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A Questão do Crioulo no ensino

Capítulo 1 – Situação Linguística da Guiné-Bissau

1.10. A Questão do Crioulo no ensino

A questão da introdução do Crioulo como língua de alfabetização das crianças continua a ser atual e, segundo Johannes Augel (1997: 251-254), ela é a “única língua viável” para essa função, na medida em que “a heterogeneidade populacional não permite a existência de tabancas (aldeias) homogéneas”.

Se é verdade que a língua de alfabetização tem um peso determinante no sucesso ou insucesso escolar, não é menos verdade que o insucesso escolar constatado atualmente na Guiné-Bissau, a todos os níveis, não é alheio ao baixo nível de formação dos professores. Com efeito, se compararmos com o que se passava na época colonial, veremos que as crianças dos meios rurais, que não tinham sequer o crioulo como língua materna, conseguiam fazer os seus estudos com sucesso nas missões católicas ou mesmo nas escolas oficiais, tendo muitas delas beneficiado de bolsas de estudo para formação superior no estrangeiro. O artigo 1º da lei que criou a junta das Missões Católicas Ultramarinas vinculou-a ao Ministério das Colónias, «para desenvolver, (…) o espirito de colaboração que, em nome dos mais altos interesses coloniais, tem de presidir ás relações do Estado com as missões».

O curso de «Administração Colonial», ministrado na Escola Superior Colonial, transmitia «os métodos de educação dos indígenas (partindo, naturalmente, da etnologia) e especialmente de organização e processo de trabalho das missões religiosas com quem o funcionário tinha de lidar e colaborar constantemente».

Outro aspeto que dificulta a promoção do idioma nacional como língua de ensino é o de ela permanecer uma língua sem escrita regulamentada, apesar da existência de uma proposta para unificação da sua ortografia realizada pelo Ministério da Educação guineense, em 1987. Nesta proposta a ortografia é fonética e com base no alfabeto latino, mas recorrendo a empréstimos do alfabeto internacional para expressar sons do crioulo que não existem na língua portuguesa. A inexistência de uma regulamentação faz com que cada um escreva o crioulo à sua maneira e o mesmo vocábulo apareça com diferentes grafias. Este é também apontado como um freio ao desenvolvimento da literatura em língua guineense.

Na verdade, a elaboração de materiais didáticos para a introdução do crioulo na educação formal e não formal teve início já há alguns anos. Scantamburlo (1981) publicou a primeira gramática do crioulo guineense com finalidades pedagógicas. A gramática contém uma exposição gramatical, textos e glossário. Scantamburlo notabilizou-se não só por este trabalho, mas por uma série de outras publicações sobre o crioulo guineense, tendo trazido a público aspetos relevantes do crioulo guineense,

percorrendo toda a estrutura da palavra e da frase. Trata-se de uma descrição bilingue (em Português e em Inglês) da gramática do crioulo guineense e traz a lume vários aspetos deste crioulo, tais como os idiofones (adjunto de intensidade), questões do alfabeto e da grafia do crioulo guineense.

Em 1999, o mesmo autor publicou o primeiro volume da sua obra, Dicionário do

Guineense, onde descreve a gramática do guineense e, em 2002, saiu o segundo volume,

desta vez apenas dicionário, mas desenvolvendo alguns dos conceitos propostos em 1999, nas notas introdutórias, tendo acrescentado notas ortográficas e convenções de escrita. Este autor promove projetos do ensino bilingue em crioulo e português.

Em 1981, o Padre Biasute publicou o dicionário Vocabulari Kriol – Portuguis, sobre o crioulo guineense, com mais de quinze mil entradas, resultado de cerca de 20 anos de vida na Guiné. Tratou-se do primeiro dicionário conhecido sobre o crioulo guineense.

Em 1988, surgiu o primeiro curso de crioulo guineense, escrito em francês, por Donneux e Rougê. O manual contem textos de leitura, notas gramaticais e culturais, diálogos e algumas explicações em francês. São vinte lições que os autores entendem não serem suficientes para se poder ganhar um bom domínio do crioulo. Mas o mérito da obra deve-se ao fato de esta ser uma boa fonte de iniciação aos estudos do crioulo guineense.

