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A racionalidade situada, um parâmetro contextual para a tomada de decisão;

Capítulo 3 O território Vale dos Vinhedos

3.2 A racionalidade situada, um parâmetro contextual para a tomada de decisão;

John Stuart Mill afirmou ser a economia uma ciência autônoma que utiliza métodos dedutivos baseados num postulado psicológico básico: os indivíduos, ao tomarem suas escolhas, sempre irão preferir uma quantidade maior de riqueza a uma menor. Abramovay (2004), conclui que esse princípio, não necessariamente realista, além de possuir a vantagem de ser “bastante

operacional42”, ainda foi suficiente para “fundar a economia como uma ciência autônoma”, fechada em si mesma. Uma ciência pura.

A ortodoxia econômica e sua teoria do consumidor se apóiam, portanto, nessa simplificação da racionalidade humana, ou seja, elegem um modelo comportamental específico como sendo o único43. E com isso, fazem emergir a figura do homo economicus, um ser essencialmente movido pela ação estratégica, leia-se, pela frieza dos cálculos de maximização de utilidade.

De acordo com Abramovay (2004), na Teoria dos Sentimentos Morais, Adam Smith constrói um aparato moral específico ao funcionamento da economia e transforma o egoísmo num atributo eticamente aceitável. A economia tem a particularidade de permitir ao egoísmo transformar-se de vício em virtude.

Assim, a racionalidade ilimitada dos agentes surge como um pressuposto necessário à confecção do arcabouço teórico da economia convencional. Já que, pressupor um ser capaz de realizar todos os cálculos de maximização de utilidades – sem custo, através da comparação de cestas de bens perfeitamente transitivas entre si – é essencial para a modelagem tradicional da teoria econômica neoclássica faça sentido. Do contrário, a base microeconômica da teoria do consumidor (marginalista) entraria, muito provavelmente, em contradição com a lógica em que se fundamenta, ou seja, aquela que foi importada da física e da matemática. Com ela, a economia se tornou uma ciência autônoma, lógica em si mesma.

Entretanto, para muitos autores, dentre os quais Zaoual (2006, p. 25), “uma construção abstrata e coerente, em si mesma, não constitui uma garantia de verdade diante da exuberância do mundo factual”. Já para José Reis (2007, p. 30), o campo da economia pura:

É um terreno solidamente murado pelo pressuposto de que os indivíduos dispõem de um modelo comportamental assente na escolha racional, atribuindo- se ao atores (sociais, políticos e econômicos) plena capacidade para lidar com objetos clara e objetivamente descritos.

Contudo, o referido autor refuta essa idéia de pureza da ciência econômica, ao alegar que para a maioria dos problemas econômicos com os quais nos defrontamos o “mundo encantado”

42 Operacional no sentido de ajustar-se aos modelos matemáticos que se desenvolveram com a intenção de explicar o

comportamento humano.

da racionalidade ilimitada não possui validade. Ou seja, os atores possuem, sim, mapas cognitivos que fornecem modelos de mundo, mas não há garantias de que esses modelos estejam refletindo o mundo como, de fato, ele é. A vida secular – como afirmava Veblen – é feita de atores que processam informações de diversas maneiras. Por isso, os modelos subjetivos são diferenciados, porventura divergentes, e não há garantias de que venham a convergir.

Para Reis (2007), a economia é impura, pois se trata de um campo aberto, não fechado em si mesmo. É um ramo do conhecimento que dialoga com vários outros territórios das ciências sociais. É uma ciência que lida com problemas plurais que envolvem múltiplas visões e múltiplas formas de solução. Nesse terreno impuro em que a economia assenta, a racionalidade é limitada e a informação imperfeita, pois a capacidade de processamento da informação por parte da mente humana é limitada. Conforme procurou demonstrar Simon (1982, apud REIS 2007, p. 30).

Segundo Weber (1989), o erro dos economistas que acreditam na visão convencional da economia, encontra-se no fato de que o comportamento racional, no sentido que lhe é dado pela ortodoxia econômica, é uma variável e não um pressuposto. A partir daí, Weber (ibid.) difere a racionalidade formal da racionalidade substantiva.

