• Nenhum resultado encontrado

CENA 3 FOUCAULT, ANTI-HERÓI: PENSAR A RESISTÊNCIA E SONHAR COM A

3.4 Entre ética e direito: esboço de uma possibilidade

A relação entre ética e direito é um ponto importante desta tese, havendo várias perspectivas de analisá-la. George Browne Rego222, por exemplo, analisa a problemática entre direito e ética fazendo igualmente uma comparação entre a perspectiva moderna e a antiga. Os filósofos por ele escolhidos, no entanto, são outros: Aristóteles, Thomas Hobbes e Jean-

221

FOUCAULT, Tecnologia de si, 2004, p.334.

222

RÊGO, George Browne. Três perspectivas da problemática direito e ética: Aristóteles, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. In: Anuário dos cursos de pós-graduação em direito, n.10, Recife: Edição do Programa de pós-graduação em direito da UFPE, 2000, p.139-150.

Jacques Rousseau. Em suas conclusões, a convergência de uma crítica da visão moderna e a necessidade de se pensar em novos caminhos para o direito e a ética encontra guarida neste escrito que privilegia o pensamento de Michel Foucault.

É conhecida da tradição filosófica a relação e diferenciação entre ética, moral e direito, como regras de conduta e sistemas normativos. Por um lado o direito é uma espécie do gênero ética, entendida como orientação para a ação, o que nos faz supor que todo agir jurídico é também e sempre um agir ético; por isso, tanto o direito quanto a ética comungam a intenção de significarem ações positivas (no sentido do bom e do justo). Assim, de tempos em tempos, pretendem orientar a ação do indivíduo e da coletividade no sentido do que pode ser feito, do que deve ser feito e do que não deve, impondo limites à ação. Por outro lado, subsiste o debate em torno da natureza essencialista ou relativista da ética e do direito.

Mas, hodiernamente, pelo menos duas questões dificultam o entendimento sobre a relação entre ética e direito: (i) o apelo ainda presente de uma ética formalista, sem conteúdos, na esteira do imperativo categórico kantiano e ao mesmo tempo universal, é estéril quando se espera da ética que seja a orientação da ação circunstanciada; ao mesmo tempo e no mesmo sentido, a diferenciação do direito dos outros sistemas éticos, como a moral ou a política nas sociedades contemporâneas, tem significado um incremento nos mecanismos de procedimentalização, em detrimento da construção de critérios valorativos claros; (ii) aliado ao primeiro e admitindo a pretensão de universalização do direito como o último ambiente ético comum223, ocorre uma inversão de papéis: o direito passa a determinar o que é ético, o legítimo passa a ser o legal e, nesta ordem das coisas, o apelo instrumental reina soberano e assim, o direito, dominado pelo princípio da utilidade, do consumo, acaba contagiando a

223

ADEODATO, João M. A pretensão de universalização do direito como ambiente ético comum. In: BRANDÃO, Cláudio e ADEODATO, João M. (orgs.) Direito ao Extremo: coletânea de estudos. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

própria ética na direção de uma ética da necessidade224, em contraposição a uma ética da tolerância225 ou do cuidado, como se pretende problematizar neste trabalho.

Por outro lado, pensar por categorias que o direito é espécie do gênero ética, se ajuda a estabelecer o elo inicial destas duas instituições, também bloqueia a análise de que o direito pode, frequentemente, e é esta a nossa suspeita, ignorar uma discussão quanto à prática de seus atores e continuar repetindo uma pretensa legitimação pela simples legalidade, ou pela complexa racionalidade de seu sistema. A justificativa de que se age conforme a lei seria suficiente para legitimar qualquer ação.

Mas, se a filosofia e teoria do direito não podem determinar um parâmetro ético sem cair no erro de um universalismo de valores sempre e sempre perigoso e aqui, tantas vezes criticado, por outro lado, o direito, no momento de sua concretização, é substancialmente influenciado pela intencionalidade e pelo compromisso de seus atores. Portanto, a reflexão sobre a ética permanece como uma instância necessária de legitimação da ação jurídica.

