• Nenhum resultado encontrado

PARTE I: APONTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 1 – ARCABOUÇO TEÓRICO

1.1. A comunicação vista através da Teoria Semiolinguística

1.1.3. A questão da recepção revisitada

1.1.3.2. A recepção como experimento

A recepção como experimento deve ser pontuada, primeiramente, pela desconstrução da visão convencional de “público”. Para tanto, cabe ressaltar o trabalho de revisão de literatura sobre o tema realizado por Esquenazi (2009), o qual evoca os conceitos de “público” por meio dos efeitos supostos dos produtos e de caracterizações sociais de grande amplitude, observando como as comunidades agem e reagem em face deste do daquele produto.

Conforme o referido autor, o conceito de “público” é difícil de manipular na Sociologia, tendo em vista que possui o risco de retratar a análise suprimindo a heterogeneidade da composição. Para tanto, Esquenazi (2009) propõe pensar o “público” como comunidade provisória com diversidade de reações e identidades. Esta concepção implica a necessidade de considerar que a projeção de Tu- destinatários idealizados não significa a formação de um grupo de Tu-interpretantes, na quantidade, amostragem e características tal como pretende a esfera da produção.

Na visão de Esquenazi (2009, p. 81), o público da TV é previsto, mas a formação do grupo em si e seus comportamentos são imprevisíveis. O estudo de “um público” é, para o supracitado autor, extremamente difícil, seja pela imprevisibilidade deste ou da formação heterogênea. Tem-se uma dualidade entre os “públicos imaginados” e os “públicos concretos”. Na ótica charaudeana, tais termos podem ser associados aos sujeitos interpretantes (consumidores de informação em potencial) e sujeitos destinatários (que efetivamente encenam o papel discursivo previsto pela instância emissora).

Diante disso, o experimento da recepção deve ter como premissa de que o ato de receber um enunciado é variável, não homogêneo dentro de um grupo. De modo consoante, o estudo dos públicos midiáticos não pode ser reduzido às projeções dadas pela instância da produção, ou seja, tratar como fixos os sujeitos destinatários e interpretantes.

Três precauções metodológicas no estudo dos públicos são elencadas por Esquenazi (2009, p. 106-109):

a) Não se deve isolar o ato do espectador. Ele não reage somente a um objeto, mas a um conjunto de um contexto que compreende – ao menos – a

produção, a apresentação ou grau de legitimidade desse objeto, assim como os modos de interpretação disponíveis. Neste aspecto, Esquenazi (2009, p. 80) lembra que estudos culturais e teorias feministas têm o mérito de mostrar que os atos de recepção não são acompanhados de um lapso cultural e social e que eles são muito dependentes de parâmetros que escapam à recepção.

b) A experiência de uma comunidade de público não deve ser generalizada. O ato de recepção deve ser visto como atividade individual em um espaço discursivo aberto e multifacetado.

c) A recepção é uma atividade de construção de sentidos imersa em uma esfera social. O sujeito associa valores diferentes de acordo com o programa ou produto televisivo, o que leva à necessidade de se analisar a recepção midiática por meio da articulação com elementos sociohistóricos e culturais.

O investigação da recepção como experimento deve ser concebida a partir das noções de construção e co-construção de sentidos, as quais, para Ghiglione ([1993] 2013, p. 257), estão vinculadas ao princípio do dialogismo: a relação do leitor com o texto é interlocutiva e toda produção/recepção de mensagem é co-produção de sentido. Para Ghiglione, o enunciador inclui – em seu dizer – representações sobre o outro e a situação: o enunciador é, parcialmente, enunciatário e, correlativamente, o enunciatário é, parcialmente, o enunciador.

Esse modo de entender a recepção, afirma Ghiglione, modifica substancialmente os métodos e experimentos no campo da recepção. O autor propõe a experiência: disponibilizar aos sujeitos receptores o contato com duas edições de telejornais diferentes sobre o mesmo assunto, assim como um artigo de um jornal. Após a visualização/leitura, o participante deve restituir – o mais precisamente possível – o conteúdo recebido. O simples experimento coloca em cena, segundo Ghiglione ([1993] 2013, p. 258-262):

a) A questão da memorização de um enunciado, tendo em vista os níveis de aproximação dos mecanismos cognitivos.

b) A informação processada dificilmente poderia ser tratada, nessas condições, pela via central. Haverá a interferência do sujeito na reconstituição dos fatos recebidos. A tarefa de restituir palavra por palavra, na hipótese levantada pelo autor, poderia eliminar os efeitos da reatância e do contra-argumento implícito.

c) O jogo entre a estrutura da mensagem e as representações anteriores do sujeito.

