• Nenhum resultado encontrado

CENA 4 O TRIBUNAL, O VEREDICTO E A CONSTRUÇÃO DE UM CERTO MODELO

4.1 Rememorando brevemente elementos de uma tradição

Na linha de Foucault, poderíamos tentar recompor, pela arqueo-genealogia249, as bases de formação deste espaço que confere à justiça a tarefa de expiação da culpa pelo ritual trágico do tribunal. Poderíamos encontrar o momento significativo onde as práticas passam a constituir o próprio saber, e o direito ocupa o lugar metafísico da redenção. Mas a tarefa empreendida agora é menor e pontual. Espero rememorar elementos de uma tradição que importem em servir de esteio para a análise do direito que pretendemos elaborar, sob o ângulo dos sistemas de resolução de conflitos.

248

É preciso fazer um registro da permenência, nos espaços judiciais brasileiros, da figura da cruz, ou do Jesus crucificado. A despeito da laicização do direito moderno e da expressa previsão de liberdade de crença pela Constituição brasileira, a maioria dos tribunais antigos, mas também os novos, adornam as salas de audiência, plenárias de julgamento ou júri com suas imagens santas, não deixando cair o simbolismo da culpa, do pecado, da dor, sofrimento e da iluminação divina de seus juízes. A narrativa de Calamandrei é clássica: ―o crucifixo não compromete a austeridade das salas dos tribunais; eu só gostaria que não fosse colocado como está, atrás das costas dos juízes. Deste modo, só pode vê-lo o réu.‖ Cf. CALAMANDREI, P. Eles, os juízes, vistos por um

advogado. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.327.

249

Assim, se pensarmos na trajetória do direito na modernidade é possível identificar o Iluminismo como um pensamento fundante para a criação do Estado de direito. Antes, porém, deste marco histórico, é possível afirmar que ―o direito natural moderno está completamente sujeito ao encanto do conceito científico racionalista‖250, e vai ser nesta linha desenvolvido.

A Revolução Francesa, ainda jusnaturalista, como de resto toda a tradição jurídica desde a Antiguidade, propõe a revisão do contrato social para instaurar a ordem liberal: direitos individuais indisponíveis que podem ser resumidos em liberdade, propriedade e igualdade perante a lei, num Estado de direito que contempla a separação dos poderes, neutralizando ainda mais a autoridade política – o povo, e deixando resplandecer a econômica, cujo exercício já era da burguesia.

Por isso, a vontade do povo, representado pelo parlamento, seria a lei e esta instauraria a ordem estatal, definindo-lhe limites. A razão, senhora de si, justifica o contrato social e põe ordem nas coisas, garantindo segurança. Não é sem sentido que, logo após a Revolução Francesa, instaura-se na França a escola da Exegese, sustentada pelo Código de Napoleão (1804) em sua vultuosidade legislativa. ―Característico do impulso cientificista que prima pela certeza, a atividade do jurista deveria ser a mais objetiva e neutra possível.‖251

A reação mais contundente à Revolução Francesa partiu da Escola Histórica Alemã. Sem dúvida pesou bastante o fato da Alemanha, na época da passagem do séc.XVIII para o XIX, ser ainda um país descentralizado, feudal e aristocrata. Aqueles ideais de universalização e de liberalismo colocariam em xeque a manutenção do poder da aristocracia. No plano da filosofia do direito, é possível perceber que o acento na capacidade da razão

250

KAUFMANN, A. e HASSEMER, W. (orgs) Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito

contemporâneas. Trad. de Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

2002, p. 84.

251

sozinha fundar toda uma ordem jurídica e não só, sustentar o próprio homem, acaba sendo deveras exagerado.

Ademais, este é um momento de prestígio do romantismo alemão, o que de certa forma justifica seu conservadorismo diante da revolução. Um homem pessimista com a humanidade, incapaz de amar ao próximo como um ser universal (amando apenas aqueles que fazem parte de sua família, de seu mundo), movido muito mais por sentimentos, paixões e crenças culturais do que por ideais racionais.

O elemento no historicismo jurídico que desponta como fonte de coesão social é o wolksgeist, o espírito do povo (aqui a raça, a etnia), o elemento cultural. Cada povo uma cultura, cada povo uma histórica, cada povo um direito. Neste sentido, o afronte ao jusnaturalismo racionalista e, em contrapartida, a valorização do costume, como elemento de identidade popular. Nesta proposta, a escola histórica deixa aflorar todo o seu conservadorismo aristocrático.

Mas o contexto histórico é de aprimoramento da ciência jurídica, incluindo-se o método histórico-evolutivo e a expressão ―vontade do legislador‖. A contribuição alemã para a evolução do direito ainda contará com uma elaboração consistente do formalismo por Jhering252, que aliou a tradição pandectista ao cientificismo de Savigny, constituindo a dogmática jurídica como uma teoria autônoma do direito253.

