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Algumas implicações da I.P.V.V para os agricultores familiares e demais atores locais

Capítulo 4 O espaço rural do Vale dos Vinhedos: uma realidade

4.3 Algumas implicações da I.P.V.V para os agricultores familiares e demais atores locais

A Indicação de Procedência do Vale dos Vinhedos colocou um conjunto de produtores de vinhos finos da Serra Gaúcha, no (seleto) grupo de produtores mundiais que desfrutam do privilégio de estampar em seus produtos um selo que minimize o grau de incerteza dos consumidores quanto ao padrão de qualidade da bebida que estão se dispondo a consumir.

Entretanto, vista por outro ângulo, percebe-se que a Indicação Geográfica do Vale dos Vinhedos pode ser tomada como uma forma de proteção do mercado, ou seja, como uma medida que se assemelha a uma barreira à entrada para novos concorrentes, no mercado de vinhos finos gaúcho. Portanto, para fazer parte deste grupo é preciso produzir vinho de acordo com a normativa de produção estipulada pela Associação de Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos.

Nesse sentido, faz-se jus a idéia de que os mercados são, antes de tudo, construções sociais, que envolvem disputas entre grupos de interesses e onde age a intencionalidade dos agentes, muito mais do que a mão invisível. É isso que argumentam Reis (2007) e Fligstein (2003).

O fato é que o mercado do vinho é um exemplo sintomático de que os grupos de interesses lutam entre si pelo controle da indústria em que estão inseridos, como afirma Simões (2006). E que, por isso, muitas vezes ocorre o que Graziano da Silva (1999) chamou de privatização do Estado, ou seja, a consubstanciação dos interesses desse ou daquele grupo junto aos aparelhos do Estado.

De qualquer forma, o sucesso relativo que os atores do Vale dos Vinhedos vêm obtendo com a produção baseada na indicação geográfica e vinculada ao enoturismo, comprova o que disse Veiga (2002) quando afirmou que na agricultura a dimensão das propriedades é menos importante do que a organização social que lhe é subjacente. Isto é, o que faz com que o território alcance um projeto de desenvolvimento próprio, é muito menos o fato deste projeto estar baseado na grande ou na pequena propriedade, e muito mais o fato de se os atores locais são capazes de se organizar para levar a cabo um objetivo em comum, de maneira organizada e sinérgica.

Justamente como afirmou Vázquez Barquero (2001) sobre a irrelevância do tamanho das firmas em relação a suas capacidades inovativas e de articulação em torno de redes, para alcançar uma estratégia de desenvolvimento endógeno.

Não há dúvidas de que a comunidade de vinicultores do Vale dos Vinhedos precisou lançar mão de sua capacidade organizativa e de seu histórico de cooperação para pôr em marcha mais uma ação coordenada em prol do desenvolvimento do setor. Em outras palavras, a cooperação faz parte da caixa de ferramentas do lugar. Em momentos de dificuldades, como este por que passa o setor vitivinícola nacional, é possível se valer das ferramentas, que compõem esta caixa, para construir uma solução, e a I.P.V.V. é um exemplo disso.

Vale a pena ressaltar que o território do Vale dos Vinhedos é diferente de muitos territórios brasileiros, cujas condições locais não propiciam um desenvolvimento endógeno espontâneo e, que por isso, requerem políticas públicas, que vem induzindo inclusive, a constituição de espaços de governança. Estes são o caso de territórios constituídos recentemente pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário através de sua política de constituição dos Territórios da Cidadania e Territórios Rurais. (ORTEGA, 2008).

Mesmo assim, por serem agricultores familiares, os atores locais do Vale dos Vinhedos não deixam de enfrentar as mesmas problemáticas, ou melhor, não deixam de apresentar as principais características que identificam a agricultura familiar em muitos outros lugares. Nesse sentido, algumas especificidades que Abramovay (1998) identificou em seus estudos sobre a agricultura familiar nos países centrais são também encontradas entre os agricultores familiares do Vale dos Vinhedos.

