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Há muitos pontos de vista sobre a gramaticalização. Como observa Poggio (2004), os teóricos não se entendem nem quanto à maneira de nomear o processo: gramaticização, gramatização, gramaticalização, apagamento semântico, condensação, enfraquecimento semântico, esvaimento semânt ico, morfologização, reanálise, redução, sintaticização são alguns dos rótulos dados ao fenômeno que leva itens lingüísticos a terem um uso mais previsível, regular. Em virtude dessa “confusão” terminológica, que é um reflexo da multiplicidade de conceitos sobre a gramaticalização, Costa (2003), antes de aplicar essa teoria aos adverbiais espaciais e temporais quinhentistas do português, considerou mais produtivo, ao invés de simplesmente reproduzir as diversas propostas, apresentar a sua

compreensão sobre o processo de gramaticalização, distribuindo as características desse processo em cinco categorias: PROPRIEDADES, MOTIVAÇÕES (OU GATILHOS), MECANISMOS, ESTÁGIOS e PARÂMETROS.

O primeiro a empregar o termo gramaticalização foi Antoine Meillet (1948) em 1912, definindo esse termo como a atribuição de um caráter gramatical a uma palavra outrora autônoma. Castilho (1997) contrasta as palavras gramaticalização e gramaticização. Segundo ele, gramaticização refere-se, especificamente, ao processo de mudança observado na sincronia. A gramaticalização, por sua vez, observa, diacronicamente, o produto final resultante da gramaticização. Mas, como o termo gramaticalização se tornou mais difundido, Castilho e outros autores o empregam sistematicamente, tanto nos estudos sincrônicos como nos diacrônicos, e é esse procedimento que também se adota nesta pesquisa.

Poggio (2002) destaca três grupos de conceitos de gramaticalização, pertencentes a épocas e com perspectivas diferentes.

O primeiro grupo, que predominou até 1970, opera com o léxico e a gramática. Heine e Reh (1984 apud CASTILHO, 1997), por exemplo, entendem a gramaticalização como uma “evolução em que unidades lingüísticas perdem em complexidade semântica, liberdade sintática e substância fonética.”. Muito próximo a esse conceito está o dado por Kurylowicz (1965 apud POGGIO, 2002). Kurylowicz associa a gramaticalização ao processo de ampliação dos limites de um morfema, quando esse avança do léxico para a gramática. Nesse processo, o item lexical sofre perdas semânticas e fonológicas.

G. Sankoff (apud POGGIO, 2002) observa que um item se gramaticaliza quando sai de uma classe aberta para uma fechada, tornando-se palavras funcionais. Roberts (1993 apud CASTILHO, 1997), semelhantemente, vê a gramaticalização como “a mudança de uma categoria léxica para uma funcional, associada à perda do conteúdo lexical. No caso dos verbos, como exemplifca Roberts, ocorre o seguinte cline20: verbo pleno>construção predicativa>forma perifrástica>aglutinação. Pode-se incluir nesse grupo o conceito de Meillet (1948), que, como visto antes, vê a gramaticalização como um processo de atribuição de um caráter gramatical a uma palavra outrora autônoma, ou lexical.

Em relação ao primeiro grupo, Cunha, Costa e Cezário (2003) acrescentam que o estudo da gramaticalização pode se ocupar das formas que migram do léxico para a gramática (gramaticalização stricto sensu) ou das formas que mudam no interior da própria gramática (gramaticalização lato sensu).

20 Conforme Hopper e Traugott (1993), os clines podem ser entendidos como as fases de transição no processo de mudança lingüística.

O segundo grupo, com atuação intensa a partir dos meados da década de 70, opera com o discurso e a gramática. Essa nova perspectiva de conceitualização de gramaticalização considera não apenas as mudanças envolvendo o léxico e a gramática, mas também inclui a reanálise dos moldes do discurso para os moldes gramaticais. T. Givón (1971 apud CASTILHO, 1997) propôs o seguinte ciclo de mudança: discurso>sintaxe>morfologia>morfofonêmica>zero. Assim, conforme Givón, o processo de mudança teria como marco inicial estratégias discursivas21. J. Dubois (1965 apud CASTILHO, 1997) aponta a recursividade de determinadas estratégias discursivas como um importante fator para o surgimento de novos padrões gramaticais. Hopper (1988 apud CASTILHO, 1997), numa postura extremada, propôs o conceito de gramática emergente. Segundo esse conceito, como observa Castilho (1997, p. 31), não existe gramática, e sim gramaticalização, “que é a cristalização das formas discursivas mais produtivas”, pois as necessidades comunicativas do discurso fazem com que as regularidades sejam provisórias, continuamente sujeitas à negociação, à renovação e ao abandono.

