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Capítulo 3 – Educação Superior e Universidade – histórico, UnB e políticas

3.4 Em Busca da Concepção de Universidade que Queremos

No presente momento de instabilidade, torna-se ainda mais fundamental a defesa da Educação Superior como direito de todas as pessoas e a luta pela expansão do seu sistema por meio da valorização da universidade pública, gratuita, de qualidade, democrática, voltada para uma formação humana e comprometida com as necessidades, desafios e potencialidades da

nossa sociedade. Neste momento, visaremos construir as bases da concepção de universidade que pretendemos ter como fundamento para este trabalho.

Um dos nossos principais pontos de partida é o projeto original da UnB, em sua confluência entre as ideias de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e de tantos outros acadêmicos da época que sonharam juntos uma universidade realmente brasileira. Vários elementos que compõem aquele modo de pensar essa instituição nos parecem adequados ao momento presente: a flexibilidade curricular, principalmente no que tange à possibilidade de permitir ao estudante construir a sua própria trajetória acadêmica a partir de seu interesse; a ideia do ciclo básico, para compor conhecimentos mínimos comuns de nível superior para todos os estudantes, que partilham a sua formação independente da certificação final pretendida; a valorização da convivência acadêmica como fundamental para que as atividades de ensino e pesquisa sejam impregnadas do prazer pela liberdade de pensar o que motiva cada um, tendo a realidade social concreta como guia de problematização; a noção de interdisciplinaridade na formação, com integração das Unidades Acadêmicas, evidenciando o espírito da universidade enquanto unidade na diversidade; a noção da estrutura necessária para promover essa totalidade da experiência universitária, abrangendo para além de ensino e pesquisa, cultura, esporte, lazer, assistência médica e odontológica; a visão de que todos esses serviços necessários à vivência plena da comunidade acadêmica devem também servir à sociedade, ao mesmo tempo em que são campo fértil de ensino e pesquisa; a ênfase à formação humana, indissociável das demandas da sociedade e de uma visão soberana do País.

Entendemos, porém, que o ideal não seria simplesmente retomar o projeto original da UnB da maneira como foi concebido então. O momento histórico atual traz novas demandas para pensar o formato dessa instituição. Políticas públicas recentes, como o REUNI, propiciaram possibilidades de colocar os avanços do sistema de Ensino Superior brasileiro no rumo da democratização. Transformações ainda mais profundas e estruturais são necessárias. Nesse sentido, as propostas do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, construídas a partir de seus estudos sobre a universidade, suas crises e possibilidades, trazem incrementos às possibilidades de pensar uma reforma criativa, democrática e emancipatória da universidade pública. O principal elemento que guia essa reforma é um projeto de país resultante de um amplo contrato político e social, no qual essa instituição cumpre um papel fundamental. Santos (2008) propõe a sua democratização radical como resposta positiva às demandas sociais, dando fim à história de exclusão de grupos sociais e seus saberes por tanto tempo executada pelas instituições de nível superior mundo afora. Evidencia-se em sua elaboração o papel da universidade pública na definição e resolução coletiva dos problemas sociais.

Para o autor, uma universidade só existe quando engloba graduação, pós-graduação, pesquisa e extensão. Todos esses elementos precisam compor uma articulação dinâmica a fim de cumprir sua função social na construção de uma sociedade mais coesa e igualitária, no

aprofundamento da democracia, na defesa da diversidade cultural e na luta contra a exclusão social e a degradação ambiental. Entretanto, nenhum desses elementos pode estar orientado para atividades rentáveis com intuito de arrecadar recursos extra-orçamentários para a universidade, sob o risco de privatização, ainda que parcial e pontual. As atividades universitárias devem estar prioritariamente voltadas para as demandas sociais e não as do capital, ou seja, atenta às necessidades de grupos sociais que não têm poder para pôr o conhecimento técnico e especializado a seu serviço.

A democratização do acesso é um tema tratado com muito cuidado pelo autor, contemplando uma série de ações e iniciativas frente às diversas formas de exclusão e discriminação construídas historicamente. Santos (2008) defende a concessão de bolsas de permanência para estudantes das classes trabalhadoras, sem a necessidade de devolução desse valor, porém com contrapartida de trabalhos em atividades universitárias. Afirma que a discriminação étnicorracial precisa ser enfrentada por meio de medidas específicas com programas de ação afirmativa que contemplem, além do acesso, o acompanhamento acadêmico e atenção às taxas de abandono. Com relação à democratização, o autor traz uma questão fundamental nem sempre abordada: a necessidade de questionar a universidade em seu todo, repensando não só seu público, mas também a importância de democratizar os conhecimentos que fazem parte do fazer acadêmico. Essa questão relaciona-se à ideia da ecologia de saberes, definida por Santos (2008) da seguinte forma:

A ecologia de saberes é, por assim dizer, uma forma de extensão ao contrário, de fora da universidade para dentro da universidade. Consiste na promoção de diálogos entre o saber científico ou humanístico, que a universidade produz, e saberes leigos, populares, tradicionais, urbanos, camponeses, provindos de culturas não ocidentais (indígenas, de origem africana, oriental, etc.) que circulam na sociedade (p. 76).

