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Até aqui, mostrou-se apenas uma tentativa de Castilho (1997) de melhor organizar a perspectiva teórica sobre a gramaticalização. Mas o seu objetivo primário é, a partir do quadro de uma teoria modular, “propor um plano sistemático de estudo dos processos constitutivos da língua” (CASTILHO, 1997, p. 25). No texto A gramaticalização, de 1997, Castilho argumenta, basicamente, que o léxico é o módulo central da língua e nele estão depositados itens já marcados por propriedades gramaticais, discursivas e semânticas. Discurso, gramática e semântica são postulados como módulos e, portanto, a gramaticalização, a semanticização e a discursivização seriam os três grandes processos de constituição das línguas. Esses processos atuam simultaneamente em um mesmo item, através de um dispositivo de natureza cognitiva, que auxilia cada falante na exploração das potencialidades dos itens lexicais.

Qual seria, portanto, o módulo ou o processo a partir do qual se inicia o processo de mudança? Como esclarece Castilho (1997), depende do ponto de vista teórico adotado. Os funcionalistas elegem o discurso, privilegiando a enunciação. Os formalistas, a gramática,

privilegiando o enunciado. Para Castilho, no entanto, itens lexicais inerentemente possuem marcas gramaticais, discursivas e semânticas que serão ativados, desativados ou reativados, conforme a necessidade discursiva. Ou seja, Castilho ressalta que qualquer item lexical, contextualizado nos usos da língua, preserva, ao mesmo tempo, suas propriedades sintáticas, discursivas e semânticas, de modo que não é preciso estabelecer correlações de precedência genética entre elas, como faz Givón (1971 apud CASTILHO, 1997), que considera o discurso como ponto de partida da mudança lingüística.

No texto Para uma abordagem cognitivista-funcionalista da gramaticalização, de 2003, Castilho amplia essa proposta de uma teoria modular. Ele mostra a necessidade de se elaborar uma teoria multissistêmica, que dê conta da variedade de fenômenos que têm recebido o rótulo de gramaticalização e que reconheça a existência de outros processos que, além do processo de gramaticalização, são igualmente importantes para o pleno entendimento da criatividade lingüística.

O texto centra-se na visão de que a língua é um multissistema dinâmico, que graficamente pode ser representado numa forma radial, tendo no centro o léxico e à volta a gramática, a semântica e o discurso. O léxico seria governado por um dispositivo sociocognitivo de caráter pré- verbal, através do qual o falante ativa, reativa e desativa as propriedades lexicais, dando origem a categorias discursivas, semânticas e gramaticais. Esse postulado, conforme Castilho (2003), ajuda a evitar o equívoco de se utilizar indiscriminadamente o termo “gramaticalização” como rótulo para vários fenômenos lingüísticos, essencialmente diferentes. Esse dispositivo sociocognitivo age por acumulação de impulsos e, somente assim, pode-se dar conta da extraordinária complexidade da linguagem. Assim, para Castilho (2003), fica difícil concordar com análises que mencio nam o “desbotamento” de sentido ou a “erosão” fonética, pois a língua revela um processo contínuo de ganhos e perdas de propriedades semânticas, gramaticais, dentre outras.

Castilho (2003) explica, adicionalmente, que a mente opera simultaneamente sobre o conjunto das categorias lexicais, discursivas, semânticas e gramaticais. Os produtos lingüísticos resultantes podem ser representados sob a forma de uma constelação.

Cada um dos subsistemas, que operam simultaneamente na língua, o léxico, o discurso, a semântica e a gramática, é explicado por Castilho.

