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CENA 4 O TRIBUNAL, O VEREDICTO E A CONSTRUÇÃO DE UM CERTO MODELO

4.4 O mito do juiz e seus deuses: Júpiter, Hércules e Hermes

Como colocado, os problemas da decisão e da legitimidade do ato de julgar277 chamam a atenção para as polêmicas em torno do Judiciário e da atividade do juiz, de seus poderes e incumbências sociais, dos limites mesmo desta atividade na configuração de um Estado democrático de direito. Acendem, sobretudo, quando abandonada a segurança epistemológica do positivismo, ou mesmo das teorias da argumentação racionalizadoras, que propõem a existência de soluções cognoscíveis, controláveis, racionais e justas, como o modelo proposto por Alexy, ou o juiz Hércules de Dworkin. Acendem se partimos do problema hermenêutico, de indeterminação de sentido, de compromisso com a tradição, de enfrentamento da questão da subjetividade que não é só o exercício deliberado de uma escolha, mas a constituição do próprio sujeito, a sua imanência, a sua vida e ação.

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Aroso Linhares faz um apanhado significativo da pluralidade de representações e imagens que a atividade do juiz invoca através de seus discursos, que reverberam em metanormatividades teóricas dos estudiosos que de alguma forma tentam racionalizar tais discursos. LINHARES, J. Manuel Aroso. A representação metanormativa do(s) discurso(s) do juiz: o ‗testemunho‘ crítico de um ‗diferendo‘? in: Revista Lusófona de Humanidades e

Tecnologias. Ano 2007-2008, n 12. p.101-120. Disponível em: http://rhumanidades.ulusofona.pt/arquivo/nr_12/revista_humanidades_tec_ensaios.htm. Acesso em 22/07/09.

François Ost propõe pensarmos, para a compreensão das teorias do direito que enfrentam a decisão, em três modelos de juiz. O primeiro deles é Júpiter, marcado pelo sagrado e pela transcendência, pela imperatividade da lei e seu caráter sancionador, pela estrutura centralizada e hierarquizada da pirâmide. Depois Hércules, numa alusão à construção de Dworkin, o juiz humanizado, mas poderoso, forte, submetido a um trabalho complexo e penoso de decidir todos os conflitos. E, por fim, Hermes, o juiz das redes de informação, o comunicador, o juiz do transitório, do fragmentário, o juiz ator de um jogo.

Aliás, é na proposta de uma teoria lúdica do direito que Ost insere o nosso juiz Hermes. Em artigo de título homônimo, propõe uma teoria do direito como jogo, que implica, quanto ao fundamento, em uma racionalidade alternativa, de ordem dialética e paradoxal, que possa fundar uma verdadeira teoria crítica do direito, para além das abordagens fundadas na dogmática278.

Entre as inúmeras especificações possíveis do conceito279 de jogo, Ost concentra- se em três caracteres que se apresentam em cada caso sob forma de entrelaçamento dialético de dois pólos opostos: convenção e invenção, interior e exterior, representação e estratégia. Por ser dialética e paradoxal, a estrutura joga exatamente neste campo de forças280, sem estar fixada numa regulação a priori ou ser simplesmente aleatória, ou o produto da vontade do ator/jogador. Além de não poder ser reduzida a uma convenção ou invenção, o par interior/exterior aponta para a questão dos limites, das fronteiras, da configuração do jogo

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No original: « Nous pensons en effet que le modèle ludique implique, quant à son fondement, une rationalité

alternative, d‟ordre dialectique et paradoxal, qui est de nature à fonder une véritable théorie critique du droit – une théorie que soit susceptible de constituer une alternative crédible à la compréhension dogmatique des phénomènes juridiques » OST, François. Pour une théorie ludique du droit. Droit et Société 20/21, 1992, p. 95.

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Para Ost, a noção de jogo não coincide nem com aquela proposta por Derrida, onde o jogo tem um caráter onírico que produz uma disseminação de sentido que nenhum discurso ou instituição pode ordenar, nem o sentido proposto por Gadamer, que considera que são as regras que definem a essência do jogo. OST, François.