Analogamente aos agricultores familiares das nações desenvolvidas, os vitivinicultores do Vale dos Vinhedos também conseguem, em boa medida, incorporar o progresso tecnológico, pois, como também se encontram em uma posição onde a atomização da oferta lhes impulsiona na direção de buscar a inovação como uma forma de atingir melhores resultados do que os concorrentes.

Dessa forma, aqueles agricultores familiares que, conforme já salientamos antes, realizaram a reconversão de seus vinhedos e passaram a produzir uvas de acordo com as determinações de qualidade que a indicação de procedência requer, encontram-se em uma situação mais confortável do que aqueles que continuam a produzir uvas comuns, ou mesmo

variedades viníferas em um sistema de condução mais antigo, e que não proporciona uma uva de tão boa qualidade.

Cabe lembrar, que para aqueles fornecedores de uva que trabalham como associados das grandes cantinas a situação é ainda mais confortável, pois além da assistência técnica constante oferecida pelas vinícolas, o preço recebido pela matéria-prima é também mais elevado, assim como a garantia de colocação da uva. Infelizmente, essa não é uma possibilidade aberta a todos os viticultores locais, mas a um número bastante reduzido destes.

Por essa razão, entre os viticultores entrevistados apareceram referências do tipo: “Os cantineiros deviam só fazer o vinho e deixar que a gente fornecesse a uva”.

Além disso, alguns agricultores fizeram referências negativas com relação às ações diversificantes que algumas vinícolas do Vale dos Vinhedos estão a desenvolver em terras distantes. Pois, segundo eles, as vinícolas deveriam utilizar mais da uva que é produzida no vale, ao invés de “ir plantar lá longe”.

A agricultura familiar na viticultura brasileira, assim como os agricultores familiares dos países centrais, encontra-se em uma posição atomizada e de superinvestimento62. Entretanto, como afirma Abramovay (1998), apesar de sua posição desfavorável frente à indústria vinícola seu grande ganho é a valorização do ativo terra. Nesse sentido, Flores (2007) informa que os agricultores observam no Vale dos Vinhedo o preço de uma gleba de terra, a depender da sua localização, sofreu aumentos de até 500% entre 1999 e 2007.

O processo de valorização fundiária nos países avançados de que fala Abramovay (1998) e o qual tentamos relacionar com o que se verifica no Vale dos Vinhedos nos últimos anos, ocorre, segundo aquele autor, através da seguinte sistemática: Suponha-se que, em um primeiro momento, os agricultores pioneiros na inovação adotam uma que seja de significativa importância para o rebaixamento dos custos de produção. Contudo, os preços dos produtos agrícolas não acompanham essa redução logo de início, pois são ditados pelas condições sociais médias onde tal inovação ainda não havia sido empregada.

Dessa forma, o agricultor inovador consegue reter uma determinada renda extraordinária, ou seja, uma renda acima da média. Entretanto, o período em que essa renda estará sendo

62 Ou seja, em uma posição em que a produção se torna tão excessiva, que a sua renda não será suficiente para

remunerar os custos dos fatores da produção. Em outras palavras, as taxas de retorno do investimento situam-se abaixo de seus custos de oportunidade.

absorvida é breve, pelo fato da inovação difundir-se rapidamente através da estrutura atomizada que caracteriza os agricultores familiares. Mas, mesmo assim, isso não impede que haja retardatários no processo de difusão, que acabarão cedo ou tarde por deixar o mercado através da venda de suas terras, muito provavelmente, para aqueles que foram os pioneiros na inovação e que conseguiram acumular recursos durante o período em que esta inovação ainda não havia sido plenamente difundida.

Ao dar seqüência a sua análise, Abramovay (1998) remete esse raciocínio hipotético a um nível mais alto de complexidade. Aquele em que há a presença do Estado enquanto entidade que dá sustentação aos preços agrícolas, impedindo sua caída para além de determinado patamar. E assim, recoloca a questão de outra forma, em que a renda extraordinária poderia se prolongar por um período de tempo mais longo.