O léxico é o conjunto de propriedades cognitivas abstratas, potenciais, prévias à enunciação, com base nas quais se constroem os traços semânticos inerentes. As categorias cognitivas, de acordo com Castilho, seriam VISÃO, COISA, ESPAÇO, TEMPO. Tais categorias podem ser expressas em subcategorias. As subcategorias de visão são fundo e

figura, as de espaço, verticalidade, horizontalidade, transversalidade e assim por diante. Os

traços semânticos inerentes são animado e inanimado, télico e não télico etc. Combinando categorias cognitivas e traços semânticos inerentes constituídos a partir dessas

categorias, obtêm-se os itens lexicais, que serão realizados no dicionário, seja como um nome, um advérbio, uma conjunção ou uma preposição. Conforme esse ponto de vista, não é sustentável o conceito de que uma categoria tal como a dos prefixos, por exemplo, derive-se das preposições. Cada categoria corresponde, na verdade, a um determinado arranjo de traços. O discurso é uma sorte de contrato social estabelecido lingüisticamente, de que decorrem os usos lingüísticos. Cunha, Costa e Cezário (2003) definem o discurso como um conjunto de estratégias criativas utilizadas pelo falante, com o objetivo de organizar funcionalmente o seu texto para um determinado ouvinte em uma determinada situação comunicativa. Martelotta e Alcântara (1996) explicam que a discursivização é um processo de mudança que leva determinados elementos lingüísticos a serem usados para reorganizar o discurso.

A semântica é a criação dos significados baseada em estratégias cognitivas. De acordo com Castilho (1997), parece inadequado postular que sentidos abstratos derivem-se de sentidos concretos, o que pareceria apontar para mentes primitivas, capazes, inicialmente de formular conceitos concretos e que, com o tempo, se desenvolveriam, adquirindo a capacidade de lidar com domínios abstratos.

Finalmente, a gramática é o conjunto de estruturas razoavelmente cristalizadas, ordenadas nos subconjuntos da fonologia, morfologia e sintaxe e governadas por regras de determinação interna.

Assim como no texto de 1997, Castilho, em 2003, argumenta que “uma mesma expressão lingüística exibe simultaneamente propriedades lexicais, discursivas, semânticas e gramaticais, variando o grau de saliência entre elas, por razões pragmáticas”.

Uma das conseqüências da adoção desse ponto de vista é o abandono da afirmação de que existe uma transição gradual entre categorias maiores, intermediárias e menores, num ritmo unidirecional. O que ocorre, conforme Castilho, são movimentos sociocognitivos contínuos e simultâneos de agrupamentos de propriedades em um processo multidirecional. A gramaticalização resume-se a três subprocessos: fonologização, morfologização e sintaticização. A unidirecionalidade “só pode ser comprovada no tratamento das palavras no interior de cada um desses subprocessos.”. Priva-se, dessa maneira, a gramaticalização, da centralidade que geralmente lhe é conferida.

nome, preposição e afixo à luz da teoria multissistêmica em forma radial, constata-se que ocorre, não exclusivamente um processo de gramaticalização, mas também processos simultâneos de ativação, reativação e desativação de determinadas propriedades lexicais, semânticas e discursivas de um signo lingüístico.

O próprio Castilho reconhece a necessidade de mais pesquisas para “arredondar” seus argumentos. Mattos e Silva (2002) questiona também se a multidirecionalidade em forma radial, como propõe Castilho, seria aplicável a qualquer caso de gramaticalização. Por esses motivos, preferiu-se, nesta pesquisa, realizar apenas uma aplicação superficial, limitada, da proposta de Castilho (2003) de estudo multissistêmico ao corpus selecionado.

De qualquer modo, essa proposta apresenta-se como uma opção teórica, especialmente nos casos em que há dificuldades de se conciliar os dados coletados relativos à mudança lingüística com determinados pressupostos da teoria da gramaticalização, como o princípio da unidirecionalidade, o que ocorre em algumas situações de mudança, envolvendo as preposições e os prefixos, consideradas nesta pesquisa.

4 AS TEORIAS SEMÂNTICAS DO LOCALISMO E DOS PROTÓTIPOS

As teorias do localismo e dos protótipos procuram dar conta de determinados aspectos semânticos observados durante o processo de gramaticalização, contribuindo, dessa maneira, para a investigação dos valores semânticos atribuídos aos itens gramaticais ao longo do tempo. A gramática funcional, priorizando a comunicação entre os falantes, tem como marco inicial de estudo as significações das expressões lingüísticas e procura investigar como as mesmas se codificam gramaticalmente. Por isso, a Teoria dos Protótipos e a Teoria Localista aparecem como dois dos mais discutidos tópicos no contexto dos estudos funcionalistas.