu jamais esqueci Remexendo as cadeiras

Gingando e sambando com simplicidade Até que um dia trocaste o meu samba E a lua do morro pela luz da cidade

Segue o teu caminho, mariposa Já que esta luz te embriaga Mas nunca te esqueças, mariposa Que toda a luz se apaga

Presta bem atenção, mariposa Neste aviso derradeiro:

Antes que a luz da cidade se apague Podes cegar-te primeiro

Tal olhar sobre a cidade se mostra ainda mais evidente em outra canção interpretada por Nelson Gonçalves: o samba “Maria da Conceição”, composto por Carlos Marques, e gravado no mesmo LP em que se encontra “Mariposa” (GONÇALVES, 1959, LP, faixa 9). Em seu texto, o narrador fala sobre o momento em que descobriu, através de uma notícia de jornal, que sua antiga companheira, Maria, havia falecido. O momento parece ter sido muito doloroso, pois o eu-lírico afirma que quase chorou ao ver a notícia e que seu coração tremeu ao olhar para a fotografia, na qual se via o corpo da antiga companheira e “um copo quebrado, espalhado no chão”. Dessa forma, sugeria-se a ideia de que o homicídio havia acontecido em um bar.

O narrador também salienta que a legenda da foto não trazia o verdadeiro nome de sua companheira, mas o nome fictício de Conceição. O eu-lírico esclarece, então, o motivo da tragédia: Maria, a quem desejava ter como companheira durante “a vida inteira”, também foi seduzida pelas luzes da cidade, que teriam sido “sua perdição”.

Não há muitas informações além dessa, mas se pode imaginar que ela havia se vinculado à boemia da cidade, o que se supõe pelo fato do falecimento ter ocorrido no botequim, provavelmente através da atividade da prostituição que a teria levado a proteger sua real identidade através do nome falso de Conceição. Porém, nesse circuito da ilegalidade, algo deve ter saído errado, culminando na morte de Maria/Conceição. Aqui, portanto, a cidade é apontada como um local de imoralidades, as quais resultam em tragédias, à semelhança do que havia acontecido com as personagens das canções do item 6.2.

Maria da Conceição

Composição: Carlos Marques Interpretação: Nelson Gonçalves (1959) Classificação: samba

Quase chorei quando vi Em letras garrafais Seu nome sua tragédia Em todos os jornais Aquela fotografia Fez tremer meu coração Junto ao seu corpo se via

Um copo quebrado espalhado no chão

E ela, que era Maria

A legenda dizia: “Morreu Conceição” Maria foi a minha companheira

E eu pensava conservá-la a vida inteira As luzes da cidade foram sua perdição Eu perdi a Maria

E a legenda dizia: “Morreu Conceição”

Interessante perceber que, embora “Maria da Conceição” narrasse uma história trágica que culmina na morte da personagem, sua dimensão musical traz certa leveza. A canção foi gravada em andamento moderado, próximo a 80 BPM, com acompanhamento da orquestra do maestro Zaccarias, cuja formação se aproximava das big bands. Ouve-se com clareza a condução rítmica feita pelo pandeiro, que marca as quatro semicolcheias, reforçando a tematização e os estímulos corporais. Ao longo da parte cantada, o arranjo dos sopros privilegia backgrounds com notas longas, em legato, tocadas com suavidade, usando o registro médio dos instrumentos, especialmente saxofones e trombones, trazendo o fonograma para um clima mais leve. Porém, na introdução e nos interlúdios, a ênfase passava para os trompetes, que usavam registro médio-agudo, tocando com forte intensidade e realizando ataques com notas mais curtas, aumentando assim a alusão ao movimento. Os traços mais evidentes de tristeza aparecem na voz de Nelson Gonçalves. Assim, embora a história narrada de “Maria da Conceição” seja mais dramática do que a de “Mariposa”, o eu-lírico dessa última parece

mais melancólico com a partida da mulher do que o narrador da primeira com a morte de sua antiga companheira.

Por último, cabe mencionar uma última canção: trata-se de “Conceição”, samba-canção composto por Jair Amorim e Dunga, gravado por Cauby Peixoto no ano de 1956, lançado tanto em disco de 78 rpm (AMORIM; DUNGA, 1956, 78 rpm) quanto em LP (PEIXOTO, 1956, LP, faixa 7). A se julgar por seus títulos e pela história narrada, é bastante provável que essa canção de Amorim e Dunga tenha servido como modelo para a de Carlos Marques. “Conceição” é um samba-canção lento, em torno de 56 BPM, cujo acompanhamento é realizado por um naipe de cordas, guitarra, piano, contrabaixo acústico e pandeiro, uma instrumentação que, especialmente pela presença da guitarra, alude a algo mais moderno, com referências à música estadunidense. Seu texto conta a história de uma mulher chamada Conceição que morava no morro, mas sonhava “com coisas que o morro não tem”. O narrador informa que, um dia, apareceu alguém que, sorridente, disse a ela “que, descendo à cidade, ela iria subir”, ou seja, que teria chances de uma vida melhor no espaço urbano.

