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Capítulo 2 – A Psicologia Escolar e a Medicalização e Patologização da Educação

2.3 Atuação da Psicologia Escolar na Educação Superior

A atuação da psicologia escolar na Educação Superior ainda tem sido pouco objeto de estudos e pesquisas e é considerada nova na área (Corrêa, 2011; Marinho-Araújo, 2016; Oliveira, 2011; Ressurreição & Sampaio, 2017; Sampaio, 2010; Silva, Pedro, Sicari, Callegari, Barbosa & Montesino, 2013). O contexto universitário geralmente é utilizado em pesquisas mais por conveniência do que necessariamente pela intenção de problematizar esse nível de ensino (Oliveira, 2011; Sampaio, 2010). A Psicologia Escolar atua, tradicionalmente, junto à Educação Básica. É pequeno o número de estudos que entendem as Instituições de Ensino Superior (IES) enquanto campo de atuação para esse profissional dentro das proposições teórico-práticas defendidas atualmente para a área (Marinho-Araújo, 2016).

O levantamento da produção científica sobre Psicologia Escolar e Educação Superior feito por Bariani, Buin, Barros e Escher (2004) corrobora as afirmações anteriores. Os autores demonstram que a maioria desses estudos tem como foco o corpo discente e o processo ensino-

aprendizagem, estando mais voltados a investigar mudanças em características cognitivas ou afetivas dos estudantes ao longo do tempo. Portanto, as pesquisas a respeito da atuação do profissional dessa área junto ao nível Superior demonstram que essa atuação tem seguido a concepção individualizante das questões apresentadas no processo de ensino-aprendizagem de nível Superior, voltando-se ao atendimento ou acompanhamento individual a discentes que apresentam rendimento acadêmico insuficiente (Bisinoto, Marinho & Almeida, 2011; Bisinoto & Marinho-Araújo, 2015; Marinho-Araújo, 2009; Moura & Facci, 2016; Oliveira, 2011; Santos, Souto, Silveira, Perrone & Dias, 2015; Serpa & Santos, 2001; Zavadski & Facci, 2012).

A esse respeito, o estudo de Santos, Souto, Silveira, Perrone e Dias (2015), um levantamento de trabalhos sobre a atuação de psicólogos escolares na Educação Superior, esclarece que essa atividade tem se focado mais em atendimentos individuais aos discentes. Entretanto, as autoras concluem que, por haver relatos de práticas com professores e funcionários, além de um questionamento sobre o modelo tradicional de atuação, esse cenário passa por uma transição marcada pela busca por formas alternativas de trabalho. Essa mesma constatação aparece em outros estudos, que demonstram iniciativas de ampliação ações dos psicólogos escolares que atuam nesse nível de ensino para além do atendimento individual e atingindo membros dos outros segmentos da comunidade acadêmica (Bisinoto, Marinho & Almeida, 2011; Bisinoto & Marinho-Araújo, 2015; Corrêa, 2011; Marinho-Araújo, 2016; Oliveira, 2011).

Um dos primeiros trabalhos a que tivemos acesso sobre atuação em Psicologia Escolar nesse nível de ensino foi o de Serpa e Santos (2001), um levantamento em 61 IESs brasileiras a respeito da existência de serviços de atendimento a universitários e da presença de psicólogos escolares neles. Os questionários respondidos pelas instituições participantes revelaram que a maioria dos psicólogos desses serviços trabalhava sozinho, ou independente dos outros profissionais de sua equipe, realizando orientação individual aos estudantes ou encaminhamentos. Ou seja, as autoras encontraram a realidade da atuação no tradicional modelo clínico da psicologia escolar. Apesar de fazerem algumas críticas à falta de atuação integrada nos casos de equipes multiprofissionais, Serpa e Santos (2001) demonstram uma concordância com essa forma de trabalho ao afirmar a importância desses serviços no “encaminhamento das dificuldades inerentes aos alunos” (p. 33) e ao defender que o acompanhamento psicológico dos estudantes é importante para melhoria de seu aproveitamento acadêmico e na sua formação integral. Ou seja, recorrem à responsabilização individual do estudante pelas dificuldades que encontram em sua vivência acadêmica, sem problematizar a totalidade do processo educativo que se realiza na instituição de Ensino Superior.

