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A Psicologia Escolar na crítica à Medicalização e à Patologização da Educação

Capítulo 2 – A Psicologia Escolar e a Medicalização e Patologização da Educação

2.2 A Psicologia Escolar na crítica à Medicalização e à Patologização da Educação

Conforme vimos na seção anterior, a crítica à lógica individualizante e reducionista de compreensão do fracasso escolar tem sido fundamental para a Psicologia Escolar brasileira. Esse conceito, sintetizado por Patto (1990), é apresentado em contraponto à noção individualizante dos problemas de escolarização representada pelos termos dificuldades ou problemas de aprendizagem. Esses termos representam o reducionismo no olhar da Psicologia sobre a escola, pois focam a problemática no aluno ou em sua família, geralmente aquelas das

camadas populares. A autora argumenta o fracasso escolar enquanto um fenômeno que se constitui no bojo das relações cotidianas na escola: nas práticas e diretrizes pedagógicas; nas relações estabelecidas entre gestores, professores, estudantes e comunidade; nas crenças desses professores sobre as possibilidades de aprendizagem de seus alunos; nas concepções que têm acerca das crianças negras ou das camadas populares. É, portanto, um produto social, não podendo ser descontextualizado de todas as relações – pedagógicas, institucionais, sociais, históricas e culturais – que o constituem.

Bock (2003) desvela a ideologia que está por trás do discurso científico que busca explicações individualizantes para o fracasso escolar, como desnutrição, carência cultural ou QI baixo, por exemplo. O que essas explicações têm em comum é o mito da igualdade de oportunidades e a ideia de natureza humana, que discriminam e segregam as pessoas que não se desenvolvem de acordo com a norma. Essa ideologia atesta que só os mais aptos e mais capazes obtêm sucesso, justificando assim a desigualdade social por diferenças individuais. Na escola, essa ideologia autoriza os profissionais a ignorar os determinantes escolares e políticos das dificuldades de escolarização, responsabilizando alunos mais pobres e suas famílias pelo fracasso que é da escola.

Nesse sentido, para compreender esse fenômeno, a psicóloga escolar deve empenhar-se no entendimento histórico e social, desvelando a realidade que está por trás dos problemas de escolarização. De outro modo, ao suprimir esses aspectos do processo educativo, legitima todo o processo de exclusão, segregação e humilhação do estudante que desvia da normalidade estabelecida (Patto, 1990). Por trás dessa lógica, está a noção de que a escola já se encontra no seu formato ideal, cumprindo os seus objetivos de maneira adequada, uma vez que os problemas não levam a um questionamento da sua qualidade, mas sim da capacidade dos alunos. A escola, currículos, estrutura administrativa, estratégias de ensino-aprendizagem, professores, condições de trabalho, relações interpessoais etc., permanecem inquestionados (Andaló, 1984; Souza, 2010).

Andaló (1984), em sua crítica ao modelo clínico de atuação, também inserida no chamado Movimento Crítico dos anos 80, já trazia a discussão acerca da patologização dos problemas de aprendizagem pela atribuição de diagnósticos às crianças que apresentam dificuldades de escolarização. A autora atentava para o fato de que essas concepções patologizantes vinculam a Psicologia Escolar com a saúde mental, fundamentando-se na lógica saúde versus doença para avaliar os conflitos escolares. É, portanto, uma visão médica que contribui para a noção de que os problemas escolares seriam resultado de patologias presentes nos alunos que apresentam dificuldades, cabendo aa psicóloga, ou a outros profissionais, realizar intervenção terapêutica voltada para o ajustamento e adaptação dos alunos.

Machado (1994), nos primórdios dos trabalhos impactados pela perspectiva crítica, já questionava a relação direta entre distúrbios (físicos ou psicológicos) e o rendimento escolar.

Em uma pesquisa com crianças com diagnóstico de deficiência mental de uma instituição de Ensino Especial de São Paulo, denunciou a lógica da produção da exclusão por meio dos diagnósticos psicológicos. Sua intenção foi transferir o olhar para questões da escola e ouvir o que os alunos tinham para dizer sobre si e sobre a instituição. Pela criação de um espaço de diálogo livre e reflexivo, demonstrou a capacidade dessas crianças de aprender e de questionar seu diagnóstico e sua realidade escolar.

