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Déficit de legitimação democrática do direito: do decidir ao partilhar

CENA 4 O TRIBUNAL, O VEREDICTO E A CONSTRUÇÃO DE UM CERTO MODELO

4.3 Déficit de legitimação democrática do direito: do decidir ao partilhar

Evidentemente só o radicalismo do realismo norte-americano pode sustentar que o direito é (no presente do indicativo) aquilo que o juiz diz que ele é. De resto, a proposta forte do (neo)constitucionalismo é reatrelar o direito à moral na tentativa de legit imar as escolhas e decisões dos juízes. Embora ele decida, determine (crie e concretize) o que é o direito, ele o faz inspirado pelos valores objetivamente lançados pela Constituição, ou seja, pelo próprio direito. Não se trata mais de sustentar uma subordinação metodológica à lei, mas de

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Este é o ponto central tomado por Pozzolo para ressaltar o caráter ambíguo deste (neo)constiucionalismo, ao defender a necessidade de, metodologicamente, permanecer a separação entre direito e moral, mesmo que se queira, do ponto de vista ideológico, superar as inadequações e insuficiências do positivismo legalista. POZZOLO, Susana. Um constitucionalismo ambíguo. In: CARBONELL, Miguel (org). Neoconstitucionalismo

comprometer o Judiciário com uma Constituição que representa a unidade do direito, apesar do pluralismo valorativo que consagra em seu texto270.

Acontece que, se era fácil perceber os interesses de uma elite influente na elaboração das leis, mesmo sob o discurso de neutralidade e abstração normativa, não é difícil imaginar que este discurso constitucionalista e concretista também possa camuflar os mesmos interesses sectários, ou se entregar a uma aleatória moral dos juízes que supõem encontrar em suas elucubrações a decisão correta. A democracia passa ao largo desta concentração de poderes no Judiciário, exatamente porque se a democracia pressupõe um poder secularizado, dividido e paciente para permitir a participação coletiva, a crença nos juízes representa o seu reverso, de modo que a crença numa racionalidade competente está muito próxima daquela outra crença mitológica nos semi-deuses271. Não é à toa que a caracterização de Dworkin do juiz Hércules tenha caído tão bem.

Por isso, quando pensamos na tensão entre direito e democracia tal como colocada hodiernamente, o foco é mesmo a legitimidade da atividade jurisdicional. O que é o ato de julgar, interpretando um direito? Ou mais propriamente: o que é o ato de interpretar depois da virada hermenêutica? Em que medida é possível estabelecer controles à atividade decisional reaproximando direito e democracia?

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O que, aliás, dificilmente escapa de um paradoxo: como a Constituição, pletora plural de valores (até antagônicos) pode representar uma unidade, pode servir de referência à polissemia de significados que as decisões dos diversos juízes representam? Que força ela tem como baliza se pode, ao mesmo tempo, servir ―a deus e ao diabo‖? O caso brasileiro é ilustrativo: Com base nesta Constituição plural, tanto a defesa da propriedade privada (do latifundiário, estrangeiro até, que planta uma monocultura para exportação) quanto a sua função social (para fins de reforma agrária e erradicação das desigualdades sociais, fome e pobreza) encontram guarida. Em que medida pode-se falar em uma unidade? Para um possível enfrentamento desta questão, que discute a questão da igualdade e da democracia no quadro de uma sociedade pluralista, cf. NEVES, Marcelo.

Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, São Paulo: Martins Fontes, 2006, cap.IV.

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Aliás, Barberis é enfático em sua conclusão: ―el „imperialismo de la moral‟ que impregna el

neoconstitucionalismo, desde este último ponto de vista, parece comparable a la elección de un único dios: en este caso, un dios muy parecido a la divinidad celosa de la tradición judeo-cristiana. Una opción monoteísta, bien entendida, es perfectamente legítima, pero es siempre una opción [...] admitir la recíproca autonomía y el posible conflicto entre valores jurídicos y morales permite no sólo perseguir el objetivo de una relación equilibrada entre los diversos ámbitos de la práctica, sino también evitar el peligro de la tiranía de los valores‖.