Ela se faz presente inclusive nas perspectivas que não tematizam diretamente o sujeito, como as análises sociológicas dos sistemas. Aldo Mascareño226, pretendendo encarar o desafio da crítica habermasiana, que aponta a exclusão de uma perspectiva interna às teorias sistêmicas de inspiração luhmmaniana, propõe-se a pensar a compatibilidade entre uma ética da contingência e um direito reflexivo, como parte de uma crítica mais geral às perspectivas racionalistas de uma ética universal. À ideia de um direito reflexivo, autopoiético e dinâmico,

224

Cecília Pires, em seu livro Ética da necessidade e outros desafios, explicita a expressão usada, a partir da leitura marxiana sobre necessidade: ―Como explicito, então, este conceito de ética da necessidade? É uma categoria que construo para identificar o estado de carência real de sujeitos ou de grupos sociais. [...] A ética da necessidade evidencia a racionalização das carências entre os excluídos sociais‖. PIRES, Cecília M. P. Ética da

necessidade e outros desafios. São Leopoldo: Unisinos, 2004, p.26.

225

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prefácio In: ADEODATO, João Maurício. O problema da legitimidade: no rastro do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

226

MACAREÑO, Aldo. Ética de la contingencia por medio del derecho reflexivo. In: SILVA, Arthur Stamford da (Coord). Sociologia do direito: na prática da teoria. Curitiba: Juruá, 2007, p. 203-239.

uma ética da contingência permitiria uma coordenação entre vontades, sem a necessidade de transformar a diferença em unidade, em princípio supra-sistêmico.

O foco também não recai na força do consenso como instância de definição de um ponto ótimo de comunicação. Uma ética da contingência não poderia eliminar a própria contingência como sua condição de possibilidade. Neste sentido, as escolhas, ainda que levadas a cabo pela ação dos indivíduos, permanecem como escolhas (sempre contingentes), não redutíveis a padrões normativos ou universalizáveis. Assim, o compromisso de uma perspectiva sistêmica que considera importante não perder de vista a ética acentua a dimensão da individualidade, como instância produtora de contingência. E, ao mesmo tempo, reforça um direito reflexivo como política de opções ou como regulação contextual227.

Portanto, agregar a este trabalho uma reflexão sobre a relação entre direito e ética, sob o prisma de seus atores, é um compromisso assumido com uma prática do direito que seja também uma reflexão sobre a liberdade, sem perder a potencialidade desta tensão.

As diferentes perspectivas históricas, entre ética e direito no passado greco-romano e no presente moderno, exigem algumas considerações. Não se poderia adotar a perspectiva de um objetivismo axiológico, a imaginar que existem valores objetivamente dados que o sujeito pode conhecer, como a perspectiva de Nicolai Hartmann228, nem a perspectiva de um imperativo categórico, como em Kant229, para quem as regras éticas podem ser deduzidas diretamente da razão prática por um princípio universal puramente formal. Então a saída é permanecer em Foucault, tomando a perspectiva da ética por este autor trabalhada a partir de um resgate da Antiguidade greco-romana.

Este resgate nos coloca um fator complicador: não é possível ter a exata compreensão do que foi a experiência antiga. Ainda que os relatos sejam abundantes e

227

MACAREÑO, Aldo. Ética de la contingencia por medio del derecho reflexivo. In: SILVA, Arthur Stamford da (Coord). Sociologia do direito: na prática da teoria, 2007, p.235.

228

ADEODATO, João M. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. 3 ed, São Paulo: Saraiva, 2005, p.151.

229

minuciosos, esta experiência estará sendo apreendida em um contexto onde a ética tem um sentido muito diferente. E, sendo coerente com uma postura foucaultiana, não se deseja transpor experiências, apresentar a Antiguidade como uma época de perfeição, mas colocando-a no seu devido lugar, de experiência histórica, tomá-la como possibilidade de vivência, para reinventá-la hoje. Se os ―gregos sempre subordinaram a ética às ideias de felicidade da vida presente e de soberano bem [...] hoje, a felicidade não é pensada mais nos termos da moral antiga, mas em termos de eficácia técnica, de consumo‖230

Quando resgata as experiências da Antiguidade, Foucault231 pensa a ética como a forma refletida assumida pela liberdade. A ética é exercício da virtude, cuja origem está no exercício prático, na ação; ―é a ação que dá sentido político à moral‖232

. Neste mesmo sentido é que podemos identificar o direito como prudentia233.

