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PARTE I: APONTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 1 – ARCABOUÇO TEÓRICO

1.1. A comunicação vista através da Teoria Semiolinguística

1.1.3. A questão da recepção revisitada

1.1.3.1. A recepção de uma obra por outra, de texto por outro

Em uma produção discursiva como uma notícia jornalística, o texto é construído polifonicamente, com acesso a outros saberes da esfera social para se construir e projetar sentidos sobre o acontecimento. No âmbito da recepção, podemos compreender que o Eu-comunicante exerce – ao mesmo tempo – os papéis de Tu-destinatário e Eu-enunciador, codificando novos sentidos para os saberes recebidos. Ao considerar que o Eu-comunicante de uma matéria jornalística é compósito, sendo formado por distintos atores, a situação de comunicação se torna mais complexa: são vários sujeitos que recebem e produzem sentidos para a produção de uma reportagem.

Para nós, o ato de enunciação, em si, é um processo de retroalimentação, ao mesmo tempo, enunciativo e receptivo. Conforme Voloshínov e Bakhtin ([1929]1979), nenhum discurso é novo, sendo uma reconstrução de discursos dos outros. Authier-Revuz ([1984] 2013) reconhece a presença do outro na enunciação, defendendo a existência do interdiscurso que perpassa todo dizer, um “diálogo interno”, em que o sujeito confronta os dizeres na cognição para produção de outros sentidos:

Les mots sont toujours, inévitablement, ‘les mots des autres’ : cette intuition traverse les analyses du plurilinguisme et des jeux de frontières constitutifs des ‘parles sociaux’, des formes linguistiques et discursives de l’hybridation, de la bivocalité qui permettent la représentation en discours du discours d’autri (AUTHIER-REVUZ, [1984] 2013, p. 98)34.

A tomada da palavra é sempre a reconstrução do discurso do outro. Essa reapropriação pode ser exemplificada nas etapas da recepção esquematizadas no modelo de processo comunicativo proposto por Schramm (1970), no qual a ação de receber uma mensagem está atrelada às fases de decodificação, interpretação e codificação.

34“As palavras são, inevitavelmente, ‘as palavras dos outros’: essa intuição atravessa as análises do

plurilinguismo e os jogos constitutivos das ‘falas sociais’, das formas linguísticas e discursivas de hibridação, da bivocalidade que permite a representação no discurso do discurso do outro”. (Tradução nossa).

O sujeito tem que dividir seu espaço discursivo com o outro. O sujeito e o outro entram em disputa do campo discursivo. O sentido é, com isso, subjetivado, tornando-se heterogêneo. Por meio da heterogeneidade discursiva, o sujeito está em constante negociação em busca de unidade e dominância, de ser a fonte do discurso. Segundo Authier-Revuz ([1984] 2013), existem duas formas de heterogeneidade discursiva: mostrada e constitutiva. A primeira é perceptível nas formas do discurso do outro ao longo de um texto; as marcas mais evidentes são: uso de citações e referências. Já a heterogeneidade constitutiva é marcada pela interdiscursividade, em que os discursos do outro não são facilmente detectáveis no discurso, podendo ser identificada por meio de vestígios.

A notícia telejornalística é um exemplo dessa heterogeneidade discursiva, no conceito da referida autora: as marcas da presença do outro se evidenciam nos discursos mostrados (discurso indireto livre, paródia, ironia) ou relatados (discurso direto e/ou indireto). Contudo, essas pistas são as mais nítidas. Na construção do que seria o dizer próprio do repórter, por exemplo, estão presentes reapropriações e reconstruções de saberes acionados para o relato de determinado acontecimento; emergem outras vozes durante o ato enunciativo fora das categorias mais evidentes da heterogeneidade discursiva. De acordo com Voloshínov e Bakhtin (1979), todo enunciado é marcado pela alternância de sujeitos do discurso, ou seja, é construído polifonicamente.

