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CENA 1 HERÓIS: A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO UNIVERSAL NA TRADIÇÃO

1.3 Cai a máscara: Foucault e ―o acordar do sono antropológico‖

Foucault se inseriu no pensamento contemporâneo que pretendeu a superação do paradigma da filosofia da subjetividade23, buscando na denúncia da ideologia atrelada à historicidade, destituir o homem deste patamar que o coloca acima dos jogos de poder e independente dos jogos de verdade. Especialmente quando pretende desatrelar o status epistemológico de ciência dos saberes humanos, em As palavras e as coisas, Foucault teve em sua mira exatamente este Homem e todo um conjunto de saberes que o constituem enquanto tal, cujo resultado, após esta arqueologia das ciências humanas, outra coisa não é senão o seu desaparecer, junto com o deslocamento das relações de poder para outros saberes e cujo vazio Foucault não arriscou indicar conteúdo.

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Cf. NOVAES, Adauto (org). Civilização e Barbárie, São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Neste livro, a crítica é direcionada, sobretudo, ao imaginário em torno da civilização que, tendo suas estruturas vasculhadas, representa, ela mesma, a barbárie.

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O método utilizado por Foucault nesta obra foi ainda a arqueologia24, vacilando entre aceitar ou não o estruturalismo. ―Ora, esta investigação arqueológica mostrou duas grandes descontinuidades na episteme da cultura ocidental: aquela que inaugura a idade clássica (por volta de meados do séc. XVII) e aquela que, no inicio do século XIX, marca o limiar de nossa modernidade.‖25

Com isso, a continuidade histórica e de pensamento entre Renascimento e modernidade não passaria de uma visão equivocada26.

Até o final do século XVI, o saber ocidental se viu focado na noção de similitude (em seus quatro desdobramentos, como conveniência, emulação, analogia ou simpatia) e daí porque a representação se dá como imitação, repetição. A busca da semelhança resgata a sincronia entre macrocosmo e microcosmo, sobrepondo semiologia e hermenêutica, signos e significados, transformando a natureza num grande texto único e decifrável: a escrita é a prosa do mundo27.

Mas algo aconteceu com a linguagem que, na imagem do quadro Las Meninas de Velásquez, ao tentar representar com fidelidade seus elementos, criou um vazio, retirou o significante de lugar, escapou do sujeito mesmo e fez da representação pura representação. Este algo é a separação entre as palavras e as coisas. A linguagem, não podendo mais representar o mundo por imitação, vai cambiar para um outro espaço, não completamente

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A partir da Ordem do discurso, conferência proferida por ocasião de seu ingresso no Collège de France, Foucault aponta um novo direcionamento de sua episteme, agora em busca de uma genealogia, permeada de influências de suas leituras de Nietszche, deslocando o anterior projeto arqueológico. ―Uma arqueologia não é uma ‗história‘ na medida em que, como se trata de construir um campo histórico, Foucault opera com diferentes dimensões (filosófica, econômica, científica, política, etc.) a fim de obter as condições de emergência dos discursos do saber de uma dada época, [...] a fim de descrever não somente a maneira pela qual os diferentes saberes locais se determinam a partir da constituição de novos objetos que emergiram num certo momento, mas como eles se relacionam entre si e desenham de maneira horizontal uma configuração epistêmica coerente‖ REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. Trad. Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez, Carlos Piovesani, São Carlos: Claraluz, 2005, p.16.

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FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, 1981, p. 12

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Sobre a proposta foucaultiana de descontinuidade histórica, a partir de epistemes monolíticas, Merquior tece uma longa e considerável crítica, acusando Foucault de manipular dados, ignorar pensadores, entre outras questões. Cf. MERQUIOR, José Guilherme. Michel Foucault ou o niilismo de cátedra. Trad. Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

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impotente, mas cerrado em si mesmo: linguagem como linguagem, fechada na sua natureza de signo28.

A descontinuidade também ficou estabelecida pela crítica da semelhança que se viu já no início do séc.XVII. Em Descartes, como em Bacon, Foucault percebe esta atitude. O cartesianismo não tratou de abandonar toda noção de semelhança: a semelhança que se abandonou é a certeza das correspondências materiais do mundo. A razão compara (por medida e por ordem) para identificar, e a semelhança então é trabalhada apenas enquanto forma ou procedimento universal. Ela é pura forma, que busca identidade e diferença: racionalismo29. E com isso, a linguagem, já desprendida do mundo por um primeiro momento, vai se retirar ―do meio dos seres para entrar na sua era de transparência e de neutralidade‖30

, a serviço da ciência como saber universal, como crítica (análise) e não como comentário.

Uma segunda descontinuidade estará em curso, marcando a modernidade e rompendo com o período clássico. Na passagem do séc. XVIII ao séc. XIX, uma série de acontecimentos vão refazer a episteme: uma sensível mudança no tempo, um dispositivo qualquer que metamorfoseia troca em produção, classificação em organização, visível em invisível, e de indivíduo, o homem se torna um organismo. A crítica, com Kant, denuncia o dogmatismo da representação e, com isso, denuncia a própria metafísica. Mas não sem, em seu lugar, colocar uma outra metafísica: a da condição do próprio pensamento enquanto puro pensamento31. Kant, definitivamente, nos joga na modernidade e o homem, enfim, pode-se

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FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, 1981, p.60-3. Para esse giro, Foucault utiliza a imagem e o conteúdo de Dom Quixote.

29

Idem, p.66-9.

30

Idem, p.71.

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Idem, p.258. A complexidade deste momento ganha a seguinte observação do autor: ―as consequências mais longínquas e, para nós, as mais difíceis de circunscrever, do acontecimento fundamental que sobreveio à

episteme ocidental por volta do fim do século XVIII, pode assim se resumir: negativamente, o domínio das

formas puras do conhecimento se isola, assumindo ao mesmo tempo a autonomia e soberania em relação a todo saber empírico, fazendo nascer e renascer indefinidamente o projeto de formalizar o concreto e de constituir, a despeito de tudo, ciências puras; positivamente, os domínios empíricos se ligam a reflexões sobre a

pensar como Homem, mas não sem que esse movimento de se duplicar retire a ambiguidade desta nova episteme. Este homem é ao mesmo tempo empírico e transcendental, pensa a finitude e, no pensamento, transcende-a.

Este duplo empírico-transcendental32 está presente na formulação da natureza humana e do direito subjetivo e, com isso, o próprio paradoxo destas expressões: uma natureza (empírica) humana (transcendental)? Um direito (empírico) subjetivo (transcendental)? Este projeto de homem estaria já na eminência de uma nova ruptura?

1.4 Depois da vertigem, o herói recomposto: o jurídico e a construção de poderes -