Assim, Weber (1989) acreditava que a ação econômica seria motivada primeiramente pelo interesse individual, contudo estaria voltada para o comportamento dos outros. A ação racional define-se em linhas gerais como a ação voltada para interesses. Contudo, esses interesses podem ser de dois tipos, material ou ideal. Sendo assim, teríamos dois tipos distintos de racionalidade econômica na análise weberiana: a instrumental (ligada aos interesses materiais) e a racionalidade substantiva (ligada aos interesses ideais). Os interesses ideais, por sua vez, estão ligados aos valores dos indivíduos, que lhes são passados pela educação44 e que, portanto, são fatos sociais.

Daí que as questões relacionadas à ética e a economia são encaradas por Weber (ibid.) por um ângulo diferente daquele que caracteriza a teoria econômica convencional:

Enquanto que a economia do bem-estar às vezes procura tirar conclusões éticas diretamente dos exercícios econômicos formais (como, digamos, no caso do conceito de ótimo de Pareto), Weber toma uma direção completamente diferente ao afirmar que a ação orientada pelo valor pode não ser tão racional quanto o

raciocínio econômico formal. (SWEDEBERG, 2005, p.62).

44 Neste caso nos referimos à educação num sentido amplo, como por exemplo, aquela que é passada pela família. E

Swedberg (ibid.) ainda afirma que:

Vale muito a pena considerar ambas as perspectivas, mas enquanto o ótimo de Pareto e as abordagens semelhantes já foram exaustivamente discutidas, ninguém procurou explorar seriamente as idéias de Weber sobre a racionalidade substantiva para ver onde elas podem chegar.

Swedberg (2005), afirma que, para a sociologia econômica contemporânea, a racionalidade perfeita dos agentes não seria um ponto de partida adequado porque apresenta pressupostos irreais. Nas suas palavras: “A análise da escolha racional está construída sobre pressupostos irreais: os agentes são, por exemplo, isolados uns dos outros e têm informações perfeitas. A estrutura social precisa ser introduzida na análise econômica”.(SWEDBERG, 2005, p. 290).

Por isso:

[...] o que Weber fez foi uma tentativa interessante de desenvolver, na sociologia, uma série de categorias a partir da perspectiva do comportamento voltado para o outro: luta, convenção, troca, organização e assim por diante.(SWEDBERG, 2005, p.286).

Dessa forma, a ação humana com base no egoísmo pode excluir uma série de ordenamentos sociais, orientados por máximas não necessariamente maximizadoras de lucros. Além do mais, como afirma Swedberg (2005, p.292, grifo nosso), é plausível que “os agentes tentem satisfazer seus interesses, ou, para ser mais preciso o que eles entendem que são seus interesses”.

Essa afirmação nos revela uma característica importante: os homens não são seres a- sociais. São atores com mapas cognitivos moldados, principalmente, pelas experiências que acumulam ao longo da história. Portanto, nossas escolhas não são tão livres o quanto acreditamos ou, o quanto gostaríamos que fossem. Pois, aquilo que guardamos como valores e que nos servem para avaliar cada situação nos foi dado pela experiência que acumulamos. Assim, nossas escolhas sofrem a influência dos contextos e das diversas situações que experimentamos ao longo de nossa existência. Estas, por sua vez, moldam nossa forma de enxergar o mundo. Isto é, nos fornecem os significados com os quais avaliamos cada evento e, assim, se constituem em nossas concepções de controle. Nossas “formas de ver o mundo”, nas palavras de Fligstein (2003).

A partir daí, é possível entender a figura do homo situs, um ser que possui sua racionalidade vinculada ao ambiente em que se encontra, ou mais especificamente, a situação em que vive. Homo situs, é definido por Zaoual (2006, p. 50) como sendo “ um homem concreto que combina vários imperativos ao mesmo tempo. Devido ao peso do sítio sobre seu comportamento, o homo situs tem ética, identidade e racionalidade que ele constrói in situ. Ademais, o homo situs propõe uma alternativa mais realista para a análise de estratégias de desenvolvimento, em relação aquela, já bastante conhecida, representada pela figura do homo oeconomicus e consagrada pela teoria econômica convencional. Isso se deve ao fato de que, “nos campos de atuação, as pessoas da base combinam vários imperativos na conduta de seus negócios cotidianos”. (ZAOUAL, 2006, p. 50).

Justamente por isso Zaoual (2006, p.46) afirma que: “a racionalidade não estaria unicamente limitada a uma adequação puramente técnica entre meios e fins, mas leva em conta também a natureza moral e social”. Nesse sentido, regras, códigos de conduta e normas comportamentais definem a coerência entre o comportamento e os valores locais, ou seja, entre as ações individuais e o que é tido como normal pelo grupo no qual esse se insere.