Na perspectiva acima, a própria escolha lexical do emissor está condicionada: (I) a aprendizados anteriores - ao arcabouço linguístico, discursivo, psico-socio-histórico e cultural; (II) a condições contratuais da situação de comunicação; (III) e a incorporação e embates com outras vozes recebidas; (IV) constante leitura crítica sobre os objetos e fatos do mundo. O emissor é, portanto, atravessado por discursos de outros e, no ato de enunciação, se depara com frequentes atividades receptivas para que o dizer seja produzido. Com isso, ocupar o papel de produtor é apenas um retrato temporalmente marcado em meio a um processo cíclico, dinâmico e fluído. Na prática, os sujeitos atuam como produtores e receptores ao mesmo tempo, sem posições estanques.

Para Giacomini (2010), com base nas ideias de Charaudeau (2009) e Mari (2002),

Com efeito, o “outro” passaria, considerando-se agora a idéia de sujeitos da linguagem, a tornar-se uma preocupação para se considerar uma instância de recepção discursiva articulada com uma idéia de constituição dialógica do discurso. O “outro”, com isso, pode ter o poder de se apropriar do discurso e extrapolar os limites de interpretação, se é que eles realmente existem (GIACOMINI, 2010, p. 76-77).

Nessa vertente, o Tu-interpretante, no papel de Tu-destinatário, é também um ser construtor de sentidos e pode conferir significados para além dos pretendidos pelo emissor na mensagem.

A afirmação acima de Giacomini (2010) pode ser atestada se considerarmos que o contrato da situação de comunicação da Teoria Semiolinguística, conforme Jost ([2012] 2013), poderia ser entendido mais como um determinado acordo prévio de promessas, em que as cláusulas poderiam ser desfeitas e refeitas a qualquer momento. Logo, o Tu-destinatário teria o poder de ir além dos sentidos projetados pelo Eu-enunciador. No contrato da comunicação midiática, o emissor não teria qualquer controle sobre a ação do receptor após a veiculação da mensagem.

No tópico anterior, apresentamos o ponto de vista de Hall (2003) sobre os possíveis percursos de leitura do sujeito. Com base nessa ótica, admitimos a possibilidade do receptor falsear, manipular, inventar e transgredir35 tanto os papéis de Tu-destinatário quanto os sentidos transmitidos pelo Eu-enunciador. A questão que nos colocamos é se, para “extrapolar os limites de interpretação”, o receptor deve sair ou não do papel previsto de Tu-destinatário ou pode atuar com dois ou mais papéis discursivos concomitantemente.

Já discorremos anteriormente que o receptor procura se identificar com os múltiplos papéis de Tu-destinatário em uma mesma notícia, ou seja, a cada momento do enunciado telejornalístico (entrevista, off, manchete, nota pé e demais recursos de composição da matéria audiovisual), o interpretante se vê na necessidade de encenar novos papéis.

Em nossa visão dessa problemática, o Tu-destinatário pode representar papéis discursivos híbridos e múltiplos. O interpretante tem a opção (e o poder) de

35

A transgressão é entendida aqui como ruptura individual com os padrões de sentidos esperados para a leitura idealizada de um texto.

apresentar alguns traços de Tu-destinatário projetado, não se enquadramento plenamente na figura pretendida pela instância de produção ou até fingir que atua na posição prevista pela situação de comunicação quando, “verdadeiramente”, se ancora em outros papéis receptivo-enunciativos.

Sendo assim, a comunicação entre os pares não ocorre pela adesão plena às imagens de destinatário projetadas pelo enunciador: apenas algumas marcas discursivas são suficientes para o desempenho da atividade receptiva – mas, ao mesmo tempo há uma abertura para a imprevisibilidade, que não pode ser mensurada.

Na visão de Giacomini (2010, p. 102), o quadro comunicacional é uma relação dialógica pautada na “responsividade-ativa”: os sujeitos do discurso não poderiam ser concebidos como polarizados, tendo em vista que as relações entre os sujeitos não estariam vinculadas somente ao circuito do “fazer” do contrato comunicacional, estando presente também “no processo do dizer interpretando, onde haveria uma leitura interdiscursiva dos discursos”. O ato de leitura seria uma atividade interpretativa do sujeito interpretante, tendo o “poder para se construir um efeito de sentido que estaria direcionando outras interpretações ou outras leituras”, afirma Giacomini (2010, p. 103).