Nesta reflexão, propomos um dos caminhos para que o agir jurídico seja lastrado na ética, não em uma relação apenas de categoria gênero-espécie, mas como ação, para exercitar esta racionalidade ampliada que se apresenta como alternativa à razão instrumental, que teria incitado a se pensar o direito separado da moral ou de qualquer apreciação valorativa que o pudesse avaliar. A escolha não é na direção de uma ética de conteúdos, que pudesse ser definida aprioristicamente, ou contextualizada historicamente e evidenciada em consensos normativos. A escolha recai numa prática ética que se realiza na estilização da existência, na maneira refletida como o sujeito pode exercitar sua liberdade. Uma ética do cuidado, portanto, uma ética cujo alvo é o movimento pensado que o sujeito faz no curso de sua ação, assumindo as responsabilidades decorrentes de suas escolhas e movimentos.

230

NOVAES, Adauto. Cenários. In: NOVAES, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 7-8.

231

FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade (1984). In: FOUCAULT, Michel.

Ética, sexualidade, política, 2004, p.267.

232

NOVAES, Adauto (org.). Ética, 2005, p.9.

233

FERRAZ JR., Tércio S. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação, 6 ed, São Paulo: Atlas, 2008, p.32-7.

Se pensarmos que as teorias na contemporaneidade precisam enfrentar a crítica234 aos aspectos exageradamente formais ou instrumentais de uma racionalidade, as provocações foucaultianas, ao exigirem uma postura diferente do sujeito, o comprometimento com sua ação, nos faz pensar a própria subjetivação, a própria subjetividade. Esta é então entendida como o elo da relação entre direito e ética, entre o fazer jurídico e o fazer ético, mutuamente implicados. É no sujeito que age, no sujeito em práxis, que o direito pode se legitimar como ético.

Mas, no estado da arte das teorias que partem e propõem esta razão ampliada e este novo cruzamento entre direito e ética, há uma tendência a pensar a subjetividade como o suporte racional iluminista que igualaria as pessoas, habilitando-as a produzir consensos, pela capacidade de entendimento235. Se hoje produzimos consensos, experimentamos, antes, o conflito. E o conflito nos coloca diante do diferente. É preciso pensar a ética, não mais na sua dimensão normalizadora e homogeneizante de condutas individuais, mas como respeito às diferenças na relação com o outro.

A subjetividade, reforçamos, é tomada ―como a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo‖236

. É esta percepção da subjetividade, como uma maneira de atingir um agir, daquilo que estou sendo, que exploramos neste trabalho.

A questão é saber como permitir a emergência de formas diferentes de subjetivação, emancipadas e éticas, a partir ou para além deste estado de coisas? Pensando a

234

Cf. SANTOS, Boaventura de S. A Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, V.1 (Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática). 4 ed. São Paulo: Cortez, 2002. Contundente é a posição de Sloterdijk, elaborando no bicentenário da Crítica da razão pura de Kant uma crítica da razão cínica. Cf. SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la razón cínica. Trad. Miguel Ángel Veja, 3 ed, Madri: Ediciones Siruela, 2006, p.18. Para uma aproximação entre Sloterdijk e Foucault, Cf. RAFFESTIN, Claude. L’actualité et Michel Foucault. EspacesTemps.net, Actuel, 08.03.2005. Disponível em : http://espacestemps.net/document1172.html. Acesso em 30/03/2007.

235

Em certa medida, a posição de Habermas preserva este sujeito iluminista. Segundo Borges, ―Habermas recaiu no ethos burguês‖, frustrando, nas palavras do autor, o empreendimento de uma teoria crítica. BORGES, Bento Itamar. Crítica e teorias da crise. Porto Alegre: Edipucs, 2004, p.337.

236

ética no mundo contemporâneo, percebemos a existência dominante de uma ética da necessidade, como ―uma ética cujo fundamento é a superação da escassez, sem um projeto emancipatório e sem o cuidado moral. É o oposto da ética da responsabilidade e da ética da solidariedade‖237

, lançando um desafio: a construção de um mundo que permita a convivência e a sobrevivência de formas de vida emancipadas.

