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PARTE I: APONTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 1 – ARCABOUÇO TEÓRICO

1.2. O conceito de imaginários sociodiscursivos

1.2.1. Os imaginários sociodiscursivos icônicos

Os sistemas de saberes do mecanismo do fenômeno cognitivo-discursivo das representações sociais não estão presentes somente em elementos verbais. Como avalia Mendes (2010), os imaginários sociodiscursivos podem ser verbo- icônicos. A imagem é sempre imagem de alguma coisa – como linguagem, ela cria representações – e esse ato implica em construção discursiva feita com base em processos de discriminação, classificação e atribuição de valores.

Os imaginários não estão agrupados nos mesmos suportes: eles comportam dimensões linguageiras e expressões visuais condicionadas por experiências de “verbalização” e “escópica do olhar”, respectivamente, as quais constituem “deux sources et registres nettement différenciés d’information et d’expression de l’homme58”, explica Wunenburg (2003, p. 32). Elementos icônicos e verbais atuam de forma diferenciada transmissão de saberes de conhecimento e de crença. A divisão do imaginário em verbo-icônico tem o intuito didático de estudo, pois ele atua nos suportes verbais e não-verbais pela regra de complementaridade.

Nesse sentido, no caso da televisão, os sistemas de saberes estão presentes também nos elementos não-verbais que constituem o discurso televisual. De acordo com Soulages (2008), os sentidos são dados pela imagem cinética, onde três dispositivos constituem o regime de performatividade da representação televisual, atuando como as visadas discursivas na noção de Charaudeau (2004):

- Ficção: cria um mundo verossímil através de técnicas herdadas do cinema, onde o quadro-cena pretende provocar processos de identificação-projeção do universo reconstituído no espectador.

- Mostração: através do recurso de quadro-percurso, enunciados da realidade são veiculados para dar a impressão de não haver uma mediação explícita. O efeito gerado garante, ao telespectador, uma conexão com o mundo fenomenal restituído em sua verdade.

58 “Duas fontes e registros nitidamente diferenciados de informação e expressão do homem”.

- Espetáculo: oposto à transparência dos dispositivos de midiatização, o dispositivo procura, por meio do quadro-janela, abolir imaginariamente a cisão entre o universo espectatorial e o televisivo, tendo como finalidade a atração.

Com a aproximação dos estudos televisuais à Análise do Discurso, Soulages (2008) afirma que a mídia televisual ampliou o espectro da imagem cinética, determinando a formatação do olhar do telespectador, em um processo de “cinesintaxe” desse olhar relacionados às formas de expressão e ativados pelo enquadramento.

Cada programa vai basear-se em procedimentos e formas de expressão, elaborando o ethos expressivo da performance em questão, suscetíveis de atualizar ‘fatores de ativação’ junto a comunidades de públicos diversos (tal cenário, iluminação, estilo de filmagem etc.) (SOULAGES, 2008, p. 263).

A configuração visual do programa televisivo traz, portanto, elementos que facilitam a percepção do espectador sobre o contrato de comunicação. A presença de um apresentador lendo um texto, com fundo azul, cenário de redação ao fundo e iluminação de estúdio, revelam os primeiros sentidos para o telespectador perceber que assiste um telejornal, formatando seu olhar e expectativas para a visada informativa.

Segundo Soulages (2008, p. 258), a televisão alia duas performances midiático-discursivas: (i) a fusão da ação e linguagem; (ii) publicização. A primeira entende que a emissão de televisão é uma cerimônia-acontecimento imersa dentro de uma grade de programação “com suas visadas, seu enquadramento genérico, seu formato, seu limite e seu processo de interação-consumo”. A segunda performance dá visibilidade ao discurso que toca o telespectador na posição de membro do público e também de ator social e cultural, sendo estas atravessadas pelas visadas de influência da TV.

Os efeitos visados pela instância midiática de produção são construídos dentro dos dispositivos (ficção, mostração e espetáculo), os quais se fundamentam em estratos, caracterizados como:

a) Estrato plástico-sonoro: constitui a matéria viva da estética do fluxo televisual. São as cores, formas, texturas, luzes e superfícies aliadas às texturas musicais (tonalidade, ritmo). De acordo com Guimarães (2004), a cor funciona como um código a ser interpretado culturalmente, onde os sentidos são apreendidos de

forma diferenciada de acordo com os grupos, lugar, regiões e situações comunicativas.

b) Estrato icônico: reagrupa elementos do cenário, o ambiente e os modos como os sujeitos filmados aparecem (figurino, posturas).