Por fim, o terceiro grupo de conceitos de gramaticalização envolve os cognitivistas. Trata-se de uma nova linha de pesquisa, que vê a gramaticalização como um fenômeno externo à estrutura da língua e pertencente ao domínio cognitivo. Assim, além da interface com a lingüística funcional, a teoria da gramaticalização apresenta uma interface com a Lingüística Cognitiva. S. Svorou (1993), por exemplo, salienta que a investigação da história das formas gramaticais reflete aspectos mais profundos da interação social e aspectos da construção cognitiva dos seres humanos. Adeptos da teoria do localismo e da teoria dos protótipos levam em consideração conceitos metafóricos no estudo dos processo de gramaticalização, conforme será observado no capítulo quatro.

Um dos mais completos conceitos de gramaticalização talvez seja o apresentado por Castilho (1997, p. 31). Na sua proposta, Castilho, de uma forma abrangente, leva em consideração aspectos morfossintáticos, funcionais e semânticos, além das etapas geralmente seguidas no processo de gramaticalização:

21 Castilho, no entanto, considera inadequado estabelecer relações de precedência entre módulos lingüísticos

tais como o Discurso e a Gramática. Na sua nova proposta de estudo multissistêmico, Castilho (2003) postula que uma mesma expressão lingüística exibe simultaneamente propriedades lexicais, discursivas, semânticas e gramaticais, variando o grau de saliência entre elas, por razões pragmáticas. Essa proposta de Castilho será explanada no item 3.5.

Gramaticalização é o trajeto empreendido por um item lexical, ao longo do qual ele muda de categoria sintática (recategorização), recebe propriedades funcionais na sentença, sofre alterações morfológicas, fonológicas e semânticas, deixa de ser uma forma livre, estágio em que pode até mesmo desaparecer como conseqüência de uma cristalização extrema.

Castilho (1997) aponta ainda as três direções tomadas pelos debates sobre o processo de gramaticalização:

1 - Tipologia lingüística, que inclui a chamada teoria da aglutinação, de W. Won Humboldt, postulada em 1822.

2 - Sintaxe conversacional: segundo os estudiosos da sintaxe conversacional, grande parte da organização gramatical vai emergir das falas.

3 - Mudança lingüística.

Referente à terceira direção apontada por Castilho (mudança linguística), Poggio (2002) cita o filósofo francês Condillac que, em 1746, assinalou que formas gramaticais provêm de lexemas e os afixos de formas livres. Citou ainda Horne Took (1786 e 1805), cujos trabalhos apresentaram a seguinte divisão: Nome e verbo (palavras necessárias, essenciais do discurso) e outras classes de palavras (conjunções, advérbios e preposições) decorrentes de mutilações das palavras necessárias. Os neogramáticos, no século XIX, acreditavam que a gramaticalização servia como um parâmetro para a explicação da lingüística diacrônica. Poggio (2002) chama atenção também para Franz Bopp (1816), que, no contexto dos estudos comparativos, apresentou exemplos de como itens lexicais desenvolveram-se em auxiliares, afixos e/ou flexões.

Meillet (1948) considerou a analogia e a gramaticalização como os dois principais processos de mudança gr amatical. Diferentemente dos processos analógicos, a gramaticalização introduz formas e categorias novas, dotando-as de expressão lingüística, o que causa a transformação do conjunto do sistema. Esse autor propôs a existência de três classes de palavras: palavras principais, palavras acessórias e palavras gramaticais. Para Meillet, no processo de mudança, ocorre uma transição gradual entre essas três classes. Como explica Castilho (1997), essa transição envolve esvaimento tanto do sentido quanto da forma da palavra. As postulações de Meillet insinuam, assim, que “a gramaticalização é um processo inacabado, sem fim” (CASTILHO, 1997). Castilho inclui ainda os trabalhos de Robert (1993 apud CASTILHO, 1997) e Kurylowicz (1965 apud CASTILHO, 1997) na direção da mudança lingüística.

Percebe-se, então, a diversidade dos estudos sobre a gramaticalização. Os teóricos, como se observou, divergem quanto à melhor maneira de nomear o processo e, até mesmo, no que se refere ao próprio conceito de gramaticalização. Isso é digno de nota, especialmente, quando se sabe que os estudos de gramaticalização não são recentes, apenas receberam novo enfoque no contexto do funcionalismo, cujos estudos avançaram a partir de 1970. É evidente, portanto, a complexidade dos fenômenos de gramaticalização e a necessidade de estudos que, voltados para diferentes aspectos, exemplifiquem e esclareçam, na medida do possível, os fatores que influenciam esse processo, como procura fazer a presente pesquisa através da consideração de prefixos derivados de preposições.

As divergências não se esgotam aqui. À medida que se aprofunda no estudo do tema, são observadas discussões ainda mais acirradas sobre a gramaticalização. Mas é ponto pacífico a premissa de que a gramaticalização é uma das evidências do aspecto não-estático da gramática de uma língua. Continuamente, itens lingüísticos perdem a eventualidade criativa do discurso, passando a ser regido por restrições gramaticais. Como ressalta Lopes (2003, p. 2):

É como se os elementos lexicais fossem perdendo suas potencialidades referenciais de representar ações, qualidades e seres do mundo biossocial e fossem ganhando a função de estruturar o léxico na gramática, assumindo, por exemplo, funções anafóricas e expressando noções gramaticais como tempo-modo, aspecto etc.