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ELEMENTOS EXTERIORES AO AUTOR

3.2. A questão do gênero notícia

A discussão a respeito de qual venha a ser o conceito de gênero – no que concerne a sua constituição, caracterização e, principalmente, sua relação com a práxis social que o rodeia – está longe de ser encerrada. Dentro de um universo de uso da linguagem tão multiforme, como mesmo comenta Bakhtin (1953), quanto o das diversas atividades desenvolvidas pelo homem, não seria de todo surpreendente concluir que os

gêneros são de difícil definição (do ponto de vista lingüístico), caracterizando-se mais facilmente até como fatos sociais, dada a sua prática e o seu reconhecimento, do que propriamente como fatos lingüísticos.

Algumas certezas, porém, são partilhadas e, talvez nesse sentido (em que colocamos neste presente trabalho, do social versus lingüístico), a mais universal delas seja a de que os gêneros funcionam como as gramáticas sócio-discursivas de cada povo. Bakhtin direcionava seu pensamento em relação a essa questão menos para uma tentativa de classificação e mais para o fato de perceber que os enunciados refletem condições e finalidades específicas de cada campo, não só por seu tema ou estilo, mas, sobretudo, pela sua construção composicional.

Ainda no campo de partilhamento, deve-se observar que a experiência humana é naturalmente rodeada de expectativas e surpresas, mesmo estando situada numa gama de possibilidades de variação restrita, formada em sua grande maioria pelas certezas concretas de vivência. Situados dentro de um grupo no qual estão dispostos vários momentos incertos, os gêneros surgem como práticas rotineiras, como pontos seguros e previsíveis num conjunto imenso de imprevisibilidades. São reconhecíveis e reconhecidos, após um processo de didatização por aqueles com os quais entra em contato.

Isso, porém, é colocado apenas em tese. Atestar e reconhecer a sua rotina não quer dizer que essas práticas não se transformem, evoluam e variem com o passar do tempo. Ao contrário do que se pensa, os gêneros não são estanques. Daí talvez se explique o fato de que – com base no que foi pensado por Bakhtin – se conceitue os gêneros como grupos de enunciados relativamente estáveis22 em relação às práticas sociais. Em busca dessa estabilidade relativa que seria o ponto de sustentação para a identificação de um gênero, ou seja, o seu reconhecimento como tal, a questão da recorrência torna-se fundamental, obviamente por conferir uma certa estabilidade ao enunciado, de forma que o outro o reconheça. Não o classifique, mas o reconheça diante de tantos outros.

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A classificação dos gêneros, que durante algum tempo foi a preocupação central das mentes que se ocupavam desse tema, perdeu força nas últimas décadas. A explicação caminha mais na simples constatação de que, diante de alguns gêneros, é melhor saber o que fazer com eles, ou seja, compreendê-los, do que saber como produzi-los, o que certamente necessitaria de uma didatização mais aprofundada, complexa e nem sempre eficaz no sentido de cobrir todas as nuances que giram em torno da elaboração de um gênero. Hoje em dia, não é uma preocupação central organizar e construir uma tipologia de classificação de gêneros e o motivo é óbvio: dada a incrível dinâmica dos tempos atuais, todos os dias surgem novos gêneros, logo, um sempre escapa a qualquer tentativa de classificação.

As discussões a respeito do gênero são mais antigas do que se possa imaginar numa primeira abordagem. Desde que Aristóteles (primeiro pensador que se tem notícia de que se debruçou sobre o tema) começou a pensar o gênero – que, certamente, não foi denominado por ele dessa forma – fazendo observações em duas grandes obras que chegaram até os dias de hoje, mais especialmente A arte retórica e A arte poética, que a grande maioria dos estudiosos das atividades que envolvem língua e comunicação dedicam-se a pensar os problemas do gênero.

Para o pensador grego, assim como para os demais de sua época, a reflexão sobre o gênero partia dos propósitos que se queria atingir. A capacidade de argumentação figurava como perspectiva e objetivo central desses estudos, e era vista como elemento capaz de nortear a condução e a organização dos gêneros de discurso [que, segundo o próprio Aristóteles, como afirma Bonini (2003), eram três: o judiciário, pautado na idéia do justo; o deliberativo, pautado na idéia do útil; e o demonstrativo, pautado na idéia do belo ou honorífico]. Em poucas palavras, o formato do texto era composto em função da sua argumentação.