Pour une théorie ludique du droit. Droit et Société, 1992, p.97.

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A respeito das forças no campo jurídico Cf. BOURDIEU, P. A força do direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico, in: O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz, 2 ed, Rio de Janeiro: Brertrand Brasil, 1998. Sobre a alusão ao poder como algo que não se detém, mas apenas se exerce, a um poder-relação, a um poder que se move, dobra-se e se desdobra em pontos, articulações, que se submete ao tempo em que supõe a própria liberdade, Cf. FOUCAULT, Michel. Soberania e disciplina. In: Microfísica do poder. Org. e Trad. de Roberto Machado, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p.183, a título de síntese, já que a temática do poder perpassa toda a produção do autor.

como sistema e seu entorno. Entre exterior e interior, os limites existem, mas são móveis, flexíveis e reversíveis. Antes, porém, de adentrarmos na proposta de um juiz Hermes, interessa entender de quem ele se distingue.

O Juiz Júpiter estaria para o Estado de direito, para o Estado legalista, assim como o Juiz Hércules estaria para o Estado (neo)constitucional. Por isso Júpiter pode ser sintetizado, em suas palavras, em quatro pilares fundamentais: (i) monismo jurídico, (ii) soberania estatal, (iii) uma racionalidade dedutiva e linear e (iv) uma crença no progresso e na história orientadora da concepção de tempo281. Júpiter é o juiz do código, da legalidade e do ordenamento piramidal. Centrado, sobretudo, na vontade do legislador como critério interpretativo, Júpiter vai se confiar no caráter sistematizado de uma fonte hegemônica de normatividade que é a lei, na coerência lógica e na harmonia ideológica do sistema.

Hércules tem que carregar o mundo em suas costas. Em sociedades complexas, onde todas as relações estão permeadas por direitos, regulamentações, o juiz é convocado a participar das mais variadas controvérsias. Este é o peso de sua função, a pena que não expia, o perdão que não vem. Seu trabalho nunca é o bastante nas funções de conciliar partes, concretizar direitos, harmonizar interesses. Ele se desdobra, nas palavras de Ost, em um engenheiro social282.

Nesta função, ao tempo que Hércules tem um árduo trabalho, tem igualmente grande poder. Na incumbência de adequação constante ao presente daquele ordenamento construído pelo legislador, Hércules reinventa a lei para o caso concreto, normatiza cada conflito através de sua decisão, indo além de uma aplicação legal. Hércules manipula o ordenamento em sua engenharia e, em cada espaço, recria a obra, adaptada ao conflito, às partes, ao sentido do presente urgente. A centralidade da configuração do Estado agora recai no Judiciário e, pelo seu poder de intervenção, no papel do juiz. Pelo fato desta migração, a lei

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OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Trad. Isabel Lifante Vidal. Doxa, 1993, p.175

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não funciona mais como fonte de justificação da decisão, senão que a decisão mesma é a fonte donde deriva a regra. A pirâmide é invertida e a efetividade, o factual, é condição necessária e suficiente para a validez, olvidando da legalidade e da legitimidade da regra. Está na ordem do dia o realismo283.

Assim, o juiz jupiteriano é aquele do Estado de direito, enquanto o juiz herculeano se faz presente no Estado (neo)constitucional. Deixamos para trás o modelo do código para adotar o do dossiê. Por isso, no lugar do monismo normativo, temos a proliferação das decisões particulares e no lugar do monismo político, temos a dispersão de sentido; a generalidade e abstração da lei são substituídas pela singularidade e o concreto do juízo; a pretensão de coerência lógica de uma racionalidade dedutiva e linear é substituída pela busca de uma coerência prática, de uma acomodação fática, implicando socorrer-se de outros saberes técnicos como a medicina ou contabilidade284.