Ainda que bem mais recente, o estudo de Pinto, Faria, Pinto e Taveira (2016) traz essas mesmas concepções ao realizar um levantamento junto a estudantes universitários portugueses quanto às suas “necessidades de intervenção psicológica” (p. 460) percebidas como

“preocupações e necessidades pessoais, de carreira e de aprendizagem” (idem). Ao sondar essas necessidades, demonstram um entendimento de que o papel dos profissionais de Psicologia nas IESs é limitado ao apoio psicológico dirigido aos estudantes com vistas ao seu desempenho acadêmico, como pode ser percebido na seguinte afirmação “torna-se cada vez mais pertinente a prestação de serviços de Psicologia que permitiriam uma aproximação dos alunos às oportunidades de intervenção adequadas à sua formação, potenciando a sua empregabilidade” (p. 469). Relacionam seus resultados com outros estudos que demonstram o aumento dos problemas psicológicos severos nos estudantes, entretanto não fazem qualquer reflexão sobre a instituição de ensino, o processo educativo realizado, nem sobre as políticas públicas ou a realidade da Educação Superior daquele país.

O estudo de Bisinoto & Marinho-Araújo (2015), um mapeamento dos Serviços de Psicologia das IES brasileiras e suas atividades, apresenta questionamentos às perspectivas mais tradicionais de atuação em Psicologia Escolar e Educacional. Seu mapeamento permitiu verificar que esses profissionais compõem equipes, principalmente com pedagogos, de forma geralmente direcionada ou exclusiva aos discentes. Existem, porém, serviços que demonstram tentativas de ampliação dessas ações no sentido de um trabalho preventivo-institucional. Dessa forma, as autoras defendem a necessidade de elaborar um modelo de atuação específico para esse nível de ensino, empreendimento ao qual se dedicam tanto neste estudo quanto em outras publicações (Marinho-Araújo, 2009; Marinho-Araújo, 2016; Oliveira, 2011). Torna-se relevante para este projeto de pesquisa, assim, conhecer essas elaborações.

Marinho-Araújo (2009) propõe uma ampliação do trabalho da psicóloga escolar na Educação Superior para três dimensões de intervenção: a) Gestão de Políticas, Programas e Processos Educacionais, b) Propostas Pedagógicas e funcionamento de cursos e c) Perfil do estudante. A autora explica que a primeira dimensão relaciona-se com uma atuação voltada à assessoria da gestão institucional e participação na elaboração e revisão do Plano de Desenvolvimento Institucional; participação na recepção de novos docentes e funcionários; atuação em programas de formação continuada de professores e funcionários; e acompanhamento da autoavaliação institucional. A segunda dimensão engloba ações da psicologia escolar voltadas a colaborar com a análise das diretrizes curriculares para o trabalho pedagógico; acompanhar o processo ensino-aprendizagem considerando as diretrizes curriculares nacionais; e contribuir para a análise e revisão de Projetos Pedagógicos dos Cursos, a fim de apoiar o processo de desenvolvimento de competências discentes. A última dimensão contempla a promoção pela psicóloga escolar de discussões acerca do desenvolvimento adulto; desenvolvimento de pesquisas sobre o perfil dos estudantes; e elaboração de estratégias de verificação do desenvolvimento de competências por parte dos estudantes.

Em trabalho mais recente, Marinho-Araújo (2016) revê esse modelo, acrescentando a essas três dimensões de intervenção, mais dois eixos de ação da psicologia escolar na Educação

Superior: 1) mapeamento institucional e 2) escuta psicológica. O primeiro se refere à análise dos diversos aspectos que compõem a realidade da instituição em que a psicóloga se insere, sendo uma ação permanente que acompanha a psicóloga em seu trabalho e a ele oferece suporte. Consiste de uma análise ampla, sistemática, dinâmica e contínua, por meio de técnicas e ações diversas, dos seguintes elementos da IES: conjuntura histórica, econômica, política e social; documentos, como políticas, normas e diretrizes pedagógicas; práticas acadêmicas e rotinas pedagógicas, projetos e tendências educacionais, estrutura e dinâmica da organização temporal e espacial das atividades; concepções de educação, ensino, desenvolvimento, aprendizagem e avaliação subjacentes a essas práticas. O segundo remete à escuta psicológica dos diversos membros da instituição “com o objetivo de fomentar processos de implicação dos profissionais quanto à mediação do desenvolvimento pessoal dos estudantes visando o sucesso acadêmico” (Marinho-Araújo, 2016, p. 206) no sentido de “ouvir e compreender a singularidade das demandas, mas também de investigá-las e questioná-las, buscando, com lucidez, gerir a intersubjetividade presente nas relações” (idem). A autora oferece, portanto, uma compreensiva elaboração quanto à atuação da psicologia escolar nesse nível de ensino.