Contudo, logo na sequência, o narrador comenta que “ninguém sabe” se Conceição conseguiu melhorar de vida, justamente porque ela mudou de nome, à semelhança do que havia acontecido com a Maria da canção de Carlos Marques. Em “Conceição”, a alusão à prostituição aparece com um pouco mais clareza, pois, além da mudança de nome, seu texto informa que a antiga mulher do morro, ao chegar à cidade, trilhou “estranhos caminhos”. Diante disso, o eu-lírico afirma que a personagem, ao tentar ascender socialmente, acabou ficando em situação pior e que “daria um milhão / Para ser outra vez Conceição”. Novamente se articula o conjunto cidade-imoralidade-tragédia. A melodia da canção não possui uma tessitura muito ampla, de modo que, descartando-se as variações interpretativas que Cauby Peixoto faz, sua extensão é de 9M. Porém, ela é formada por muitos saltos intervalares, além de notas longas. Além disso, sua linha melódica se situa numa região aguda da tessitura, permanecendo predominantemente entre as notas Lá 3 e Ré 4, sua nota mais aguda, mas que já aparece desde a primeira frase. Tais características, somadas ao andamento lento, acentuam o caráter dramático já presente no texto. Cauby Peixoto também se utiliza de um timbre encorpado e de emissão vigorosa, especialmente na região aguda. A canção expressa

também em seu plano musical o lamento pela história de insucesso da personagem Conceição.

Conceição

Composição: Jair Amorim / Dunga Interpretação: Cauby Peixoto (1956) Classificação: samba-canção

Conceição

Eu me lembro muito bem Vivia no morro a sonhar

Com coisas que o morro não tem Foi então

Que lá em cima apareceu Alguém que lhe disse a sorrir

Que, descendo à cidade, ela iria subir

Se subiu

Ninguém sabe, ninguém viu Pois hoje o seu nome mudou E estranhos caminhos pisou Só eu sei

Que tentando a subida desceu E, agora, daria um milhão Para ser outra vez Conceição

Analisadas em seu conjunto, vê-se que essas três canções – “Mariposa”, “Maria da Conceição”, “Conceição” – focalizam a transição do morro para a cidade e em todas elas o desfecho é trágico. Na primeira, trata-se mais de um aviso, chamando a atenção para que a mulher não deixe que a cidade lhe “apague”. Na segunda, o desfecho já aconteceu e a personagem pagou com a vida seu desejo de ir à cidade. Por fim, em “Conceição”, o eu-lírico afirma que a própria personagem estaria arrependida e que desejaria retomar sua vida antiga.

Por mais que o tema principal dessas canções seja o movimento do morro rumo à cidade, o que subjaz a elas é o mesmo moralismo que já foi destacado anteriormente. As mulheres que saíam dos morros e partiam em direção à cidade buscavam outras formas de vida para além das funções de mãe, esposa ou dona de casa. Possivelmente o trabalho como assalariada, talvez em alguma indústria, fosse a principal expectativa, pois lhes daria a possibilidade de uma vida menos dependente do homem e, portanto, menos submissa a ele57.

Diante disso é que se opera a reação moralista do eu-lírico das canções analisadas. Eles transformam essa busca por um novo modelo de vida em uma história

57 As tensões decorrentes de algumas relações entre mulheres que se inseriam no mundo do trabalho e seus companheiros foi objeto de discussão do capítulo “Mulheres trabalhadoras” de Chalhoub (2001, p. 203-11).

trágica. O que buscam dizer é que as mulheres devem permanecer onde estão, pois seu deslocamento resultará em arrependimentos e até em sua própria morte. Trata-se de uma moral conservadora, que visa, em grande medida, à manutenção do sistema social tal qual se encontra organizado.

Dentro do repertório analisado até o momento, a única canção que se afastou em certa medida desse tom moralista foi a que deu início às discussões, “Dolores Sierra”. A personagem retratada nessa canção é a mesma das outras, ou seja, a mulher que não se conforma ao modelo que a sociedade lhe impõe. Porém, o olhar que o eu-lírico lança sobre ela é diferenciado. Sua história também traz um componente trágico, mas este não está associado à prostituição e sim ao abandono de Dom Pedrito. Em outras palavras, foi o casamento que lhe trouxe desgraça. A opção por se prostituir foi, na verdade, aquilo que havia tirado Dolores Sierra da miséria.

Talvez isso se deva em partes ao maior trânsito de Wilson Batista, seu compositor, pelo circuito boêmio, o que pode ter-lhe dado uma visão menos moralista em relação à vida das prostitutas. Algo semelhante aparece num comentário do cantor Jorge Goulart em relação às bailarinas, coletado por Alcir Lenharo. O intérprete se contrapunha à imagem sofrida que certos setores da sociedade nutriam sobre a figura das dançarinas, que se expressa em canções como “A vida da bailarina”. Goulart afirmou lembrar-se de que “a bailarina ganhava razoavelmente bem, pois rachava o que recebia com o dancing” (LENHARO, 1995, p. 23). Assim, uma proximidade maior de Wilson Batista e de Jorge Goulart com as bailarinas e prostitutas pode tê-los auxiliado a construir outras representações sobre essas mulheres. Ao contrário, outras canções aqui analisadas se mostravam mais presas a mitos e estereótipos, muitos deles de inspiração moralista e religiosa.