A representação destes dois modelos como opostos, em suas diferenças radicais, não impede que as insuficiências de um não possam ser reavaliadas pelas críticas do outro. Ost285 fala nos hibridismos que se construíram na tentativa de um modelo mais ajustado e que, de um lado nada impede que pressionado pelo povo, o modelo jupiteriano atenda e se atualize às urgências do presente e, por outro lado, Hércules não possa transcender sua condição humana e se apoiar em uma racionalidade superior, tal qual o Hércules de Dworkin, um juiz capaz de chegar à tão polêmica decisão correta. Destarte, mesmo estas tentativas de ajustamento não resolvem. Em seus lugares, Ost286 propõe uma teoria do direito como circulação de sentido, adaptada aos tempos pós-modernos.

François Ost parte, então, da crise do Estado de direito liberal e do Estado de direito assistencial para realçar o grau alto de complexidade da sociedade contemporânea.

283

Idem, p.178.

284

OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Doxa, 1993, p.179-180.

285

Idem, p.180.

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Alguns indícios lhe são evidentes. Em primeiro lugar, a multiplicidade dos atores jurídicos, para além do juiz, explicitando, inclusive, o papel ativo dos usuários e cidadãos na efetivação do direito. Um segundo indício diz respeito à relação sistemática das funções, desde o momento em que as instituições e agrupamentos são associados à responsabilidade do poder público, ou mesmo quando a justiça empresta à administração seus procedimentos e seu estilo.

Além destes dois, um terceiro indício, ligado à multiplicidade dos níveis do poder, não reduzido apenas ao par público (Estado) / privado (sociedade civil) característico do modelo liberal clássico, mas um verdadeiro emaranhado de justaposições de diplomas legais e de uma diversificação das ações juridicamente relevantes287. Mais que proibir, permitir ou obrigar, o direito também regula, projeta, indica, sugestiona, constrange. Abrem-se possibilidades de resolução alternativa de conflitos, fora do modelo judicial, como o caso da arbitragem, da conciliação ou mediação. Criam-se parcerias público-privadas, agências de regulação, enfim, a complexidade da sociedade e, consequentemente, das instituições, dos conflitos e das relações intersubjetivas criam um grande desafio aos sistemas jurídicos, aos seus atores e à própria democracia.

Não causaria estranheza, a partir do panorama pós-moderno, que o direito pudesse ser a um só tempo estável e instável, duro e brando, contextual e principiológico, sem fronteiras claras quanto ao que lhe é interno e externo. Um direito dúctil, como fala Zagrebelsky, ou mesmo um direito líquido, como fala Ost288.

Para François Ost, antes de norma, o direito é discurso e, enquanto tal, tem movimento, comunica, interliga, articula-se entre a regra e o fato, entre a ordem e a desordem. Entre o convencionalismo de Júpiter e a invenção de Hércules, Hermes adota uma postura hermenêutica, reflexiva. Dialético e móvel, o direito (como discurso) é um jogo.

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OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. Doxa, 1993, p.184.

288

Interessante a correlação que François Ost faz entre a alegoria de Hermes (grego) e Mercúrio (latino), com o fato de este mesmo deus ter emprestado seu nome a um metal líquido. Idem, p.187.

Enquanto jogo, o direito se legitima por uma mediação procedimental e neste sentido, a democracia garante, como experiência possível, a manutenção e ramificação da rede. Somente numa democracia é possível dar visibilidade ao ideal da participação igual, da participação constante, em tantas quantas forem as tramas do tecido social. Uma participação que se multiplica na medida em que os sujeitos assumem papéis diversificados e justapostos. E uma democracia deve ser entendida como um jogo aberto quanto à possibilidade criativa de seus participantes, mas fechado, ou pelo menos previamente estabelecido quanto às regras do jogo, quanto aos procedimentos, sem eliminar, por certo, de um lado, certa dose de acaso, sorte ou azar, e de outro, estratégias, raciocínios, previsibilidades, projeções. Que papel tem que ser assumido pelo juiz (aqui o nosso Hermes) neste jogo social?