Ghiglione ([1993] 2013) destaca que o processamento cognitivo interno ao sujeito não é uma mecânica que apaga a existência do sujeito social. As noções de co-construção de referência e da realidade devem levar em conta, na operacionalização do método investigativo, a dinâmica social. Diante do exposto, o autor sugere a alteração das palavras emissão/recepção, as quais reenviam a uma teoria matemática da informação, sugerindo “co-construção anterior” (co-construction avant) e “co-construção de retorno” (co-construction retour).

A atividade receptiva pode ser definida, simplificadamente, como um embate entre saberes prévios do interpretante e os recebidos pelo discurso em contato. No âmbito do estudo da recepção pela Teoria Semiolinguística, para se acessar as dimensões materiais dos imaginários sociodiscursivos que o sujeito recorre para interpretar uma mensagem, propomos que o experimento científico deve passar, essencialmente, por quatro etapas:

a) Investigação sobre os imaginários sociodiscursivos prévios dos participantes.

b) Avaliação sobre a relação dos sujeitos com a mensagem midiática em questão, os graus de concordância/discordância e níveis de compreensão dos enunciados.

c) Investigação sobre os imaginários sociodiscursivos percebidos nas mensagens midiáticas.

d) Confronto dos dados coletados anteriormente para averiguação das mudanças de posição, contra-argumentação e incorporação ou não dos saberes a que foram expostos por meio da mídia.

No quadro 2, elencado no primeiro tópico deste item, apresentamos a releitura de Machado & Mendes (2013) sobre a situação do contrato de comunicação charaudeano, a qual retoma a perspectiva peytardiana sobre a fluidez de papéis desempenhados pelos sujeitos. Os sujeitos enunciadores (narradores e personagens) exercem múltiplos papéis no diálogo, tal como ocorre com Tu- destinatários, que é incitado a se movimentar identitariamente no plano do dizer a cada mudança de sujeito enunciador.

O estudo da recepção da notícia/reportagem no quadro dos sujeitos da comunicação deve considerar a mensagem em cinco momentos básicos da configuração da mensagem telejornalística, a serem considerados com finalidade didática e investigativa:

(I) cabeça da matéria: corresponde ao lead do texto jornalístico, com enquadramento do apresentador, sem imagens de cobertura;

(II) off: texto narrado pelo repórter com imagens de cobertura da reportagem;

(III) sonora: momento em que apresentadores e repórteres são substituídos por personagens da entrevista;

(IV) passagem: instante da reportagem telejornalística em que o repórter dá a notícia sem imagens de cobertura;

(V) nota pé: é o fechamento da notícia ou reportagem quando o apresentador, geralmente, dá a versão de um entrevistado que não tem direito à fala no vídeo.

As questões direcionadas ao interpretante poderiam ocorrer a cada momento da mensagem televisiva, questionando as passagens dos Eu- enunciadores narradores e personagens, o que permitiria um resgate dos papéis do Tu-interpretante diante dessas identidades discursivas. Evidentemente, a coleta de dados envolve novo contrato comunicacional, o da pesquisa científica, em que o sujeito participante se coloca como Eu-enunciador para relatar as suas posições anteriores como Tu-destinatário e Eu-enunciador no contrato midiático televisivo.

Em nossa pesquisa, como será possível perceber no Capítulo 5, essa dinâmica ocorreu na aplicação de questionário prévio sobre os saberes que os sujeitos possuíam sobre a surdez, em papéis individuais e como representantes das vozes sociais, percebendo os resquícios de discursos majoritários que permeiam os imaginários sociodiscursivos de cada respondente e também do grupo do qual fazem parte. Logo após a recepção dos conteúdos midiáticos, os participantes foram arguidos sobre o conteúdo, os graus de concordância e os imaginários que aqueles dizeres carregavam. Em seguida, as primeiras questões foram reaplicadas após o contato com as informações midiáticas, investigando, a partir deste método, as mudanças de posições e opiniões frente aos saberes recebidos. Diante dessa metodologia, foi possível perceber como flutuam os imaginários sociodiscursivos do telejornal dentre parte dos receptores do programa. Evidentemente, tratamos aqui de um ponto de vista da Análise do Discurso e das materialidades linguísticas, ou seja, das pistas cognitivas expostas publicamente pelos sujeitos. Com isso, um de nossos objetivos é combater as ideias formatadas (idées reçues) comumente

propagadas que fala da “impossibilidade dos estudos sobre a recepção”. Por um lado, procuramos mostrar a viabilidade estes estudos e, por outro, discutir e propor abordagens compatíveis.