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Capítulo 3 – Educação Superior e Universidade – histórico, UnB e políticas

3.2 O Projeto Original da UnB e a sua Interrupção

O projeto original da Universidade de Brasília foi idealizado no contexto político do final dos anos 1950 e início dos 60, auge das ideias e políticas identificadas com o Nacional Desenvolvimentismo. Nessa época, a UNE, com apoio de acadêmicos vinculados a universidades e instituições científicas, encabeçava discussões a respeito da necessidade de uma Reforma Universitária como parte das Reformas de Base (Sguissardi, 2011). Num cenário em que o movimento estudantil se via bastante politizado e organizado ao ponto da realização de uma greve nacional, a importância da reforma do Ensino Superior alcançou amplos setores da sociedade. As principais bandeiras desse movimento reformista eram a democratização do acesso, a extinção da cátedra vitalícia, autonomia universitária, compromisso social e co- governo nos órgãos colegiados (Trindade, 2012).

A UnB foi inicialmente idealizada por Lúcio Costa, como parte de seu Plano Piloto para a cidade planejada. Uma universidade, enquanto lócus de criatividade e estímulo intelectual, o auxiliaria em seu intento de criar uma capital que fosse um centro de difusão cultural para o País, não apenas uma sede de governo. Apesar de inicialmente rejeitar a ideia, o presidente Juscelino Kubistchek seguiu com a proposta e convidou o educador Anísio Teixeira, responsável pela formulação do Plano Educacional de Brasília, a formular o anteprojeto da universidade a ser apresentado ao Congresso. Ocupado com o Plano Educacional, Anísio Teixeira convidou Darcy Ribeiro, com quem trabalhava no INEP – Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos6, e lhe deu liberdade para pensar um novo formato institucional retomando suas ideias quanto a um novo modelo de Educação Superior para o Brasil (Salmeron, 2007).

Darcy Ribeiro tornou-se, então, o líder de uma grande articulação para conceber e implementar esse projeto, que passou por várias incertezas até sua concretização. O projeto original da UnB foi debatido e construído por acadêmicos e cientistas brasileiros de diversas áreas, inclusive em uma sessão especial da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) dedicada à futura UnB (Salmeron, 2007). Seu principal objetivo era constituir um pensamento universitário voltado à promoção da cultura nacional e investigação dos problemas brasileiros a fim de desenvolver soluções adequadas e originais (Trindade, 2012). A ideia era criar uma universidade que tivesse “o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber,

6 Renomeado em 1972 como Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, em 2001 passou a ter o nome atual de Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP.

pensar o Brasil como problema” (Ribeiro, 1986, p. 5). O clima era de muito otimismo e idealização em torno da construção de uma experiência a se tornar referência para todo o País (Salmeron, 2007).

A UnB foi planejada, portanto, com base em uma análise das dificuldades das universidades brasileiras, e na tentativa de superá-las, em um contexto de profunda esperança sobre a constituição de novas políticas educacionais para o País. Estava atrelada a um projeto de sociedade para o Brasil, voltada para o desenvolvimento do seu povo, suas necessidades e potencialidades. Ribeiro (1995) afirma que não havia precedente no Brasil em que se inspirar, afinal não existia aqui nem propriamente uma tradição universitária ainda. Para ele, a tarefa inicial dos planejadores da UnB era realizar um diagnóstico e uma crítica da universidade brasileira até então e, a partir daí, delinear as alternativas de estruturação da nova proposta. Esse diagnóstico levou à constatação da precariedade das nossas IESs e sua completa incapacidade de atender aos requisitos exigidos para a constituição de uma universidade para a nova capital do País. Desse cenário, foi desenhado um modelo original para a UnB enquanto casa da cultura brasileira “capaz de ajudar o Brasil a formular o projeto de si próprio: a nação de seu povo, ordenada e regida por sua vontade soberana, como o quadro dentro do qual ele há de conviver e trabalhar para si próprio” (p. 132).

O modelo da UnB contemplava, assim, a preocupação com a busca por soluções para os problemas da sociedade brasileira. Dessa forma, foi constituída uma IES comprometida em sua essência com a pesquisa, o estudo nos mais diversos campos do saber e com a divulgação científica, técnica e cultural, demonstrando uma nova compreensão da função da universidade. Essa compreensão está clara na Lei nº 3.998/1961 (Brasil, 1961), que trata da instituição da Fundação Universidade de Brasília, em seu artigo 10, que estabelece que UnB deverá empenhar-se no estudo dos problemas econômicos, sociais e culturais do Brasil. Seria uma universidade, portanto, voltada para o desenvolvimento autônomo do País, como pode ser visto nas próprias palavras de Ribeiro (2012):