Como visto nas linhas anteriores, no curso A hermenêutica do sujeito, a liberdade e a ética ganham um lugar privilegiado. Na Antiguidade ser livre era não ser escravo e, por isso, a liberdade tinha uma dimensão política. A liberdade não está fora da comunidade, não é puro arbítrio. A liberdade implica todo um modo de existência que envolve uma faceta privada, mas também uma vida pública, aquela que pode ser vista, tornada bela aos olhos dos outros, admirável e memorável.

A maneira como o sujeito se dobra, se olha e se examina tem, na Antiguidade grega, um sentido de reflexão sobre a ação e experiência238. Não é à toa que o homem livre, o cidadão, exatamente aquele de quem se esperava um exercício mais intenso deste cuidado, deste domínio de si, é um homem adulto, na faixa dos seus trinta anos: educado, experimentado na guerra, pronto para assumir as responsabilidades do casamento e procriar, filhos e ideias; cultivar, esposa e amigos; gerir a polis, ou dela participar. Não se esperava de um rapaz, mulher ou escravo zelo por esses cuidados. Esperava-se daqueles cuja experiência poderia servir de exemplo na comunidade, os homens livres.

Não há relação de poder sem liberdade e não há liberdade sem relação de poder. Lá onde a relação não se faz entre sujeitos, lá onde um dos pólos foi submetido à condição análoga de objeto, onde nenhum poder lhe é permitido, nem sequer uma resistência, o poder

237

PIRES, Cecília M. P. Ética da necessidade e outros desafios, 2004, p.27. 238

A propósito das modificações que empreendeu na decorrer da História da sexualidade, Foucault apresenta o núcleo do que entende por experiência: ―O projeto era, portanto, o de uma História da sexualidade enquanto experiência – se entendermos por experiência a correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de

normatividade e formas de subjetividade‖ (grifamos) FOUCAULT, M. História da sexualidade II, 1984,

vira força, pura dominação. A noção de poder, que depois vai ser trabalhada por Foucault em termos de governo, exige que se preserve uma condição mínima: ainda que assimétrico e desigual, deve permitir a resistência, o não acatar, o não se submeter, o fazer cessar o governo. Em última e radical análise, deve-se preservar o poder de morte sobre si mesmo, como condição imanente da liberdade do sujeito.

A ética, assim, se inscreve nesta base de liberdade e permite ao sujeito efetuar um movimento refletido de sua existência. É uma ética centrada na subjetividade, mas tensionada pela presença do outro239. Foucault também procura resgatar a ética como pensada pelos gregos: não como um corpo de regras, códigos ou normalizações, mas inserida numa prática pública, na maneira como se constrói uma imagem e se preenche a existência.

Nesta altura, é preciso, para dar uma síntese à questão da relação entre ética e liberdade, socorrer-se de uma entrevista publicada em 1984. Ao contrário de outras obras, nos dois últimos volumes da História da sexualidade a transversalidade dos textos históricos com temas da atualidade é menor. Mas esta reflexão estará presente nos ditos – entrevistas e conferências - que Foucault proferiu naquele ano. A relação entre ética e liberdade é expressa da seguinte forma: ―A liberdade é a condição ontológica da ética. Mas a ética é a forma refletida assumida pela liberdade‖240

.

Assim, estar o sujeito inserido nas relações de poder não o isenta da liberdade. Ela, enquanto ação dá mobilidade ao poder, criando resistências, subjetivações refletidas e éticas. Embora tenha empreendido um relato minucioso das tecnologias ou práticas de si, não é proposta de Foucault indicá-las como as maneiras pelas quais hoje se constitui o sujeito livre, à maneira do antigo. É uma compreensão do sujeito menos pelo conteúdo essencialista,

239

A tematização do outro se encontra, entre outros espaços, na contribuição de Fimiani sobre o cuidado de si e o verdadeiro amor. FIMIANI, Mariapaola. O verdadeiro amor e o cuidado comum com o mundo. In: GROS, Frédéric. (org.). Foucault: a coragem da verdade, Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola editorial, 2004, p. 89-128.

240

FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade (1984). In: FOUCAULT, Michel.

portanto, e mais pela estilização. Mais ainda, é uma compreensão do sujeito pela ação, por aquilo que concretiza em relação ao que pensa e ao que diz. Uma ênfase em estar atento, a si e ao mundo.

