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CAPÍTULO 5 − DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

5.2 ANÁLISE DOS DADOS

5.2.4 A proposta do livro didático e a sua utilização em sala de aula

Ao compararmos as propostas presentes no LD e a forma de utilização em sala de aula, pudemos perceber que o professor usa o material em função de um ensino tradicional.

Por exemplo, o texto Hércules contra o Leão de Neméia (LEITE & BASSI, 2005, p. 10- 11), que foi utilizado para a identificação de dígrafos e substantivos próprios, é precedido de um momento de preparação para a leitura − interessante de ser trabalhado, pois situa o aluno em relação à antiga Grécia − e seguido de atividades de exploração do texto, atividades essas que objetivam destacar os aspectos estruturais de uma narrativa mítica, os sentidos assumidos por palavras e expressões no texto e as informações principais da história. Além disso, as autoras do LD sugerem que haja uma discussão sobre o texto após a leitura. Trata-se de um momento importante, uma vez que o conhecimento é construído por meio das interações verbais, responsáveis pelo contato do sujeito com os objetos. As relações dialógicas instauradas nessas interações permitem que o sentido seja co-construído entre aluno/professor e aluno/aluno. É uma oportunidade de o aluno ter uma atitude responsiva diante dos enunciados dos colegas e perceber

que todo texto traz marcas de um enunciador; é construído a partir de uma intenção e de acordo com a situação de produção.

Todavia, no momento da utilização do LD, a professora elimina todas essas possibilidades, pois usa o texto para identificar itens gramaticais. Por meio dessa atitude, observamos uma concepção equivocada em relação ao trabalho com o texto e com a gramática. Diante disso, inferimos que a concepção de linguagem assumida pela PEE1 é a língua como sistema − diferindo daquela que defendemos neste trabalho − e que esta interfere na forma de planejamento e na execução das atividades, como é visível por meio das propostas implementadas em sala de aula. Essa outra visão de língua pode ser percebida através não só das observações, como também das entrevistas. Por exemplo, ao sondarmos a PEE1 sobre como ela explora a parte gramatical, temos como resposta o seguinte: “olha... porque a gramática eu... eu sempre trabalho a gramática dentro do texto... né? a minha gramática ela é contextualizada...”. Comparando esse trecho a este

olha... geralmente eu utilizo a parte gramatical conforme o texto... eu pego o texto verifico como eu posso estudar esse texto... o que eu posso aplicar dentro desse texto... se eu posso aplicar eh... divisão silábica... se eu posso aplicar encontro consonantal encontros vocálicos dígrafos... se eu posso desse texto tirar palavras acentuadas né... usar palavras oxítonas proparoxítonas... entendeu? pra / eu sempre trabalho assim... tudo dentro do texto... eu faço com que eles possam verificar dentro do texto esses assuntos.

(Entrevista com PEE1, 28/03/07)

verificamos que ela está se referindo ao uso do texto para identificação de questões gramaticais. Sabemos, contudo, que isso não corresponde a um trabalho contextualizado. Quando Neves (2002) e os PCN defendem que a gramática seja contextualizada, eles fazem referência àquelas atividades que buscam levar o aluno a refletir, por exemplo, sobre a referenciação empregada num texto, sobre o papel da metáfora na conversação, sobre as várias maneiras de indeterminar o

sujeito nas diferentes situações de comunicação, sobre o papel fórico e a natureza pessoal dos pronomes possessivos, entre outros. Assim, podemos afirmar que a professora se apropriou do discurso segundo o qual é necessário ensinar a gramática contextualizada, mas não consegue

concretizá-lo, isto é, propor atividades que ajudem o aluno a compreender o funcionamento da língua.

Um outro exemplo é a forma de utilização do texto Como me tornei um Búli-búli (GREGOLIN, 2004, p.25). Ele é precedido de perguntas para o momento de preparação da leitura e seguido de questões de interpretação. As atividades da seção Leitura e da Interpretação oral e

escrita sugerem a discussão sobre a temática do texto, sobre quem foi Monteiro Lobato etc., no

entanto a professora não proporcionou momentos de interação; solicitou a resolução das questões como se os alunos não precisassem de nenhum tipo de orientação, não permitindo também momentos em que eles pudessem expressar as suas opiniões oralmente. A professora, em relação a essa atividade, poderia ainda ter feito uso da sugestão presente no manual do professor: falar “sobre os livros ‘clássicos’ e a ‘viagem’ que a literatura propicia” e destacar “a importância de Monteiro Lobato na criação da literatura infantil” (GREGOLIN, 2004, p. 23), já que o objetivo da unidade do qual o texto faz parte é promover a reflexão sobre a importância do livro.

Ainda que a PEM2 tenha usado o texto e parte da compreensão de texto, deixando de lado a sugestão de preparação de leitura e o momento de conversa sobre ele, em nenhum momento, assistiu os alunos na realização da atividade, não desempenhando a função de parceira. Como a professora se eximiu desse papel, deixou também de perceber quais conhecimentos os alunos já tinham adquirido até aquele momento e de intervir na ZDP.

As situações descritas acima revelam um comportamento recorrente entre as professoras, isto é, elas parecem perder de vista a própria natureza interativa da linguagem, além de não se assumirem como mediadoras na construção do conhecimento e detentoras dos significados sócio-

histórico-culturais. Esse modo de condução do ensino pode dificultar o processo de internalização ou de apropriação do conhecimento, uma vez que esse ocorre mediante as relações intra e interpessoais.