BARBERIS, Mauro. Neoconstitucionalismo, democracia y imperialismo de la moral. In: CARBONELL, Miguel (org). Neoconstitucionalismo(s), 2003, p.277-8.

Sem pretensão de esgotar o assunto, é preciso pelo menos definir: qual democracia? Decerto que não estamos pensando no modelo hegemônico representativo da democracia liberal centrista. Neste modelo, a apatia política (um dos vazios identificados) é tomada de forma positiva, já que a participação é vista de forma minimalista e concentrada na eleição de representantes.

Por outro lado, o valor democrático é reduzido ao procedimento, ao estabelecimento das regras do jogo272, de modo que ao mesmo tempo em que se propaga a democracia como uma ideologia pacífica e apta a gerir a complexidade das sociedades contemporâneas, esta democracia propagada está alijada de seu potencial de emancipação e participação, porque reduzida ao procedimento e este, ao momento eleitoral. A constatação da alienação da sociedade de massa serve de argumento para uma diminuição ainda maior da participação popular. É uma democracia cada vez menos democrática273.

A democracia que pensamos como referência para tensionar com o modelo jurisdicional de sistema jurídico é uma democracia participativa, valorizadora dos espaços públicos, dos momentos coletivos, propulsora de emancipação social. Decerto que esta perspectiva de democracia é mais teórica do que efetiva na história das instituições ocidentais. Sem querer entrar na tensão entre teoria e prática, o fato de ser contra-hegemônica não impede, no entanto, de servir como paradigma.

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Esta é a posição de Bobbio em sua obra O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Em especial, na parte dedicada à comparação entre democracia representativa e direta, onde faz uma longa defesa da primeira, ainda que tente aperfeiçoá-la, aproximando-a da segunda. BOBBIO. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

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Para uma análise aprofundada da questão, conferir Boaventura de S. Santos. Democratizar a democracia: os

caminhos da democracia participativa é o primeiro volume de uma coleção de livros cujo tema geral é a

globalização alternativa, perpassando pelos projetos econômicos, culturais, epistemológicos, ecológicos, etc. O argumento central ―é que o modelo hegemônico de democracia (democracia liberal, representativa), apesar de globalmente triunfante, não garante mais que uma democracia de baixa intensidade baseada na privatização do bem público por elites mais ou menos restritas, na distância crescente entre representantes e representados e em uma inclusão política abstrata feita de exclusão social. Paralelamente a este modelo de democracia sempre existiram outros modelos, como a democracia participativa ou popular, apesar de marginalizados ou desacreditados.‖ SANTOS, Boaventura de S. (org) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2002, p.32.

Assim, tomando a participação como elemento democrático de análise, é perceptível o alinhamento do Estado de direito baseado no monismo jurídico, na supremacia da lei e na abstração normativa com o modelo hegemônico de democracia representativa. Soçobram elementos procedimentais ao tempo em que se esvaziam os elementos valorativos, conteudísticos274.

Por outro lado, esta apatia política permite o reforço dos argumentos da técnica, da competência e da racionalidade de modo que a semente do (neo)constitucionalismo, que procura encerrar na figura do juiz estas qualidades, ganha terreno fértil. E se a política, em seu sentido mais ordinário, como gestão do espaço público, não é capaz de dar o tom à ética, é a moral particular, do mundo privado quem se avizinha do direito. Se o (neo)constitucionalismo é uma tentativa de responder criativamente a um positivismo superado, esta resposta afasta ainda mais direito e democracia, porque substitui, como critério de legitimação, uma representatividade política apenas formal por uma moral individual aleatória, quando não elitista, considerando a formação e classe social mais ou menos definidas dos juízes.

Mesmo se tomarmos a concepção hegemônica de democracia representativa, crendo (e isto é tão somente uma suposição) em seus elementos mais simplistas, o (neo)constitucionalismo só ganha voz onde a política estiver realmente muda. Pois de plano, a legitimidade democrática do juiz em termos de representatividade é ainda menor do que aquela do parlamento eleito, que delibera em turnos, por maioria simples ou qualificada, e cria a lei. Mas já descartamos o mito da democracia representativa e de ―sua vontade geral‖ e o desafio democrático ganha outra dimensão.