Pinto Bull, guineense de nacionalidade e falante vivo do crioulo guineense, viveu durante um longo tempo no Senegal, depois em Portugal. Em o Crioulo da Guiné

– Bissau: Filosofia e Sabedoria (1989), discute a história da língua e do povo, a

importância do crioulo e do seu contexto. Dedica algumas páginas aos provérbios, alcunhas e formulas invocatórias, adivinhas, contos e um glossário trilingue (crioulo, português e francês) com mais de 2500 entradas. É uma abordagem mais filológico – literária do que linguística propriamente dita.

O livro do fonólogo guineense (Couto, 1994) é particularmente relevante no que toca à história, fonologia e outros aspetos da estrutura do crioulo guineense. Aborda a história do povo e da língua da Guiné-Bissau, aspetos da situação sociolinguística, o percurso histórico dos estudos sobre o crioulo, a questão do ensino da língua e a fonologia. Estabelece um quadro dos fonemas vocálicos e consonânticos do guineense e analisa a sua morfologia. É o primeiro a insurgir-se contra o “eurocentrismo” (Couto, 1994:83) de algumas análises anteriores da morfologia do crioulo, por forçarem as

palavras desta língua a entrar no colete de forças das categorias como substantivo, verbo etc. Trata os mesmos temas, mas de uma forma meramente tipológica e classificatória.

Nos dias de hoje, a discussão continua girando em torno do mesmo assunto. A nível das autoridades governamentais, a opção pela língua portuguesa continua, sendo preferida inclusive a outras línguas europeias possíveis, como o francês (Lopes, 1988: 241-243; Couto, 1990: 53-54). A questão do uso do crioulo como ponte para se atravessar o largo oceano que separa a cultura africana – línguas étnicas – da europeia (português) continua em curso, mas apenas só a nível de discussão.

Apesar de oficialmente proibido, os professores têm que fazer o uso do crioulo nos primeiros anos, oralmente, uma vez que se falam em português não serão entendidos pelas crianças. Nesse caso, como poderiam alfabetizar? Assim, se nos primeiros anos os professores dessem aulas em crioulo para alfabetizar em português, os problemas seriam bem menores. Além dos professores dominarem o crioulo como língua materna, já existe uma incipiente literatura em geral fábulas recolhidas da oralidade. Dentre as poucas coletâneas existentes contam-se as da autoria de Giusti (1981), Montenegro / Morais (1979) e Bull (1989). Todos os contos estão escritos em crioulo tradicional (Couto, 1989 e 1990). Além disso, temos os textos bíblicos produzidos pelos missionários, tanto católicos quanto protestantes, e as fábulas publicadas pela Editora Nimba em banda desenhada.

Em 1984, foi levada a cabo uma campanha de alfabetização por um grupo de jovens dinamarqueses na região de Tombali. Ela falhou “pelas mesmas razões: a insistência do português como língua de ensino” (Achinger, 1986:16). Em síntese, é muito difícil alfabetizarem-se crianças numa língua, que não é a sua língua materna; não obstante, é o que continua sendo feito e as consequências são desastrosas em termos educativos.

Em outubro de 1989, pela enésima vez o ministro da educação “anunciava a intenção do crioulo vir a ser introduzida nas escolas primárias, concretamente nos dois ou três primeiros anos de escolaridade” (Quadé, 1990: 8).

Em setembro de 1990, realizou-se uma mesa-redonda no INDE (Instituto Nacional para o Desenvolvimento da Educação) para avaliar o desempenho das escolas rurais e debater também a questão do insucesso escolar.

É claro que o objetivo não é o mesmo da época colonial, durante a qual “a finalidade era desafricanizar” (Macedo, 1978: 9), o objetivo que se tem agora é “o das

relações funcionais com o mundo exterior” (Quadé, 1990:8), ou seja, usa-se o português por ser a língua que facilita as relações com o resto do mundo.

Somente um em cada 5.000 alunos transita da primeira à décima primeira classe sem nenhuma repetição. No nível elementar, apenas um em 400 chega ao sexto ano com sucesso. E 41%dos alunos inscritos na primeira classe não são admitidos na segunda. Isso tudo, levando-se em consideração que apenas 40% das crianças guineenses se matriculam em alguma escola. Portanto, não é de admirar que a taxa de analfabetismo seja de 86%.