Esse estudo evidenciou, ainda, as implicações do processo de patologização. Os diagnósticos materializavam-se nas relações cotidianas estabelecidas na escola. A partir deles, determinavam-se estratégias educacionais voltadas para os alunos: redução de turma, acompanhamento de monitor, Ensino Especial, programas de educação compensatória, entre outros. Os diagnósticos, por sua vez, operaram consequências nas vidas desses estudantes, impossibilitando seu acesso a direitos sociais (Machado, 1994). Dessa forma, fica claro o seu caráter ideológico: as dificuldades, constituídas num sistema educacional falho, terminam por recair sobre supostas características orgânicas dos alunos e justificar o seu acesso a práticas educativas que apenas reafirmam e naturalizam essas dificuldades, mantendo o sistema intocado.

Assim, fica claro que a discussão acerca da patologização do fracasso escolar não é recente na Psicologia Escolar. Entretanto, mudanças sócio-históricas trazem elementos diferenciados para este momento. Segundo Souza (2010), novas tecnologias trouxeram para a Medicina, principalmente na genética e neurologia, possibilidades que foram significativas para uma retomada das explicações organicistas para questões escolares a partir do ano 2000. Ideais higienistas das décadas de 50 e 60 retornam com novas roupagens:

Não se fala mais em eletroencefalograma para diagnosticar distúrbios ou problemas neurológicos, mas sim em ressonâncias magnéticas e sofisticações genéticas, mapeamentos cerebrais e reações químicas sofisticadas tecnologicamente. Embora esses recursos da área da saúde e da biologia sejam fundamentais enquanto avanços na compreensão de determinados processos humanos, quando aplicados ao campo da educação retomam a lógica já denunciada e analisada durante décadas de que o fenômeno educativo e o processo de escolarização não podem ser avaliados como algo individual, do aprendiz, mas que as relações de aprendizagem constituem-se em dimensões do campo histórico, social e político que transcendem, e muito, o universo da biologia e da neurologia. O avanço das explicações organicistas para a compreensão do não-aprender de crianças e adolescentes retoma os velhos verbetes tão questionados por setores da Psicologia, Educação e Medicina, a saber, dislexia, disortografia, disgrafia, dislalia, transtornos de déficit de atenção, com hiperatividade, sem hiperatividade e hiperatividade. (Souza, 2010, p. 63).

realização no estudante de exames médicos diversos que auxiliem no diagnóstico e posterior medicação e tratamento. Analisam-se áreas do cérebro, a história genética familiar ou mesmo a alimentação, todos de ordem individual. Não há, nesse processo, questionamentos à escola, ao sistema educacional como um todo (Souza, 2010).

Viégas, Asbahr e Angelucci (2011) discutem que, frente a essa situação, a psicóloga “tem sido chamado para emitir laudos, realizar avaliações ou implementar programas, buscando na criança as causas das dificuldades escolares” (p. 12), ou seja, mantendo o processo de psicologização ou medicalização da educação. Ao atuar dessa maneira, esses profissionais não oferecem elementos que fundamentem a prática do professor e, pelo contrário, o imobilizam, ao não promover a reflexão acerca da constituição social dos indivíduos, sobre a qual os processos e práticas escolares são determinantes. Essa atuação está profundamente marcada pela compreensão tradicional dos psicólogos acerca da intervenção psicológica e de seu foco. É uma compreensão que se baseia na ilusão de neutralidade e no desinteresse pelas relações entre micro e macro política. Nesse sentido, a atuação dos psicólogos frente às queixas escolares se dá no sentido de condenar, julgar e comprovar – nessa ordem, destacam as autoras – principalmente quando seu olhar clínico incide sobre membros das camadas mais pobres. Operam, portanto, sérias consequências sobre a vida das pessoas que confiam nesses profissionais e deles esperam, no mínimo, escuta e compreensão da sua versão da história (Viégas, Asbahr & Angelucci, 2011).

É fundamental, a partir do reconhecimento das implicações danosas do processo de patologização da educação, que psicólogos atuem no sentido de desculpabilizar as vítimas, reconhecendo e denunciando “os processos diários de desumanização presentes em nossas formas atuais de socialização, entre elas, a praticada pela escola” (idem, p. 14). Esse processo de culpabilização das vítimas se retroalimenta pela desumanização cotidiana que é, em si, produtora de sofrimento e acaba sendo diagnosticado como uma doença individual. Torna-se essencial reconhecer que os modos de vida atuais fazem as pessoas adoecerem, ainda que essa seja uma discussão pouco nova em vários campos da ciência (Angelucci, 2013).