O outro déficit democrático que identificamos toma como ponto de observação mais propriamente a atividade decisional, do seu ângulo interno. Do caso concreto (fático) que impulsiona o processo à decisão judicial, o que temos é uma atividade arbitrária de

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O alinhamento se faz igualmente com o positivismo jurídico, particularmente com o normativismo kelseniano.

determinação de sentido275. Explicando melhor: uma atividade arbitrária porque permeada por uma experiência, por uma subjetividade que é contingente, singular. O juiz como ator (não se fala mais em mero aplicador), este juiz criativo, sensível à ponderação de valores, este juiz que considera não só a lei, mas também valores, princípios, costumes, informações técnicas, periciais, etc, este juiz neutralizador de conflitos, enfim, este juiz (neo)constitucional tende a encerrar um feixe de poder cada vez maior. Concentração de poder aguça o déficit de democracia, já agravado pelo déficit de legitimação representativa de sua autoridade.

Por outro lado, o enfrentamento da questão hermenêutica, a percepção da atividade interpretativa inserida num movimento maior de compreensão, condicionada por uma tradição, mas, capaz de abrir horizontes, permite um novo fôlego na tentativa de aproximação entre direito e democracia. Quando a teoria da interpretação é colocada em evidência na trama entre direito e democracia, por exemplo, pelo fio da jurisdição constitucional, torna perceptível a necessidade de outros modelos pós-representativos de democracia, tal qual a democracia participativa ou deliberativa276.

Assim, reforçando o elemento democrático da participação, como critério para resgatar legitimidade na condução coletiva de sociedades comprometidas com igualdade e liberdade, torna-se necessário repensar e dimensionar novamente a atividade jurisdicional. Pensar inventivamente em que medida a decisão pode ser fruto de uma participação maior e

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Mesmo Kelsen pensa na interpretação como ato de vontade da autoridade competente, sendo clássica sua alusão à norma como moldura. Talvez por isso, sua pressa em finalizar o capítulo derradeiro de sua teoria pura, antes que esta afirmativa pudesse representar um furo pelo qual seu pensamento pudesse voltar contra sua própria teoria. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 1997, p.387 e ss.

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Especialmente em relação à democracia deliberativa, como um modelo passível de organizar e com isso ampliar a legitimação dos órgãos de jurisdição constitucional, Cf. JUST, Gustavo. A teoria da interpretação como variável do ―paradoxo da jurisdição constitucional‖. Separata. Revista de Informação legislativa, ano 42, n.165, Brasília, jan/mar 2005, p.30. Contrário à possibilidade da jurisdição constitucional ser reconhecida, de toda a forma, como democrática, está Waldron (Derecho y desacuerdos, 2005, p.351) que, através de uma crítica à Dworkin, afirma ser sempre pior à democracia uma boa decisão tomada por um órgão não eletivo do que uma má decisão tomada por um órgão democraticamente eleito que se serve de procedimentos democráticos. E finaliza: ―Tomar los derechos en serio, entonces, es responder respetuosamente a este aspecto de la otredad, y

estar deseoso entonces de participar dinámicamente, pero como un igual, en la determinación de cómo debemos vivir conjuntamente en las circunstancias y en la sociedad que compartimos.‖ WALDRON, Jeremy. La concepción constitucional de la democracia. In: Derecho y desacuerdos. Madri: Marcial Pons, 2005, p.372.

mais diversificada de atores, fruto de um comprometimento maior das partes, num exercício de partilha de poder e de escuta do outro.

É nesse sentido que tomo como instigante a tentativa de François Ost de pensar num Juiz Hermes, um juiz mediador capaz de partilhar a decisão com outros atores, com as partes, pensar no juiz comunicador, no juiz das redes. Um modelo que coloca a questão hermenêutica no centro da discussão entre direito e democracia, sensível à necessidade de estabelecer entre estes dois acervos, uma conexão frutífera, duradoura e recorrente.