A noção foucaultiana de cuidado de si desloca a reflexão sobre a ética para um patamar diferente. A ética, como ação refletida da liberdade, exige toda uma atenção do sujeito para com ele mesmo, no trato que constrói com os outros. A ética, como movimento deste cuidado, implica num constituir-se, metamorfosear-se. A noção de liberdade apresentada por Foucault se aproxima muito da criação crítica, reflexiva e responsável que o sujeito faz de si e que dá a marca de sua ação para com os outros.

A percepção da subjetividade aqui lançada, de um sujeito que se faz sujeito, é então entendida como o elo entre o fazer jurídico e o fazer ético. Se abandonamos a aproximação conteudística como forma de legitimação do direito, para não cair nas tentações e perigos dos jusnaturalismos241, não abandonamos, contudo, a tentativa de achar alternativas que reforcem o olhar jurídico com posturas éticas.

A proposta aqui lançada, de pensar a ética como cuidado de si, permite um enfrentamento do direito pela prática dos operadores jurídicos. Não se está a pensar em um direito novo, um novo paradigma para o direito, mas uma reflexão sobre a ética que lhe possibilite renovar a prática jurídica. Em tempos de ativismo judicial e centralização de poder no Judiciário, nunca é demais acender a discussão em torno dos limites desta atividade, do comprometimento dos sujeitos, da responsabilidade desta função e esboçar, quiçá, os laços de uma relação desgastada pelo tempo.

241

Estas tentações e perigos rondam o apelo à segurança e à ordem que um corpo superior de normas ou valores poderia conferir ao direito positivo, em termos de previsibilidade quanto ao seu conteúdo. A tentativa de subordinar o direito positivo a um corpo natural de normas conhece na história das ideias jurídicas uma antiquíssima origem, marcada, de forma clara, na Antígona de Sófocles. E mesmo com a emergência moderna ―dos positivismos‖, não cessou de alimentar adeptos e engenhosas teorias.

ANTES DO CERRAR PROVISÓRIO DAS CORTINAS...

Estas subjetividades, como vemos, não estão sintetizadas numa essência, muito menos numa construção ideológica de propriedade, nem fundam o homem como um ser absoluto: ao contrário, elas fragmentam, permitem fugas, promovem a diferenciação. Como imaginar que o direito possa, enquanto estrutura do poder, captar esta mudança (subjetividades) e encapsulá-la num a priori, ainda que histórico, sem lhe desnaturar o sentido: o de ser ela mesma mudança, diferença. Ao encapsular o sujeito, o direito inventa uma condição de igualdade que, do lado empírico, é sempre irrealizável e, do lado transcendental, faz do outro o mesmo: identidade.

Enquanto resistência, as formas de subjetivação do sujeito que se constitui não podem ser fundamento para os direitos subjetivos, pois estes submetem o sujeito às relações de poder (em cuja superfície se apresenta o direito). Os direitos subjetivos estariam atrelados a uma episteme - aquela do período moderno – e, se uma ruptura estaria em curso, se Foucault pretende experimentar o desaparecimento do homem, então a superfície adquire uma espessura diferente, a partir da metamorfose de sua episteme. Não pode mais se apresentar como direito subjetivo.

Explorar o desconhecido, o fora, o que escapa, o que resiste. Eis o seu itinerário à hermenêutica do sujeito, que mantém a tensão entre poder e resistência, entre poder e liberdade. A tentativa do direito de construir um discurso universal, de apreender a liberdade estritamente em seus domínios, de assenhorar-se dela em seu fundamento, não é mais do que o reforço de que a modernidade não dissocia o positivismo do escatológico.

O direito revela-se ainda preponderantemente ligado a esta episteme moderna, e em especial na questão dos direitos subjetivos, ecoando com muita força a crença no antropocentrismo, no homem como medida do mundo, e no direito como medida do homem.

No momento em que o direito se faz medida do homem, delimita (e funda) sua liberdade, estabelece o rol de caracteres de sua natureza, ou pelo menos daquilo que lhe é necessário para estar em comunidade, cria um modelo de homem. Para gozar da proteção do