Segundo o referido autor:

Ser racional consiste em usar adequadamente os costumes do sítio dentro dos limites possíveis. Isso coloca, freqüentemente, o ator em uma situação de dilemas por causa dos múltiplos imperativos aos quais ele deve responder. Em situação, trata-se de agir de modo razoável, combinando objetivos que podem ser contraditórios – por exemplo, o interesse individual e as exigências comunitárias de solidariedade. Para a pessoa, um egoísmo excessivo pode tornar-se irracional, no sentido da racionalidade econômica, se esse comportamento a afastar das externalidades positivas do grupo. (ZAOUAL, 2006, P. 46).

Com isto, temos que a racionalidade econômica, ou posto de outra forma, a racionalidade do homo economicus, pode aparecer desvinculada do egoísmo, pois, dada uma determinada situação, este traria prejuízos econômicos ao ator. Que tipo de situações poderíamos enquadrar nesta realidade? Exatamente aquelas em que a existência de uma proximidade entre os atores aparece de forma economicamente relevante, como as que costumam aparecer em contextos territoriais específicos, dotados de uma herança de reciprocidade. Pois, dado que se trata de um

jogo de rodadas repetitivas, não aderir a uma convenção social implica justamente na exclusão imediata das externalidades positivas que dela advém.

A proximidade das interações, ou seja, o contato face a face, proporciona não apenas a averiguação rápida de qualquer desvio de conduta que prejudique a ordem socioeconômica estabelecida, mas o faz sem grandes custos, na medida em que os mecanismos de averiguação são nada mais do que os contatos do cotidiano. Não obstante, esse ordenamento socioeconômico, na maioria das vezes é o resultado prático daquilo que se convencionou ao longo da história do lugar – sítio – sendo fruto, portanto, de um histórico de inter-relações pessoais que se estende ao longo do tempo e que costuma reproduzir aquelas atitudes que deram certo. A cooperação costuma estar entre elas.

Quando falamos, portanto, do território do Vale dos Vinhedos, nos referimos a um universo de aproximadamente 400 famílias, que convivem sobre uma base geográfica de 81.123 km², desde a sua colonização, ou seja, basicamente desde o ano de 1875. Dessa forma, é plausível reconhecer no histórico de inter-relações pessoais deste lugar uma forma de construir uma racionalidade situada, tal qual enfatizada por Zaoual (2006).

A construção do território do Vale dos Vinhedos foi concretizada com base na cooperação e na reciprocidade, pois essa foi a maneira que os colonos italianos encontraram para construírem suas vidas em meio ao ambiente selvagem e hostil a que se depararam quando lá chegaram. A construção de estradas, escolas, postos de saúde, etc. se deu com base na conjunção de esforços da comunidade. Essa cooperação, de certa forma, persistiu no tempo, virando uma instituição local, fortemente ativa nas decisões daquela comunidade, e na sua forma de organização.

De acordo com Abramovay (1998), a racionalidade do homem do campo é incompleta, pois ele se norteia por um conjunto de vínculos sociais dados pela tradição, pela comunidade, e que se traduzem em regras não redutíveis a elementos puramente econômicos.

Por isso, Zaoual (2006, p. 47), afirma que os atores, racionais in situ, procuram manter uma certa reputação, não apenas moral, mas social e economicamente necessária, pois o homem que vive em sociedade, faz acordo com seus semelhantes, e daí emerge tanto a necessidade dos procedimentos de coordenação, quanto a figura do já mencionado homo situs.

Dessa forma, em um modelo de racionalidade para além daquele consagrado pela ortodoxia econômica, há espaço para ações com base não apenas no egoísmo e na maximização

de lucros. In situ, os indivíduos podem preferir tomar uma atitude recíproca, mesmo que isso não lhes traga uma maximização de utilidade marginal. Com base nos valores da comunidade em que se insere, ou seja, com base nos valores do sítio, os atores podem adotar um comportamento cooperativo, ao invés de egoísta, pois, por não estarem muitas vezes atomizados, os indivíduos tomam suas decisões sob a influência do ambiente onde assentam suas vidas. E quando este ambiente impele à cooperação e a reciprocidade das ações, é passível de surgirem atributos sociais, ou instituições, tais quais o capital social.