Orientada por Marinho-Araújo, a pesquisa de Oliveira (2011) segue caminho semelhante às de sua orientada ao propor-se a construir uma proposta voltada às IESs de criação e estruturação de Serviços de Psicologia. Para a autora, o objetivo geral desses serviços deve ser o de prestar apoio à IES na promoção do processo educativo, mais especificamente dos processos de ensino, aprendizagem e desenvolvimento, no sentido de potencializar o desenvolvimento dos sujeitos e da instituição. Propõe um perfil profissional para os psicólogos escolares que comporão esses serviços, orientações quanto ao seu funcionamento e atividades a serem realizadas, agrupadas em três dimensões interdependentes: 1) gestão institucional; 2) gestão acadêmica e 3) desenvolvimento do estudante. Oliveira (2011) defende que o estabelecimento de um modelo viabiliza a definição de princípios e metas a partir dos quais é possível estabelecer um perfil profissional, inclusive para orientar processos seletivos.

Entendemos que é necessário construir possibilidades de atuação da psicologia escolar na Educação Superior e, inclusive, essa é uma questão orientadora deste projeto de pesquisa. Entretanto, nos questionamos se a melhor forma de fazê-lo é no sentido da elaboração de modelos pré-definidos, que chegam a delimitar um perfil profissional. A partir da nossa compreensão de Psicologia e de Educação, defendemos que o trabalho da psicóloga escolar se dá na convivência cotidiana com os membros da instituição no sentido da construção coletiva do Projeto Político-Pedagógico. É claro que essa não é uma convivência qualquer, já que traz em si as especificidades da formação da psicóloga e de seu olhar e propostas para a educação. Entretanto, o sentido dessa inserção está na valorização do encontro, desse estar junto aos outros membros da comunidade a fim de orientar-se pela realidade da instituição. Sendo assim, é fundamental a construção de uma proposta sobre possibilidades e caminhos potenciais que,

desde que bem fundamentada em princípios teórico-metodológicos e ético-políticos, possa realizar-se a partir da vida institucional concreta.

Outras concepções de atuação em psicologia escolar na Educação Superior têm baseado estudos de diferentes autores e grupos da área. Exemplo disso é a dissertação de mestrado de Corrêa (2011), realizada a partir de sua própria prática como psicóloga escolar de uma IES, que traz possibilidades de compreender o papel teórico-prático desse profissional voltado para uma atuação conjunta com os diversos atores institucionais. A autora percebe como elementos importantes desse trabalho a mediação de conflitos entre os membros da comunidade universitária, a formação de professores e servidores técnico-administrativos, a construção em conjunto com os servidores da apreensão de seu papel como educadores. Para isso, ressalta a importância desse profissional conhecer a realidade social, leis que se relacionam com sua prática e contexto de atuação e, principalmente, a si mesmo e às pessoas com quem partilha seu cotidiano de trabalho. Essa dissertação traz importantes contribuições para a atuação da psicologia escolar na Educação Superior, ao enfatizar a necessidade de abertura para experienciar um processo de transformação pessoal e profissional e de dar condições ao outro e, a si mesmo, de desenvolver sua autonomia.

A pesquisa sobre a atuação da psicologia escolar na Educação Superior voltada para a formação de professores universitários de Zavadski e Facci (2012) também oferece outro ponto de vista. As autoras propõem que essa formação seja realizada por meio do estudo do desenvolvimento psicológico dos estudantes, com foco na fase adulta. Entretanto, ponderam sobre as dificuldades de realização dessa proposta frente a um modelo educativo conteudista e fragmentado, que reproduz a alienação pela via do pragmatismo. As autoras afirmam primar pela emancipação humana e ressaltam a necessidade de a psicóloga escolar ter clareza sobre que indivíduo deseja formar. Por fim, colocam que a intervenção da psicóloga na Educação Superior pode ser ainda mais ampla ao trabalhar no nível institucional, colaborando para a elaboração de diretrizes para a formação universitária e em políticas educacionais.

Outro estudo desse mesmo grupo de pesquisa, a respeito da prática da psicóloga escolar no Ensino Superior, é o de Moura e Facci (2016), focado na questão do fracasso escolar. A partir de entrevistas com 13 psicólogos escolares que trabalham nesse nível de ensino, encontraram como realidade uma atuação majoritariamente exclusiva ao público discente das universidades, focada em intervenções individuais, principalmente aconselhamento ou psicoterapia breve, voltadas à diminuição da evasão estudantil. Críticos a essa realidade, os autores apresentam, com base na Psicologia Histórico-Cultural, algumas propostas de atividades em psicologia escolar que poderiam contribuir para a superação do fracasso escolar: “o trabalho junto aos alunos monitores; a atividade de recepção aos calouros; a atuação junto a movimentos estudantis; e a mediação e intervenção com gestores, coordenadores de curso e professores” (p. 510). Compreendem que essas ações permitiriam a construção de um modelo crítico e

emancipador de atuação em Psicologia Escolar e Educacional no Ensino Superior.