Foi preciso mais de dois mil anos para que outra abordagem de estudo da identidade dos gêneros se fizesse relevante para se pensar o assunto novamente, no caso, o estudo proposto pelo teórico russo Mikhail Bakhtin. Ao definir o problema, Bakhtin (2002) apresenta dois diferentes gêneros discursivos: os primários e os

secundários. Ao mesmo tempo, discute a heterogeneidade dos gêneros de discurso23 (no que diz respeito a sua riqueza e diversidade infinitas), devido, segundo ele, às “inesgotáveis possibilidades da multiforme atividade humana”. O autor percorre campos distintos na sua rápida tentativa de exemplificação, desde as breves réplicas de um diálogo até as variadas formas de manifestações científicas e todos os gêneros literários, passando pelo relato do dia-a-dia, a carta, os comandos militares, os documentos oficiais e o diversificado universo das manifestações publicísticas.

Justamente por conta dessa extrema heterogeneidade dos gêneros discursivos, Bakhtin aponta para a dificuldade de definir a natureza geral do enunciado. Nesse ínterim, ele distingue os gêneros primários, aos quais chama de simples, dos secundários, nomeados também como complexos. É importante lembrar que Bakhtin, em sua separação de gêneros, não a trata com uma diferença de caráter funcional.

Para ele, os gêneros complexos, assim como romances, dramas, pesquisas científicas e os grandes gêneros publicísticos, surgem de um convívio cultural mais elaborado e relativamente desenvolvido e organizado. Já os gêneros simples se formaram nas condições de comunicação discursiva imediata e servem de base para a incorporação e formação dos gêneros secundários, sendo, em muitos dos casos, inclusive, reelaborados, adquirindo um caráter especial ao perderem o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais alheios.

Depois de Bakhtin, muitos contribuíram para o aprofundamento do pensar sobre os gêneros de maneira que, hoje, temos de certa forma claras algumas linhas de estudo. Numa primeira abordagem para a tentativa de organização de todo esse pensamento, nos apoiamos no trabalho de Marcuschi (2004), segundo o qual veríamos três campos distintos de estudo dos gêneros textuais: dos autores que desenvolveram tipologias e analisaram tipos textuais; dos que desenvolveram análises de gêneros e se dedicaram à análise de gêneros textuais; e, por fim, aqueles que refletiram a respeito dos tipos e dos gêneros numa correlação entre ambos.

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Na primeira parte do adendo do livro Estética da criação verbal, de 1953, intitulada Os gêneros do discurso, Mikhail Bakhtin chama de gêneros do discurso os “tipos relativamente estáveis de enunciados” elaborados nos diversos campos de utilização da língua, lembrando, é claro, que, dentro destes, cada enunciado particular é individual.

Estendendo o pensamento para a contribuição dada por Brandão (apud Marcuschi, 2004), temos uma sistematização de proposta de análise em cinco tipos de classificações, a saber: tipologias funcionais (baseadas nas funções do discurso, como por exemplo, os trabalhos de Karl Bühler e Roman Jakobson); tipologias enunciativas (baseadas nas condições de enunciação e organização discursiva, assim como em Émile Benveniste e, em parte, Jean-Paul Bronckart); tipologias cognitivas (baseadas em aspectos da organização cognitiva, a saber, Teun Van Dijk e Jean-Michel Adam); tipologias sócio-interacionistas (baseadas na visão sócio-interativa de linguagem) e tipologia baseada no contínuo lingüístico (que situa os gêneros no contínuo da relação fala-escrita, como por exemplo, Luiz Antônio Marcuschi).

Se estendêssemos ainda mais os tipos de organização de estudo dos gêneros distribuídos por interesses globais ou teorias específicas, como sugere Marcuschi em seu estudo, alargaríamos ainda mais nosso trabalho e o aprofundaríamos não em direção do nosso propósito, mas numa vertente que serviria para pensar de forma mais crítica a configuração do construto teórico que hoje se encontra disponível para o estudo dos gêneros e suas reflexões mais conhecidas. Nosso objetivo aqui é apenas entender as principais problemáticas e perceber como os estudos relativos aos gêneros textuais estão divididos atualmente.