Contudo, o referido autor, ao descrever essa situação descrita por Cochrane (1979, apud ABRAMOVAY, p.214-227), faz intervir um novo elemento: o mercado de terras. Assim, os ganhos elevados dos agricultores inovadores fazem com que estes procurem investir cada vez mais, e isso fatalmente elevará os custos dos fatores da produção, principalmente aqueles de caráter raro como a terra. Além disso, o controle institucional sobre a renda agrícola fará com que esta seja mantida o máximo possível dentro de determinado padrão. Dessa forma, afirma Abramovay (1998) que não apenas os pioneiros na inovação63 possuem a chance de comprar a terra dos retardatários, como também o valor patrimonial desta terra sobe de maneira a compensar relativamente as perdas decorrentes da regulação estatal de preços.

Portanto, o emprego dos fatores de produção a um custo inferior aos seus custos de oportunidade não se explica apenas pela escassez de oportunidades de trabalho fora da agricultura, mas também pela possibilidade de troca da renda presente por uma renda futura, sob a forma de valorização da terra. (ABRAMOVAY, 1998).

Entretanto, esse mecanismo de troca de renda presente por renda futura nos impele quase que instintivamente a realizar um questionamento: O que aconteceria caso a renda presente caísse de forma bastante significativa ao mesmo tempo em que a valorização fundiária sofresse um aumento de igual magnitude, ou ainda mais significativo Nesse caso, não seria de se esperar certa tendência a venda das unidades produtivas por parte dos agricultores menos modernizados

E, em uma perspectiva como esta, não seria cabível de encaixar o desejo de alguns agricultores familiares do Vale dos Vinhedos que, talvez diante do avanço da idade e da falta de interesse dos seus descendentes em permanecer no espaço rural, têm optado pela venda de suas propriedades. O que, por sua vez, tem feito surgir no território uma nova classe de atores, representada por aqueles que buscam a tranquilidade do ambiente rural para construírem sítios de lazer, ou ainda pela penetração de capitais forâneos atraídos por essa valorização fundiária, mas principalmente pelo fluxo turístico que se desenvolve a passadas largas na região.

De acordo com Abramovay (1998), o ganhador neste processo de troca de renda presente em favor de uma renda futura é o conjunto da sociedade. Ou seja, através do controle de preços por parte do Estado e da pulverização da oferta agrícola é possível de se transferir renda dos agricultores para os demais setores da sociedade.

Pode, ainda, a agricultura familiar, como vimos, ser capaz de atuar em sinergia com o progresso tecnológico tanto no campo, como na cidade, e assim dar sua contribuição também para o desenvolvimento econômico. Entretanto, o mecanismo de transferência intersetorial de renda só pode funcionar perfeitamente a partir da intervenção do Estado, que deve atuar como garantidor de uma rentabilidade mínima para a reprodução da família do agricultor, pois do contrário, a estrutura atomizada da oferta pode levá-los a bancarrota. Segundo Abramovay (1998), a dispersão da oferta, via estrutura familiar de produção, garante o caráter competitivo e a intervenção estatal no setor agrícola. Para ele, dispersão da oferta e intervenção estatal são elementos indissociáveis.

Contudo, dado que a agroindústria vitivinícola se relaciona com os agricultores de uma forma constante e direta, ou seja, sem intermediários. É possível de se imaginar que ela consiga absorver quase que exclusivamente para si os benefícios desta transferência intersetorial de renda. O que talvez explique a alta carga tributária que incide sobre a produção vinícola. Diga-se de passagem, que a alta carga tributária emerge com uma das principais reivindicações por parte dos produtores de vinho, que alegam que o peso dos tributos tem comprometido a competitividade dos vinhos brasileiros especialmente contra os argentinos e chilenos. O que, por sua vez, pode estar na raiz do surgimento de uma importante estratégia de diversificação que se iniciou no Vale dos Vinhedos e hoje já é imitada por outros territórios produtores de vinho no Brasil, a saber: o enoturismo.