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Capítulo 4 O espaço rural do Vale dos Vinhedos: uma realidade

4.2 Vale dos Vinhedos: Um território da agricultura familiar no Brasil

Territórios como o Vale dos Vinhedos, onde a agricultura familiar reforçou as relações de vizinhança e, com isso, contribuiu para a formação de um bom estoque de capital social, despontam como exemplos de que um modelo de política rural, que deixe de privilegiar unicamente a agricultura patronal, para também incentivar a agricultura familiar, é capaz de gerar uma força sinérgica ao desenvolvimento econômico nas regiões rurais.

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD – o Índice de Desenvolvimento Humano dos três municípios que compõem o Vale dos Vinhedos estão acima de 0,82. O que significa que estamos a falar de uma região que, além de ter sua base fundiária assentada sobre a agricultura familiar, possui um nível de desenvolvimento humano considerado alto59, segundo os parâmetros estabelecidos por aquela instituição. Além disso, tanto em Bento Gonçalves, como em Monte de Belo do Sul e Garibaldi, o IDH subiu entre 1991 e 2000, ao ponto destes três municípios deixarem de ser considerados de médio IDH para integrar o conjunto dos municípios com IDH alto.

Cabe lembrar que a partir de meados da década de 1990 as regiões caracterizadas pela presença da agricultura familiar puderam se beneficiar dos incentivos oriundos do PRONAF para auxiliar em seus projetos de desenvolvimento local.

De acordo com o presidente do IBRAVIN, em entrevista, o PRONAF proporcionou a modernização de muitas unidades produtivas na região serrana do Rio Grande do Sul, e auxiliou no aumento do quociente de práticas mecanizadas em muitos vinhedos da região. O que contribuiu para aumentar a produtividade e, portanto, a quantidade de uva ofertada. Entretanto, esse aumento na oferta acaba por exercer uma pressão negativa não apenas sobre o preço da uva, mas também sobre a rentabilidade das unidades produtivas especializadas na produção vitícola.

59 O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mede o nível de desenvolvimento humano dos países utilizando

como critérios indicadores de educação (alfabetização e taxa de matrícula), longevidade (esperança de vida ao nascer) e renda (PIB per capita). O índice varia de zero (nenhum desenvolvimento humano) a um (desenvolvimento humano total). Países, Estados ou Municípios com IDH até 0,499 têm desenvolvimento humano considerado baixo, com índices entre 0,500 e 0,799 são considerados de médio desenvolvimento humano e com IDH superior a 0,800 têm desenvolvimento humano considerado alto (Flores, 2007, p.121).

Trata-se, portanto, da confirmação da afirmação de Kautsky (1980) de que, ao fundir-se ao mundo da mercadoria, o agricultor vê aquilo que lhe era uma benção, uma boa colheita, transformar-se em um mal. O que antes lhe dava fartura e felicidade passa então a lhe trazer sérias dificuldades, por incorrer em um obstáculo a remuneração de seu trabalho.

Nesse sentido, o elevado grau de especialização das unidades produtivas locais, faz com que a renda da maioria dos trabalhadores rurais do Vale dos Vinhedos esteja sobremaneira determinada pela produção vitícola. Logo, também pela cotação do preço da uva, intimamente ligada à necessidade de matéria-prima por parte das vinícolas locais.

Assim, se levarmos em consideração que, pelo menos, as principais vinícolas possuem vinhedos próprios, podemos considerar que a posição dos agricultores que atuam apenas como fornecedores de matéria-prima para as cantinas, tem se tornado cada vez menos confortável.

De acordo com as entrevistas realizadas ficou, em grande medida, sugerido que a rentabilidade média das unidades produtivas dos agricultores que se dedicam exclusivamente ao plantio da uva, a ser entregue nas vinícolas, encontra-se num movimento de declínio. Especialmente para aquelas que não efetuaram a modernização de seus vinhedos.

De acordo com testemunho dado em entrevista por um técnico da EMATER/RS, os cantineiros do Vale dos Vinhedos possuem poucos fornecedores de uvas, sendo que a regra é que toda cantina possua seu vinhedo próprio. As entrevistas realizadas para a confecção deste trabalho coadunam com esta afirmação, uma vez que 100% dos cantineiros entrevistados confirmaram que, a priori, produzem seus vinhos com uvas oriundas de seus próprios vinhedos. Embora vinifiquem, uma pequena parte, de uvas de agricultores locais, a preferência é sempre da matéria-prima que provém dos vinhedos “da casa”.

Dessa forma, a produção de vinhos finos se torna verticalizada, uma vez que no interior de uma mesma unidade produtiva se articulam a produção da uva e a produção do vinho. Portanto, a agroindústria da vitivinicultura se caracteriza pela integração vertical, na qual a produção da matéria-prima, a uva, está fisicamente ligada à produção do vinho.

Entretanto, esta é uma característica que tem relação direta com a codificação do produto vinho. Pois, uma vez que se tenha definido legalmente o vinho como o produto da fermentação

da uva, fresca, madura e sã60, exclui-se a possibilidade de obter essa bebida a partir da

fermentação de uvas passas.