c) Estrato escópico: coloca em jogo a proximidade ou distância entre os protagonistas da cena.

d) Estrato cinético: dinâmica das tomadas de câmera (movimentos, efeitos de fragmentação da imagem, duração dos planos, transições, efeitos de câmera lenta/rápida e tonalidade do programa).

e) Estrato marcado pela distribuição de diferentes tipos de quadros: formas de expressão (quadro-afresco, cena, percurso, janela) sustentam as diferentes atitudes ou posturas espectatoriais.

f) Estrato narrativo/identitário: remete ao estatuto dos sujeitos filmados, identidade de gênero, social, midiática (testemunha, ator, especialista, anônimo), colocando em jogo regimes de credibilidade divergentes.

g) Estrato comunicacional: está associado a papeis e comportamentos reforçados pelos protagonistas de cada performance.

h) Estrato verbal: registros de língua, prosódia.

Na concepção de Soulages (2008), esses diferentes fatores de ativação operam como elementos que permitem o telespectador discriminar e classificar os programas, abrindo espaço também para impressões de sentidos – ocasionadas pelos estratos plásticos, cinéticos, comunicacionais – assim como para efeitos de sentido – gerados pelos estratos icônicos, escópicos, verbais.

De acordo com Wunenburg (2003), as teorias mais recorrentes para a análise dos imaginários nos suportes icônicos têm respaldo nas escolas da semiótica estrutural (subjetivista e cognitivista) e a hermenêutica simbólica. Entretanto, no campo da Análise do Discurso, Mendes (2010) desenvolve uma grade de análise de imagens móveis que articula a Teoria Semiolinguística com as proposições de Soulages (2008) e de Guimarães (2004).

Cor pus

Dimensão situacional Dimensão técnica da imagem móvel Estratos

Dimensão discursiva da imagem

Sujei- tos do dis- curso Gêne- ro & esta- tuto Efei- tos Plástico -sonoro Icô- nico Escó -pico Ciné -tico Tipo de qua- dros Narra- ção/ identi- fica- ção Modos de organi- zação Imagi- nários socio- discur sivos Cate- gorias etóti- cas Cate- gorias patê- micas

TABELA 1 – Grade de análise de imagens móveis FONTE – Mendes, 2010.

A grade (TAB.1) procura operacionalizar a análise dos conceitos que envolvem a Teoria Semiolinguística na interface com os estudos televisuais e das configurações das cores. Mendes (2010) considera ser possível pensar as imagens televisuais em três dimensões que permitam investigar a situação de comunicação: “situacional”, “técnica da imagem móvel” e “discursiva”.

A primeira possibilita identificar os sujeitos da linguagem, na concepção de Charaudeau (2009), os gêneros e estatutos do enunciado imagético, assim como os efeitos visados. A partir da dimensão técnica da imagem móvel, podem ser levantados os estratos plástico-sonoro, icônico, escópico, cinético, os tipos de quadros e narrativo/identitário. Esses elementos carregam sentidos que contribuem para compreender a dimensão discursiva da imagem, a qual parte da identificação do modo de organização do discurso icônico para caracterizar os imaginários sociodiscursivos, bem como as categorias etóticas (imagens que o orador projeta de si) e patêmicas (efeitos visados).

As seções anteriores discorreram sobre o funcionamento dos processos de interação entre a instância midiática e o público-alvo, enfocando a volta do sujeito empírico ao centro de produção do ato de linguagem.

Como lembram Voloshínov e Bakhtin ([1929]1979), comunicar envolve interrelação tanto no diálogo entre sujeitos quanto no diálogo entre os textos. Os dizeres, portanto, não são novos, pois retomam traços de ditos anteriores. Ao enunciar, o sujeito já fala de um lugar previamente estabelecido e direcionado ao interlocutor, estando sobredeterminado pelas condições situacionais e comunicacionais da situação de comunicação, característica que restringe a liberdade do sujeito de dizer o que pretende de qualquer ambiente social e discursivo.

No processo de construção do dizer, o sujeito está em meio a uma teia discursiva e, ao puxar um fio (uma palavra), esta seleção traz visões sociais e particulares sobre o tema em debate. Desse modo, a cada conversa, seja face-a- face, mediada ou quase-interação mediada – na terminologia de Thompson (1998) - imaginários sociodiscursivos fundamentam o discurso, visando influenciar o outro. Os dizeres revelam práticas sociais e carregam visões de mundo, valores e crenças. Sistemas de conhecimento e de crença integram e permeiam os discursos através do mecanismo de engendramento das representações sociais e se revelam nos imaginários sociodiscursivos.