Entendemos os avanços que as atividades propostas por Moura e Facci (2016) trariam em relação à realidade encontrada em sua pesquisa, porém ponderamos que, apesar de ampliarem o foco da atuação, continuam majoritariamente voltadas aos estudantes. Os próprios autores afirmam, no final do artigo, a necessidade de estudos que explorem e sistematizem outras possibilidades de atuação, principalmente com relação ao trabalho de psicólogos escolares junto a gestores, coordenadores de curso e professores das IESs. Em nossa concepção, a proposta dos autores poderia ser bastante enriquecida por uma compreensão do próprio papel da Educação Superior para além da apropriação dos conhecimentos científicos historicamente acumulados, mas para uma convivência e uma experiência humana de formação em uma instituição que cumpre um papel social.

Percebemos que essas ideias se fazem presentes no relato de experiência de Silva, Pedro, Sicari, Callegari, Barbosa e Montesino (2013), que consiste de um estágio supervisionado em Psicologia Escolar voltado ao acolhimento e orientação aos estudantes ingressantes no curso de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, com vistas a contribuir para uma formação menos tecnocrática e mais crítica, reflexiva e emancipatória. Em sua proposta, a Arte está posta como um eixo estruturante para ações de acolhimento, orientação e integração universitária realizadas no âmbito de uma disciplina oferecida no primeiro semestre do curso. Essas ações, pensadas no sentido de uma formação efetivamente humana, demonstram uma compreensão da amplitude da experiência que envolve a formação universitária, contemplando, além dos conteúdos, vivências de cultura e lazer a partir de uma convivência na comunidade acadêmica. Assim, as autoras apontam caminhos para uma atuação de psicólogos escolares nas universidades, fundamentadas numa compreensão dos estudantes enquanto sujeitos em sua totalidade e do papel social da universidade frente às demandas da sociedade brasileira.

A partir dos estudos aqui apresentados, é possível perceber que a atuação em psicologia escolar nas IESs tem sido marcada pelas mesmas concepções discutidas em relação à Educação Básica. Existe a intenção de superar o modelo clínico-médico tradicional por meio da ampliação das ações a outros segmentos da universidade, com foco mais ampliado sobre a instituição, bem como a tentativa de elaboração de modelos de atuação que sistematizem e ofereçam orientações aos profissionais que estão se inserindo a cada dia nas universidades brasileiras. Dessa forma, apesar da especificidade desse nível de ensino, as mesmas questões que se colocam à Psicologia Escolar de maneira geral têm atravessado a prática profissional nesse contexto. Nesse sentido, a patologização da educação faz-se presente nesse nível de ensino, ainda que não tenha sido especificamente problematizada nos estudos apresentados.

No levantamento bibliográfico realizado, entre os artigos que traziam reflexões sobre a medicalização da educação, encontramos apenas dois estudos que remetem à Educação Superior (Corrêa & Baierle, 2011; Leite & Oliveira, 2015). Este último, apesar de oferecer uma reflexão

importante sobre a questão de gênero no ensino de Medicina, tem a questão da medicalização apenas como pano de fundo dessa discussão. O trabalho de Corrêa e Baierle (2011) trata desse nível de ensino ao realizar pesquisa com estudantes de graduação de uma IES privada do Rio Grande do Sul que declararam utilizar psicofármacos para obter melhor desempenho acadêmico. Os autores realizaram uma reflexão aprofundada e um questionamento ético sobre as formas de existência dos sujeitos, suas relações com os outros e consigo, tentando compreender a função desempenhada por essas drogas frente às escolhas e aos modos de vida das pessoas. Esse artigo traz grandes contribuições para pensar a medicalização na Educação Superior, ao discutir o abuso de drogas para aumento da produtividade acadêmica mediante as exigências de uma sociedade capitalista.

Não foram encontrados estudos que tratem mais especificamente do papel da psicóloga, em especial da escolar, frente à medicalização da Educação Superior. Fica clara a necessidade de realizar pesquisas a respeito dessa questão, tanto para estudar de que maneira esse fenômeno tem se manifestado nas IESs brasileiras quanto qual o papel que os psicólogos escolares que atuam nessas instituições têm assumido frente a essa realidade. Assim, será possível construir possibilidades para uma atuação desse profissional que contribua para uma Educação Superior de qualidade a partir da valorização da diversidade do desenvolvimento humano na universidade.

Realizar essa discussão demanda clareza a respeito da concepção de Educação Superior e de Universidade que se pretende defender. Nesse sentido, torna-se necessário pesquisar o histórico e realidade desse nível de ensino no Brasil e buscar compreender as políticas públicas que o fundamentam. É isso que pretendemos fazer no próximo capítulo.

Capítulo 3 – Educação Superior e Universidade – histórico, UnB e políticas públicas de