Souza (2010) chama atenção para a perversidade constante no processo medicalizante, uma vez que seus promotores defendem o diagnóstico e o tratamento (geralmente medicamentoso ou por acompanhamento individual) desses supostos transtornos como um direito. Consideram indispensável que estudantes com supostas incapacidades orgânicas hereditárias sejam diagnosticados para que, a partir dessa identificação pelos médicos e posterior comunicação à escola e à família, sejam diferenciados e tratados como doentes no cotidiano escolar. A autora enfatiza, ainda, que toda essa situação tem acontecido num momento em que a educação brasileira tem obtido índices muito negativos em avaliações de qualidade, tanto nas escolas públicas quanto privadas. Além disso, segue em uma análise sobre as políticas de educação, impregnadas de noções neoliberais, demonstrando seu compromisso com os

interesses de segmentos hegemônicos da sociedade de classes de não melhorar, de fato, a qualidade da educação para as classes populares.

Frente a esse processo, a autora propõe que o trabalho da psicóloga escolar seja pautado pelo “compromisso com a luta por uma escola democrática, de qualidade, que garanta os direitos de cidadania a crianças, adolescentes e profissionais de educação. Este compromisso é político e envolve a construção de uma escola participativa, que possa se apropriar dos conflitos nela existentes e romper com a produção do fracasso escolar” (Souza, 2010, p.65). Nesse sentido, entendemos que é fundamental que esse profissional esteja junto aos outros membros da escola na vivência e desses conflitos a fim de contribuir, com a sua especificidade, para a constituição de uma comunidade educativa participativa e igualitária na construção cotidiana do seu projeto político pedagógico (Chagas & Pedroza, 2013).

A Psicologia Escolar, portanto, tem visado novas possibilidades de atuação frente aos desafios colocados pela educação na atualidade. Algumas delas focam-se no enfrentamento à lógica medicalizante, buscando construir novas concepções e práticas que permitam mudanças na maneira de acolher a diversidade nas escolas. Exemplo disso é o trabalho de Souza (2014), a respeito da orientação à queixa escolar numa perspectiva não medicalizante. A autora propõe enxergar a queixa escolar como uma rede que envolve o estudante, a escola e sua família. Sendo assim, o atendimento a essa queixa não pode limitar-se à criança ou à família – como nas práticas patologizantes – mas também não pode limitar-se apenas à escola. O objetivo deve ser o de produzir o desenvolvimento e saúde mental de todos os integrantes da rede, inclusive implicando-se nela.

Souza (2014) estrutura sua proposta, no sentido de estabelecer contato direto e concreto com os participantes de sua produção, em alguns princípios: 1) construir espaço de expressão para uma comunicação significativa; 2) levantar a versão de cada autor sobre a queixa e promover reflexão sobre o que ela inclui; 3) favorecer a apropriação pelos autores do processo de produção da queixa, contextualizando-a; 4) identificar e fortalecer potências de cada autor, em contraponto ao imobilismo causado pelo discurso medicalizante de fortalecimento da internalização das incapacidades e faltas dos indivíduos envolvidos; 5) favorecer, nos encontros com esses atores, individuais e em grupo, a “circulação de informações, percepções, reflexões e versões referentes à queixa, seu processo de produção e sentidos, assim como a caminhos de superação da mesma” (p. 75). Dessa forma, essa proposta oferece possibilidades de intervenção em Psicologia Escolar contrárias ao aprisionamento e ao assujeitamento, voltadas a contribuir para a mudança das condições de produção do fracasso escolar. Entretanto, como Souza (2014) salienta, o atendimento e orientação à queixa escolar não se sobrepõe às perspectivas de atuação institucional, que visam à transformação estrutural do modelo de ensino, de seu funcionamento e das relações nos ambientes escolares.

atuação da psicologia escolar nesse sentido podem ser vistas nas “Recomendações de práticas não medicalizantes para profissionais e serviços de educação e saúde”, do Grupo de Trabalho Educação e Saúde do Fórum sobre Medicalização da Educação e Sociedade (Fórum, 2012). Essas Recomendações reúnem propostas voltadas tanto aos profissionais de educação quanto aos de saúde, a respeito do acolhimento aos problemas vivenciados nesses serviços por crianças, adolescentes, familiares e cuidadores. Em contraponto à lógica medicalizante, visam potencializar esses profissionais e os serviços em que atuam, no sentido de auxiliar o atendimento às necessidades de estudantes e usuários sem medicalizá-los. Propõem um trabalho em rede desses profissionais, em observância às suas distinções e aos seus papéis precípuos de educação e cuidado à saúde. Dadas as nossas finalidades neste trabalho, nos deteremos às Recomendações voltadas aos profissionais de educação, bem como àquelas que dizem respeito à articulação de redes.