Como abordado, a mídia informativa é instituída como legítima para acessar os saberes e transmiti-los em larga escala e, por meio de estratégias discursivas de credibilidade, confirmar seu poder de dizer. O jornalismo apresenta- se reconhecido como instância compósita que diz o verdadeiro, em um mascaramento do processo de produção da notícia. Nessa dinâmica, procura cumprir o dever cívico de informar os cidadãos, encenando, em um microcosmo informativo, os acontecimentos da esfera pública e, com isso, as zonas de tensão, concordância e discordância culturais, os jogos de poder e as disputas entre grupos sociais. No telejornalismo, os elementos verbais e icônicos atuam em uma relação de complementaridade na construção da mensagem, conforme debatido por Figueiredo (2008); Figueiredo e Rezende (2007).

A instância jornalística reproduz, de forma sobredeterminada, as práticas sociais do meio em que está inserida, imprimindo também as suas marcas individualizadas, sendo condicionada e condicionando a realidade. O jornalismo passa a ter o poder de influenciar os sujeitos destinatários que representam o papel de interpretantes quando apresenta o recorte discursivo de real como sendo uma verdade linguística respaldada em imaginários sociodiscursivos.

Evidentemente, a reconstrução de sentidos é negociada em um jogo de co-intencionalidades. O público não é massa amorfa e acrítica. A informação é interpretada individualmente na esfera de recepção por meio de um processo de associação entre os referenciais de mundo internalizados pelo sujeito, imerso em grupos sociais, e os dados externos e internos do contrato de comunicação (semiotizados em imagens e palavras), cabendo à instância produtora apenas gerar os efeitos pretendidos.

FIGURA 5 – Representação piramidal da comunicação linguageira

FONTE – Charaudeau, 2009b. Tradução de Angela Maria da Silva Corrêa.

A figura 5 apresenta uma representação piramidal da comunicação linguageira proposta por Charaudeau (2009b). O esquema ilustra como agem os entrecruzamentos de imaginários sociodiscursivas, estratégias discursivas, sujeito e dispositivos sociocomunicacionais.

As representações socialmente partilhadas adquirem forma pelo dizer, por meio dos imaginários sociodiscursivos. Os discursos revelam os diferentes saberes “misturados” que, segundo Charaudeau (2009b), circulam nos grupos sociais. Os sujeitos se ancoram em alguns traços desses saberes para fundamentar os seus discursos, característica que exige uma competência semântica por parte deles.

As trocas sociais se estabilizam nos dispositivos sociocomunicacionais, os quais “funcionam como contratos de comunicação e que fornecem instruções sobre as maneiras de se comportar através da linguagem”, comenta Charaudeau (2009b, p. 324). É nesse quadro que os gêneros situacionais se constituem, o lugar de “instrução do como dizer”. A articulação de competências de ordem comunicacional e situacional cabe aos sujeitos.

Amparado pelos imaginários sociodiscursivos e restrito pelas condições do contrato de comunicação, é na mise en scène discursiva que o sujeito constrói o discurso e uma identidade59 discursiva, acionando competências discursivas e

59

A identidade aqui é conceituada como traços identitários, na concepção de Charaudeau (2009b), pois não existem formas perenes e estabilizantes de essencialização dos sujeitos.

semiolinguísticas que confrontam os traços identitários sociais determinados pelo outro ou grupos sociais.

A representação piramidal da comunicação linguageira elucida que o sujeito é essencial no ato de produção de linguagem, haja vista que ele seleciona, filtra e reconstrói os imaginários sociodiscursivos que serão utilizados na elaboração do discurso, dentro de um quadro de sobredeterminação situacional e comunicacional do contrato de comunicação. O entrelaçamento entre instância individual e social é explicado por Charaudeau (2009b):

sem identidade social não há percepção possível do sentido e do poder da identidade discursiva; sem identidade discursiva diferente da identidade social e reveladora do ‘posicionamento’ do sujeito, não há possibilidade de estratégias discursivas, e sem estratégias discursivas, não há possibilidade para o sujeito de se individuar, o que corresponderia a um sujeito sem desejo (CHARAUDEAU, 2009b, p. 324-325).

O sujeito procura se individualizar, se (re)afirmar identitariamente, pela linguagem, especificamente, pelas estratégias discursivas possíveis em cada discurso. O jogo de cada situação de comunicação traz consigo os modos de individualização dos sujeitos e as práticas sociais que visam reforçar ou silenciar as características do Outro.