Essa concepção enfatiza a indispensabilidade da universidade assumir seu papel histórico na desqualificação, ou até destruição, de conhecimentos não-científicos, o que contribuiu para a marginalização de grupos sociais que dispunham apenas dessas formas de conhecimento. Dessa forma, o compromisso dessa instituição com a sociedade demanda o reconhecimento da validade desses saberes e não apenas dos científicos, enfrentando o que o autor chama de injustiça cognitiva, que sustenta a injustiça social. Esse movimento auxilia a universidade a converter-se num espaço realmente público onde esses grupos sociais podem participar ocupando novos lugares para além de apenas o de aprendizes (Santos, 2008).

Concretizar essas mudanças demanda que a universidade, além de colaborar para a construção de uma sociedade mais democrática, se constitua, também, enquanto instituição verdadeiramente participativa. É necessário debater a sua própria composição no espaço público e criar formas de organização que viabilizem a tomada de decisões democráticas por parte de toda a sua comunidade. A universidade precisa ser discutida constantemente em sua vivência

cotidiana, num exercício diário de diálogo de seus membros entre si e com a comunidade. Deve ser um espaço público privilegiado de debate aberto e crítico.

Nesse sentido, consideramos fundamental trazer a seguinte reflexão de Marilena Chauí: O paradoxo consiste em que a universidade – lugar onde todas as coisas se transformam em objetos de conhecimento – não consegue colocar-se a si mesma como objeto de conhecimento e inventar os procedimentos para a pesquisa de si mesma. Diante da universidade, os cientistas e pesquisadores parecem tomados pela ignorância e pela perplexidade, como se estivessem diante de um fenômeno opaco e incompreensível (Chauí, 2016, p. 5)

Essa reflexão nos auxilia a ressaltar um ponto central deste trabalho: a necessidade de a universidade questionar-se, enxergar as suas próprias (graves) falhas e tomar a si mesma como objeto de problematização. É inaceitável que essa instituição, que deve ser o espaço de pensar a sociedade, seus desafios e correspondentes soluções, promova a reprodução acrítica de práticas tradicionais de educação já estagnadas nos outros níveis de ensino. Se a universidade quiser ser o lugar onde se pensam as melhorias da vida de toda a população, ela precisa antes de tudo exercer essas novas práticas sociais mais igualitárias, democráticas, justas e acolhedoras da diversidade.

É com base nessa realidade e na compreensão de universidade apresentada que se pretende pensar o papel da psicologia escolar na Educação Superior neste projeto. A valorização dessa instituição como um espaço eminentemente democrático, constituído pelo diálogo cotidiano entre seus diversos atores na construção de conhecimento atrelado à realidade social do País traça um cenário em que a psicologia escolar pode contribuir. Entendemos que esse profissional colabora com a sua especificidade aos espaços educativos dos quais participa, oferecendo um olhar diferenciado para a singularidade dos sujeitos, uma compreensão da diversidade do desenvolvimento humano, uma escuta dos não-ditos presentes nas falas das pessoas e uma atuação na mediação das relações interpessoais (Chagas, 2010). A sua atuação se direciona, assim, para a melhoria da instituição educativa como um todo, não apenas focada em um aspecto ou um segmento desse contexto. Dessa forma, pode auxiliar na compreensão do desenvolvimento humano e do processo educativo de maneira abrangente, reconhecendo a necessidade da construção coletiva em prol de uma educação de qualidade para todos (Chagas & Pedroza, 2013).

Considerando o quadro conceitual apresentado e a realidade atual da UnB, bem como retomando as questões motivadoras desta pesquisa, fica evidente a importância de pensar como o processo de medicalização tem se desdobrado diante da democratização da Educação Superior no Brasil. Cada vez mais estudantes chegam à universidade com diagnósticos de TDAH, dislexia, entre outros (ou são diagnosticados ao longo do curso) e encontram nesta instituição serviços e direitos diferenciados que reforçam esses diagnósticos e aprofundam a patologização

do fracasso escolar. Os psicólogos escolares têm sido diariamente convocados a legitimar esses diagnósticos, realizar avaliação psicológica ou, pelo menos, oferecer supostas estratégias de aprendizagem que favoreceriam essas pessoas identificadas como “portadoras de necessidades especiais”. Sendo assim, torna-se fundamental a realização de estudos que visem construir possibilidades de atuação em psicologia escolar frente ao processo de patologização e medicalização da Educação Superior pela valorização da diversidade do desenvolvimento humano na universidade.

Objetivos

Neste estudo, os objetivos são concebidos como pontos de partida e direcionamento da investigação, porém não são pré-definições estáticas: podem e devem ser repensados a todo o momento, ao mesmo tempo em que auxiliam a orientação do percurso de pesquisa. Esses objetivos, portanto, serão ressignificados no caminho da investigação em seus desafios, alcances e limites.

Objetivo geral: compreender a atuação da psicologia escolar da UnB frente ao processo de patologização e medicalização da Educação Superior.

Objetivos específicos:

1. Analisar a maneira pela qual o processo de patologização e medicalização da educação se apresenta na UnB;

2. Levantar e investigar as possibilidades de atuação em psicologia escolar na UnB atuais e em sua história;

3. Construir proposta de atuação da psicologia escolar frente ao processo de patologização e medicalização da Educação Superior pela valorização da diversidade do desenvolvimento humano.