Até agora mencionamos a parte usada do LD pelo professor, cabe ainda abordar a escolha por trabalhar uma atividade retirada de uma outra fonte em lugar daquela presente no livro. Um exemplo disso foi o tratamento dado aos adjetivos pela PEE2. Uma vez decidida a trabalhar essa classe gramatical, a professora poderia ter utilizado a proposta do livro, porque esta contempla a função dos adjetivos nos textos publicitários, enquanto a realizada por ela focalizava apenas o conceito de adjetivos e na sua variedade de grau. Analisada a proposta do LD, para o trabalho com a referida classe, verificamos que, por exemplo, há momentos para o aluno perceber que os adjetivos atribuem características a alguns substantivos e fazer uma comparação entre um texto sem adjetivos e um outro com, com a finalidade de conduzir o aluno ao reconhecimento dessas palavras como enriquecedoras do texto. Ademais, o livro sugere momentos de oralização da escrita e de expressão de opinião sobre como os adjetivos contribuem para fortalecer os argumentos usados para convencer alguém de visitar uma cidade. Percebemos assim que a atividade do LD sugere momentos de interação, diferenciando-se daquela desenvolvida pela professora, uma vez que ela não estabeleceu situações de discussão, além de focalizar a definição e o grau dos adjetivos. Definir e reconhecer adjetivos não contribuem para o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos, porque as formas de dizer, determinadas pelas situações comunicativas, não são evidenciadas.

Em relação às práticas efetivadas em sala de aula e a proposta do LD, notamos também que, enquanto os livros apresentam uma progressão didática mais articulada, as professoras parecem não dar continuidade aos tópicos nem às temáticas tratados em sala, além de abordarem o mesmo conteúdo da mesma forma em várias situações de ensino. Se considerarmos a visão de

Vygotsky (1984) sobre aprendizagem, podemos dizer que a forma de organizar o objeto de ensino por grande parte das professoras não favorece a apropriação de novas formas de linguagem de forma planejada e sistemática, porquanto o conteúdo parece ser tratado de forma fragmentada e desarticulada. Por exemplo, na escola EM1, num primeiro momento, a professora trabalha com produção de texto, por meio da apresentação de duas propostas (Cf. nos anexos, p.228-229) sem apresentar quaisquer orientações quanto ao planejamento, à escrita propriamente dita e à reescrita e sem trabalhar modelos de referência; num segundo momento, ela pede que os alunos resolvam uma atividade do LD sobre pronomes oblíquos através de um exercício, no qual o aluno teria que substituir, na frase, o nome pelo pronome corretamente; num terceiro momento, trabalha com verbos; num quarto momento, passa um exercício de interpretação de texto e explica a diferença entre a forma do verbo ter na 3ª p. do singular e na 3ª p. do plural; e, num quinto momento, pede que os alunos identifiquem aspectos estruturais e gramaticais do texto, como: número de estrofes, rimas, substantivos, dígrafos etc. Por meio dessa síntese das aulas da

EM1, verificamos a ausência de elo entre uma atividade e outra.

Considerando que todas as funções psíquicas superiores são mediadas, o livro e os materiais usados pela professora são instrumentos mediadores, produzidos sócio-historicamente, que têm por finalidade auxiliar o aluno nas ações concretas. Como esses instrumentos são constituídos de signos, eles permitem ainda a interpretação da realidade, a constituição do sujeito e o aperfeiçoamento da capacidade de memória etc. Assim, a forma como esses instrumentos estão organizados influencia diretamente no desenvolvimento das funções psíquicas superiores (linguagem), porque esses materiais didáticos estão organizados em torno de saberes que podem favorecer novas ações de linguagem e levar o indivíduo a agir eficazmente em diferentes situações e a se relacionar com outros objetos de conhecimento. Daí dizermos que os livros, por apresentarem uma diversidade maior quanto aos instrumentos semióticos, são ferramentas que

possibilitam mais sistematicamente o desenvolvimento de novos processos psicológicos superiores. Por sua vez, os materiais usados pelas professoras são restritos quanto aos instrumentos semióticos, o que impossibilita, por exemplo, a apropriação de outras formas de linguagem pelos alunos e, por conseguinte, a ação deles sobre o mundo e a integração da palavra do outro ao seu próprio discurso, uma vez que isso pressupõe o domínio desses instrumentos, conforme destacam Schneuwly & Dolz (2004).

Vale ressaltar que os livros dos quais as propostas supracitadas foram retiradas não estão isentos de críticas como expusemos na seção anterior. É notório, entretanto, que as atividades para o trabalho com as diversas práticas sugeridas por eles são mais apropriadas do que aquelas sugeridas pela maioria das professoras. Essa constatação nos permite reavaliar a afirmação de Matencio (1994) sobre o professor como “quase um repetidor do que está no livro”. Atualmente, ele não reproduz o que está nos livros atuais distribuídos pelo PNLD, apenas usa alguma parte para complementar um tópico do programa estabelecido para aquela série ou ciclo, orientado pela tradição escolar.

É importante enfatizar ainda que não estamos defendendo que o LD seja usado sem nenhum tipo de modificação, mas sim tentando demonstrar que, se o ensino é centrado no estudo de nomenclatura e de identificação e classificação de classes gramaticais, a responsabilidade não é exclusivamente dos livros atuais, até mesmo porque eles apresentam atividades que podem ampliar a competência do aluno para falar, ouvir, ler e escrever.