Por muitos anos estivemos na condição dos índios xavantes, que, ao aprenderem a utilizar machados de aço, não mais puderam prescindir deles e se viram atados a seus fornecedores. Agora que já produzimos aço, telefones, penicilina e com isso muito acrescentamos à nossa autonomia, caímos em novo risco de subordinação, representada pela dependência de normas e de saber técnicos. Só seremos realmente autônomos quando a renovação das fábricas aqui instaladas se fizer pela nossa técnica, segundo procedimentos surgidos do estudo de nossas matérias-primas e de nossas condições peculiares de produção e de consumo. Só por esse caminho poderemos acelerar o ritmo de incremento de nossa produção, de modo a reduzir e, um dia, anular a distância que nos separa dos países tecnologicamente desenvolvidos e que se apartam cada vez mais de nós pelos feitos de seus cientistas e técnicos (p. 17).

Para isso, a universidade contaria, de acordo com o artigo 14 da mesma Lei (Brasil, 1961), com autonomia didática, administrativa, financeira e disciplinar. Haveria, ainda, um novo modelo de organização universitária. Sua principal diferença estava em uma

macroestrutura tripartida de Institutos Centrais de Ciências, Letras e Artes dedicados ao cultivo e ao ensino do saber fundamental; de Faculdades Profissionais, devotadas à pesquisa e ao ensino nas áreas das ciências aplicadas e das técnicas; e dos Órgãos Complementares, que prestariam serviço à comunidade universitária e à cidade (Ribeiro, 1995, p. 154).

Sendo assim, a UnB se constituía sem cátedra vitalícia nem faculdades superiores, sendo organizada em centros por grandes áreas do conhecimento e com programas de ensino baseados em ciclos de formação geral (Almeida Filho, 2008). Era um projeto totalmente diverso das universidades clássicas que até então eram importadas da Europa sem qualquer relação com a realidade brasileira.

A organização proposta para a UnB permitiria aos estudantes maior abertura e participação na composição de seus próprios planos de estudo. Não haveria necessidade de inscrição inicial em curso predeterminado. O discente teria liberdade para construir uma trajetória particular, inclusive elaborando seu próprio programa acadêmico em novas áreas que se criariam a partir do entrecruzamento das já existentes. A proposta visava criar oportunidades para o estudante “fazer-se herdeiro do patrimônio cultural humano no plano das ciências, das letras e das artes” (Ribeiro, 1995, p. 156). A UnB representaria, assim, o centro acadêmico de um novo modelo civilizatório para o País. Para Ribeiro (2012), era necessário permitir aos brasileiros realizar as suas potencialidades há séculos limitadas. Essa noção de universidade politizada demandava liberdade e autonomia perante qualquer coação externa sob o risco de engessamento ideológico. Reivindicava a formação de uma nova mentalidade, o desenvolvimento dos protagonistas das mudanças sociais necessárias que interviriam na realidade com propósitos libertários (Longo, 2014).

Fica clara, portanto, a valorização ao desenvolvimento autônomo do estudante na universidade, com liberdade para decidir os caminhos da sua formação. Essa autonomia não era, entretanto, sozinha, mas autonomia com os outros, uma vez que havia na proposta a previsão de orientação acadêmica aos estudantes, por parte dos professores, ao longo da sua permanência na universidade. Além disso, o projeto original da UnB abrangia uma concepção de vivência universitária, uma preocupação com a convivência entre estudantes e professores das mais diversas áreas entre si e a comunidade brasiliense. Em seu discurso de recebimento do título de Doutor Honoris Causa da Universidade Brasília, Darcy Ribeiro falou sobre como se deu essa convivência no início da UnB:

aquela convivência alegre, aquele espírito fraternal, aquela devoção profunda ao domínio do saber e a sua aplicação frutífera. Éramos uns brasileiros apaixonados pelo Brasil,

prontos a refazê-lo como um projeto próprio, que fosse a expressão da vontade dos brasileiros (Ribeiro, 1995, p. 19).

A mesma questão pode ser percebida em outro de seus escritos sobre os primórdios da UnB:

Os meses e anos seguintes [à abertura da UnB] foram inesquecíveis para quem teve o privilégio de participar deles, como professor ou como estudante. Foi toda a floração de uma universidade que se inventava a si mesma à medida que crescia, dentro de um ambiente incomparável de criatividade e de convivência grata e solidária (Ribeiro, 1995, p. 130)

O que pretendemos destacar nesses trechos é como essa maneira de se pensar a universidade proporcionava uma convivência afetiva entre os membros da comunidade acadêmica. É condizente com a própria ideia de espírito universitário, de pensar livre, de construir um percurso pelo conhecimento historicamente acumulado a partir do próprio interesse e do desejo por esse saber, atrelado a uma relação com a realidade da vida concreta. Ressaltava-se, dessa forma, a comunidade universitária como um espaço de desenvolvimento, encontro, diálogo, afetividade e prazer nesse processo de apropriação dos conhecimentos significativos da cultura. Por trás do projeto original da UnB existia toda uma concepção de vida, para além da formação técnico-científica:

Assinale-se, ainda, que essa estrutura dará oportunidade de constituir-se um verdadeiro campus universitário. Quando estiverem em funcionamento os diversos institutos Centrais, todas as Faculdades e órgãos auxiliares, alunos e professores viverão numa comunidade efetivamente universitária. O estudante de Medicina fará uma formação científica básica junto com o de Engenharia, por exemplo, nos mesmos institutos Centrais; residirá na mesma casa com colegas que seguem os mais diversos cursos: com eles praticará esportes e frequentará os centros recreativos e culturais da Universidade. Os Museus, o instituto de arte, a Biblioteca Central, a rádio Universidade de Brasília funcionarão como centros de integração que, além de suas funções específicas, permitirão constituir um lastro de experiência cultural básica para todos os que passem pela Universidade, qualquer que seja a carreira que abracem.

Mestres inteiramente devotados ao ensino e à pesquisa, convivendo com seus alunos no campus comum, comporão o ambiente próprio à transmissão de experiência, não apenas por meio de atividades curriculares como, ainda, através do convívio e da interação pessoal, com o que se poderão plasmar mentalidades mais abertas, mais generosas e mais lúcidas. (Ribeiro, 2012, pp.25-26).

Essa concepção contribuía, inclusive, para desenvolver uma atenção a todos os elementos dessa vivência: moradia, alimentação, cuidados de saúde, assistência social, atividades culturais e de lazer. Nesse sentido, o projeto original englobava enquanto órgãos complementares da

universidade: biblioteca, rádio, editora, museu, casas de cultura para ensino de línguas e literatura de diversos países, um auditório com capacidade para grandes eventos internacionais, centro educacional com escolas de Educação Básica, centro recreativo e cultural, um Estádio Universitário, Centro de Assistência Médica e Odontológica e uma Casa Internacional para abrigar os estudantes estrangeiros no setor de habitações pensado para os estudantes e professores. Fica clara, portanto, a compreensão de que a formação de nível superior demanda uma estrutura que extrapola as de ensino, pesquisa e extensão, contemplando as necessidades da vida dos universitários.

É evidente, entretanto, que a Universidade de Brasília mudou significativamente ao longo de seus mais de cinquenta anos, principalmente devido ao golpe de 1964. A universidade foi invadida várias vezes, teve estudantes e professores presos, reitor e vice-reitor destituídos e substituídos por militares e chegou a perder 79% do seu quadro docente (Ribeiro, 1995). A dinâmica institucional da UnB foi fortemente atacada por ações desmobilizadoras e repressivas e passou a ser tratada como domínio militar, tendo sido quase fechada (Salmeron, 2007). O projeto de Darcy Ribeiro foi profundamente desconfigurado pela ditadura militar brasileira tendo sido abruptamente interrompido com apenas dois anos de idade. Entretanto, como o próprio autor afirmou em sua visita à universidade após o exílio, nem tudo se desfez:

A UnB é uma utopia vetada, é uma ambição proibida, por agora, de exercer-se. Mas permanece sendo, esperando, como a nossa utopia concreta, pronta a retomar-se para se repensar e refazer, assim que recuperarmos a liberdade de definir o nosso projeto como povo e a universidade que deve servi-lo (Ribeiro, 1995, p. 132).

O autor demonstra que, apesar de todas as intervenções e descaracterizações profundas, as intenções iniciais da UnB subsistem enquanto utopia concreta, no espírito dos estudantes e dos professores que guardam relação com suas propostas originais, que há de ressurgir naqueles que a reencarnarão em liberdade e dignidade. A tentativa de realização dessa empreitada foi feita a partir da redemocratização com a posse em 1985 do primeiro reitor eleito democraticamente, Cristovam Buarque, reincorporando simbolicamente os professores que participaram da demissão coletiva no início da tomada militar da UnB (Oliveira, Dourado e Mendonça, 2011). Esse período de reconstrução da UnB foi marcado pela perspectiva de reconstrução do próprio País após a ditadura militar. Entretanto, dada a crise econômica que se abateu no Brasil paralelamente à abertura democrática, foram anos de subfinanciamento, graves problemas administrativos, crise de autoridade, desvalorização social e manifestações por meio de longas e frequentes greves de estudantes, docentes e servidores (Almeida Filho, 2008).

3.3 Políticas Públicas de Educação Superior no Brasil: Neoliberalismo e Iniciativas de