As Recomendações voltadas aos profissionais de educação visam construir um olhar diferente para as dificuldades de escolarização, enquanto desafios. Refletem sobre o imobilismo da lógica da culpabilização – seja no estudante, no professor, na estrutura da escola ou no sistema educativo – buscando uma apreensão do processo educativo que permita a ampliação das ações e intervenções na escola, ao contrário de imobilismo. Assim, demonstram um entendimento de que, ao esmiuçar os desafios, é possível descobrir as potências e facilidades que trazem para a construção de soluções efetivas. Apontam para a necessidade de reflexão coletiva na escola, que envolva todos os seus membros na problematização e contextualização das dificuldades, uma vez que estas representam a manifestação de problemas construídos coletivamente nas relações cotidianas entre as pessoas. Ressaltam a procura pelas potencialidades de cada estudante ou profissional de educação, para além da ilusão de que a identificação de dificuldades auxilia o encontro das soluções – ou de quem as tenha.

Considerando essas ponderações, elencam as seguintes sugestões para que o espaço escolar se torne potencializador: a) “implicar a escola como um todo na construção de projetos pedagógicos”; b) “discutir e refletir sobre iniciativas e estratégias que deram certo”; c) “planejar estratégias em grupo”; d) “incentivar cada professor a contribuir com seu talento ou conhecimento”; e) “aprender a conhecer, a fazer, a viver junto e a ser”; f) “levantar o que os alunos querem aprender”; g) “oferecer experiências de aprendizagem”; h) “aprender a viver junto” (pp. 25-27).

Percebe-se, a partir dessas sugestões, uma percepção de que é no coletivo da escola, por meio do diálogo problematizador entre seus membros, que pode se desenvolver um maior aprofundamento sobre a situação e descobrir formas de solucioná-la. Esse diálogo tem a intenção de, inclusive, revelar potências e capacidades silenciadas no cotidiano, que nem sempre se manifestam nos contextos educativos tradicionais. É no encontro respeitoso e acolhedor com o outro, com o diverso, com o diferente de mim, que as possibilidades de superar

a lógica medicalizante se revelam em cada contexto.

Com relação às Recomendações de articulação dos profissionais de diferentes áreas em rede de serviços com vistas a construir práticas não medicalizantes, é incentivada a constituição de trabalhos em equipe multiprofissional, orientados ao diálogo e discussão em grupo dos casos. Recomenda-se o debate da temática da medicalização, relacionando com situações cotidianas atendidas pelos diferentes serviços, com destaque ao registro dessas discussões a fim de construir material de base para a atuação das equipes. No que diz respeito a estratégias para a constituição dessas redes, sugere-se como caminho o mapeamento dos diferentes serviços, instituições, órgãos gestores e grupos comunitários de um território. É fundamental conhecer as instituições e suas equipes e identificar projetos comuns entre os serviços a fim de dar os primeiros passos na constituição de rede. Além disso, as Recomendações destacam a importância de conhecer as políticas públicas por meio dos programas de governo e articular-se no sentido de constituir possibilidades de interferir em sua construção, seja por meio da participação – ou discussão junto à representação – em conselhos de direitos, órgãos de classe e sindicatos, ou pela constituição de grupos nas comunidades.

Apesar de ser mais discutida em relação à Educação Básica, a medicalização está presente em todos os níveis e modalidades educacionais. Dessa forma, fica evidente a necessidade de realizar pesquisas a respeito dessa questão, tanto para estudar de que maneira esse fenômeno tem se manifestado nas Instituições de Ensino Superior brasileiras, quanto para identificar o papel que os psicólogos escolares que atuam nessas instituições têm assumido frente a essa realidade. Sendo assim, será possível construir possibilidades para uma atuação desse profissional frente à medicalização da Educação Superior de forma não-medicalizante pela valorização da diversidade do desenvolvimento humano na universidade.