De qualquer forma, parece que a tendência histórica de disputa pelo poder na indústria vitivinícola, e que vem desde a formação das cantinas a uma centena de anos atrás, passando pelas ações do antigo “Sindicato do Vinho”, continuam a se manifestar no território do Vale dos Vinhedos, bem como em toda a microrregião MR-016/RS. A disputa entre viticultor e vinicultor é, portanto, uma marca típica do complexo agroindustrial da uva e do vinho. E as informações que nos foram passadas por dirigentes de entidades que atuam no ordenamento do setor como a APROVALE, o IBRAVIN e a UVIBRA, confirmaram essa realidade. Assim como aquelas que buscamos junto aos produtores de vinho, mas principalmente de uva.

Entretanto, alguns agricultores parecem não estar em total desalinho com os vinicultores, e trabalham inclusive através de parcerias estipuladas com as cantinas, as quais lhes fornecem técnicos para acompanhar a produção das uvas61. De nossas entrevistas, pudemos constatar que aqueles agricultores que se disseram associados das vinícolas, a situação parece estar um tanto mais confortável, pois apesar de exigirem uma produção mais qualificada e, portanto, mais cara, as vinícolas costumam recompensar por essa qualificação, ao pagarem preços mais altos pelo quilo da uva.

É fundamentalmente na época da safra, ou seja, quando se estipula o preço mínimo a ser pago pelo quilo da uva, que se acirra a disputa entre os produtores de uva e os cantineiros. Sendo que, os argumentos são quase sempre os mesmos: do lado do viticultor a quebra de safra e os altos custos de produção da uva, enquanto que pelo lado do vinicultor/vitivinicultor a alta dos estoques das cantinas.

E assim, segundo o conselheiro da APROVALE, Jaime Milan (informação verbal), sempre há pontos de atrito entre o agricultor e o produtor industrial, principalmente quando há grandes desequilíbrios entre a oferta e a demanda da uva. No inicio de 2008, por exemplo, havia certa dificuldade em se atingir o equilíbrio entre ambas em função do excesso de oferta de uvas

60 A Lei 7678 de 08/11/88 - Lei do Vinho - Dispõe sobre produção, circulação e comercialização do vinho e

derivados da uva e do vinho.

61 Em alguns casos, depois de tratadas, as sobras da matéria-prima fornecida pelos agricultores lhes são devolvidas

pela vinícola para que sejam utilizadas como adubo. O que também reflete certa preocupação com a manutenção do ambiente.

viníferas. O que resultou em muitas destas sendo encaminhadas para a produção de vinhos de mesa ou mesmo sucos de uva. Principalmente aquelas que apresentavam qualidade inferior.

Nesse sentido, levantam-se argumentos de ambos os lados. O empresário industrial tende a dar preferência às uvas que apresentarem a melhor qualificação, sempre com vistas a não comprometer a qualidade de seu vinho e, então, aquele agricultor que não procurou dar um passo na direção de produzir uma uva de melhor qualidade vai encontrar mais dificuldade em realizar a sua produção. O agricultor, por sua vez, argumenta que necessita de investimentos caros para efetuar a reconversão de seus vinhedos, e que isso não dá a certeza da colocação da matéria- prima. São argumentos históricos do setor vitivinícola e que, segundo Jaime Milan, conselheiro da APROVALE (INFORMAÇÃO VERBAL), se encontram em todos os lugares onde se produzam vinhos.

Outra forma perante a qual buscamos entender um pouco mais sobre a morfologia do poder no território do Vale dos Vinhedos repousou sobre a averiguação de possíveis desavenças entre grandes e pequenas vinícolas, especialmente em torno da constituição da Denominação de Origem do Vale dos Vinhedos. Ou seja, a passagem da atual Indicação de Procedência para um estágio mais avançado no âmbito das indicações geográficas poderia estar sendo motivo de conflito entre grandes e pequenos produtores de vinho.

De tal forma que, para os grandes, a Denominação de Origem não representaria uma clara vantagem, pois implicaria na restrição da produção e em um número menor de garrafas certificadas, ao passo que para as pequenas a notoriedade que esse selo traria seria de fundamental importância, uma vez que suas escalas de produção não são muito grandes. Isto é, para os pequenos agregar mais valor ao seu produto é de fundamental importância, especialmente para aqueles que possuem marcas pouco conhecidas, enquanto que para as grandes, de marca já bastante reconhecida, inclusive no mercado internacional, reduzir o número de certificações não se traduziria em um negócio tão bom.

Entretanto, nossas investigações acerca dessa possível desarmonia de interesses não conseguiram confirmar a hipótese de que as grandes vinícolas estariam, por assim dizer, embargando a Denominação de Origem do Vale dos Vinhedos. Até porque, informações coletadas junto a Embrapa Uva e Vinho, e à própria APROVALE, vieram a confirmar que a Denominação de Origem do Vale dos Vinhedos está em vias de fato para ser posta em execução.