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CENA 1 HERÓIS: A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO UNIVERSAL NA TRADIÇÃO

1.4 Depois da vertigem, o herói recomposto: o jurídico e a construção de poderes

1.4.3 A proposta de direitos fundamentais como direitos subjetivos

A teoria dos direitos fundamentais sintetiza de maneira mais elaborada o propósito dos direitos subjetivos, como uma categoria especial de direitos. Além de ocuparem lugar de destaque na Constituição, gozam de uma proteção que os elevam a um status ontológico, protegidos contra alterações redutoras. Assim, numa ordem jurídica estabelecida, são experimentados como verdadeiros direitos inerentes, oponíveis contra o arbítrio do outro, como núcleos imutáveis.

A ideia de direitos fundamentais como direitos subjetivos está exposta de maneira enfática, por exemplo, na teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy49. A sua proposta concentra-se nos aspectos analíticos, deixando para um segundo plano outras questões empíricas e normativas. Reconhece que o tema é espinhoso, sendo alvo tanto de críticas quanto de uma profusão de ideias confusas e díspares. Assim, distinguindo norma de posição, Alexy concebe os direitos subjetivos como posições (status) e relações jurídicas (direitos oponíveis ao Estado, ações intersubjetivas protegidas contra a ingerência do Estado, etc). A partir desta perspectiva, é possível distinguir três degraus: (a) razões para os direitos subjetivos; (b) direitos subjetivos como posições e relações jurídicas; e (c) a imponibilidade jurídica dos direitos subjetivos (competência e permissões)50.

A exata compreensão destes três degraus permite afastar boa parte das confusões acerca da definição de direitos subjetivos. No plano das razões para os direitos subjetivos, é preciso entender que diferentes razões podem fundamentar diferentes direitos subjetivos. ―Tanto na teoria dos interesses como na da vontade surgem numerosas dificuldades devido a que a fundamentação de um direito é tratada como uma característica do conceito de

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ALEXY, Robert . Los derechos fundamentales como derechos subjetivos, in: Teoría de los derechos

fundamentales [Trad. de Ernesto Garzón Valdés]. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. Por uma

questão metodológica, fixamos que não é tarefa deste estudo aprofundar o debate sobre os direitos fundamentais mas apenas, com este espaço de produção teórica, pontuar algumas críticas.

50

direito‖51

, citando como exemplos Jhering e Windscheid. Para a teoria dos três níveis, tanto os bens individuais quanto os bens coletivos fundamentam os direitos individuais, que são tratados como sinônimos de direitos subjetivos ou direitos do indivíduo52.

Quanto aos direitos subjetivos como posições e relações jurídicas, Alexy cria uma catalogação entre direitos a algo, liberdades e competências. Neste nível, os direitos subjetivos têm um caráter puramente deôntico e pressupõem uma estrutura triádica, entre dois sujeitos e o objeto. O terceiro nível, o da imposição, assim como o primeiro, não pode estar no próprio conceito de direito, mas guarda com o segundo nível uma relação de fundamentação. Mas sobre ele Alexy não desenvolve muito, já que o foco central que interessaria a uma teoria analítica da dogmática seria mesmo o segundo nível, aquele dos direitos subjetivos como posições e relações jurídicas.

Por ora, resta-nos destacar que Alexy53 argumenta pela precedência prima facie em favor dos direitos individuais quando confrontados com bens coletivos. Ou seja, que, em nome da liberdade, só se restrinjam direitos individuais quando os bens coletivos apresentarem razões mais fortes e claras. Se as razões são duvidosas ou equiparadas, devem- se preferir os direitos individuais.

A escolha alexyana está inserida por completo neste projeto de modernidade que, criando o homem e seus duplos, não consegue afastar suas contradições internas. ―Um discurso que se pretende ao mesmo tempo empírico e crítico só pode ser, a um só tempo, positivista e escatológico; o homem aí aparece como uma verdade ao mesmo tempo reduzida e prometida‖54

.

51

―Tanto en la teoría de los intereses como en la de la voluntad surgen numerosas dificultades debido a que la

fundamentación de un derecho es tratada como una característica del concepto de derecho”. ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho. Trad. Jorge M. Seña, 2 ed, Barcelona: Gedisa, 1997, p.180.

52

Idem, p.182.

53

Idem, p.207.

54

Uma concepção, enfim, que herda uma herança forte da subjetividade moderna, a despeito das discussões pós-modernas, céticas, das críticas da razão, das críticas dos comunitaristas e da denúncia da ilusão de uma racionalidade e universalidade ontológica que tem existência a menos de dois séculos e está fadada a desaparecer como um rosto de areia na orla do mar55.

Mas não se pode, contudo, imaginar que as contradições nesta subjetividade que a modernidade inventou por si só metamorfoseiem novas subjetividades. ―De facto, podemos encontrar na modernidade tudo que é necessário para formular uma solução, tudo menos essa solução‖56

. É nesse sentido que Boaventura de Sousa Santos aponta para um paradigma emergente que rompa a modernidade em seus desdobramentos, realinhando as linhas de força entre seus elementos de regulação e emancipação e permitindo o emergir de novas formas de experiência.

E é neste sentido que esperamos encontrar em Foucault, doravante, traços, relampejos, imagens e figuras de subjetividades mais emancipadas. Antes, porém, é preciso compreender que este rosto de areia que foi criado na modernidade, na tentativa de reforçar sua identidade, sua positividade, de afirmar-se como normalidade, constrói também sua sombra, sua negatividade, o seu não-ser. Os esforços de construção de uma imagem de herói não teriam sido tão bem sucedidos se de alguma forma não fossem simultaneamente construídos seus vilões. Na espiral foucaultiana, o resgate dos discursos, e mais do que isso, de uma própria instância de discursividade seria a estrutura para a criação de um modelo de sujeito que, em seus propósitos, apresenta-se como o próprio sujeito, único e universal, civilizado e evoluído. Mas os discursos constroem não só ele mesmo – o sujeito, mas também

55

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, 1981, p.404. Deve-se concordar com Merquior que esta frase final de ―As palavras e as coisas‖ tem um tom quase apocalíptico, meio vidente, exagerado. Exatamente por isso, talvez, tenha sido tão divulgada, seja tão significativa de sua investida contra o homem moderno, ao mesmo tempo construído e objeto dos saberes que se nomeiam ciências humanas. Cf. MERQUIOR, J. G. Michel

Foucault ou o niilismo de cátedra, 1985

56

o seu outro: louco, delinquente, pervertido. O movimento desta encenação é agora empreendido por uma espécie de oposição entre razão e loucura, lei e delinquência, moral e perversão. O homem e seus duplos. Heróis e vilões.