O passo seguinte para o direito foi o despertar do positivismo, firmando-se dentro de uma metodologia dogmática. A ideia clássica de dogmática está inserida dentro do projeto de modernidade que vimos: o direito como algo dado, previamente estabelecido, definido, inquestionável, tal qual se pensou a razão.

O positivismo representa o paradigma dominante na cultura jurídica ocidental do século XX e continua a representar nesta primeira década do século XXI um aporte

252

Este mesmo autor se insurgirá depois contra o formalismo que pregou em obras como A luta pelo direito.

253

consideravelmente presente nos currículos das escolas de direito e no posicionamento exarado nos tribunais. Seja como método para o estudo do direito, como teoria ou como ideologia254, o positivismo polarizou as discussões em torno do direito e do papel dos atores jurídicos.

Como método, o positivismo atende à necessidade de cientificidade no direito, tal qual a ciência modernamente se articula. Os imperativos de neutralidade, observação e estruturação lógica permitem identificar a ciência distinguindo juízos de valor de juízos de fato. Concentrando-se nos juízos de fato, o direito abandonaria as pechas moralistas ou partidárias de suas formulações, para finalmente conferir ao direito um método científico como as demais ciências255.

Como teoria, o positivismo define o direito em termos de coação, imperatividade, primado da lei como fonte do direito, agregando elementos de coerência e completude do ordenamento. Bobbio256 ainda acrescenta o aspecto mecanicista da interpretação juspositivista, que se guiaria com critérios formais e silogísticos.

Do ponto de vista ideológico, o positivismo responderia por uma vertente extremada e outra moderada, quanto ao aspecto da obediência à lei. Por ser defendida como um dever, Bobbio257 entende que seria mais apropriado falar-se em positivismo ético, seja extremado ou moderado. O positivismo ético extremado defenderia a obediência à lei como absoluta e um fim em si mesmo, já que o direito e a ordem são o próprio valor supremo. Em sua versão mais moderada, o positivismo ético apostaria na ordem e no direito como meios instrumentais de atingir os valores socialmente protegidos.

254

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Trad. de Marcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues, São Paulo: Ícone, 1995, p.234.

255

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico, 1995, p.135.

256

Idem, p.147 e ss.

257

De toda sorte, o fetiche pela lei não é exclusividade do positivismo, como se pode perceber da bela narrativa de François Ost258. Mas o positivismo faz da lei o dogma central do direito exatamente por trabalhar com todas as características identificadas como corretas ou seguras para o modelo de razão moderna: a lei é definida, é previamente estabelecida (como uma essência); a lei é neutra (e, portanto, realiza o sonho de pureza, de limpeza e de abandono das paixões e desejos empreendido pelo racional); a lei é geral (universal, é uma fórmula); a lei trata a todos igualmente (criando a identidade e eliminando o diferente, tal qual a razão absoluta).

Desta forma, a lei é dura, mas é a lei. Afastamos toda a discussão de justiça também porque afastamos da razão toda a sua subjetividade: ela está somente a serviço da ordem, da objetividade, da burocratização. Vencer as paixões humanas é superar o velho estado de natureza: a razão, assim como a lei, é fria e calculista. É o triunfo da razão instrumental sobre qualquer outra forma de razão.

A discussão da justiça, da ética, da moral, vai estar metodicamente separada da discussão do direito. E para que esta lei seja absolutamente neutra, deve ser proveniente de um poder suficientemente genérico que é o povo: daí o Estado de direito, o Estado liberal, cuja ordem política se submeterá à ordem jurídica por questões racionais (mas também econômicas, como as identificou Marx).

Este projeto de racionalidade no direito é um projeto contínuo de exacerbação das formas em detrimento dos conteúdos, cujo fim último e único é garantir segurança (ordem coletiva). Kelsen259 é, portanto, um filho legítimo de seu tempo, em sua tentativa de construir uma teoria pura do direito, alicerçada no monismo jurídico260.

258

OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. Trad. de Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2004.

259

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 5 ed., São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.352-3.

260

Fica clara a violência deste sistema que constrói artificialmente uma ordem identitária, no aniquilamento da pluralidade, do novo, da diversidade, como propõem as leituras da teoria crítica.

Assim, a racionalidade da norma e a força soberana da lei vão creditar ao direito um elo com a verdade, com a certeza, com o conhecimento. E, se o juiz, nesta perspectiva histórica da modernidade, tem que estar atrelado ao ordenamento jurídico, pode, por sua vez, agregar à sua prática os atributos de poder, de segurança e de racionalidade que a aliança com a lei favorece. Embora do ponto de vista teórico o direito tenha francamente se laicizado, sobretudo com o abandono do direito natural racional, por outro, a força mística da lei não deixa de produzir seus efeitos, no sentido de conferir ao direito o espaço sempre privilegiado da autoridade, do poder e da subordinação.