Nessa perspectiva de ação co-construtiva de enunciados, o termo “espectador crítico” de Livingstone e Lunt (2009, p. 111) marca discursivamente a necessidade de pensar a recepção de modo mais profícuo, revelando: a) o estatuto de poder que o espectador confere ao texto36 recebido; b) os recursos interpretativos que o receptor mobiliza; c) a relação que ele estabelece entre o texto e outras formas de conhecimento.

Chabrol e Camus-Malavergne ([1994] 2013, p. 8) procuram compreender a diversidade das estratégias de leitura, propondo que “la compréhension n’est pas une réponse automatiquement engendrée par les stimuli linguistiques” 37

. Os autores pretendem romper com o saber cristalizado da recepção automatizada, do receptor passivo e manipulado, partindo da premissa de que produtores e receptores

36 A noção de texto aqui deve ser compreendida em uma dimensão mais ampla: discursos verbais e

não-verbais.

37 “A compreensão não é uma resposta automática engendrada pelos estímulos linguísticos”.

desenvolvem atividade criativa. A recepção se estruturaria com base em (a) conhecimentos conceituais e linguísticos, os quais seriam ativados pelo texto (discurso); (b) em estratégias adaptadas aos objetivos projetados para o leitor.

Os referidos autores realizaram um experimento com grupos de estudantes franceses, em que os participantes foram expostos a um trecho de notícia sobre o discurso político de François Mitterrand38. A análise proposicional da compreensão indica que as turmas estudantis tomaram seis percursos distintos de leitura. Anteriormente, com Hall (2003), vimos que existiriam apenas três caminhos para a interpretação dos sentidos de um enunciado.

As categorias levantadas por Chabrol e Camus-Malavergne são: “proposição equivalente ou paráfrase”; “dedução polemizadora”; “dedução explicitante”; “mudança de significado”; “interpretação errada”; “interpretação sem sentido”. Os referidos autores constataram que as estratégias de leitura dos receptores não são as mesmas. Por exemplo, frente às deduções, Chabrol e Camus-Malavergne afirmam que a desestruturação argumentativa está vinculada à produção de inferências necessárias para compreensão do texto. Nas conclusões desses autores,

Si certaines caractéristiques sémio-linguistiques favorisent la saisie de la surface textuelle, elles ne stimulent pas en revanche la production d’inférences ; d’autres au contraire activent cette production et contraignent l’écoutant à une récupération créative39 (CHABROL; CAMUS-MALAVERGNE, [1984] 2013, p. 21).

A partir da pesquisa com universitários franceses, Chabrol e Camus- Malavergne ([1984] 2013) ressaltam que as observações sobre dados coletados partiram de contexto controlado: uma observação de leitura ocorrida em tempo real no laboratório. Nessa conjuntura de recepção, os referidos autores verificam que os jogos e contratos de comunicação foram modificados pelos leitores. Mesmo que tente pré-determinar o modo de entrada na superfície textual e a leitura, o emissor não tem controle sobre os percursos do Tu-interpretante na posição de Tu-

38

A notícia de Mitterrand foi publicada na edição de 20 de dezembro de 1993 no jornal francês Le Monde, sob o título “M. Mitterrand ‘surpris et offusqué’ (Mitterrand ‘surpreso e ofuscado’)”.

39“Se determinadas características semiolinguísticas favorecem a compreensão da superfície textual,

elas não estimulam, entretanto, a produção de inferências; outras, ao contrário, ativam essa produção e forçam o ouvinte a fazer uma recuperação criativa” (Tradução nossa).

destinatário. Tal constatação compactua com nossa visão sobre a possibilidade de ruptura e subversão das condições contratuais da situação de comunicação por parte dos receptores. O interpretante pode oferecer resistência ao discurso projetado pelo emissor.

Segundo Livingstone e Lunt (2009, p. 113), o programa televisivo não é uma simples “janela para o mundo”. Diante da mensagem televisiva, os receptores podem introduzir critérios de avaliação, o que implica na associação a outros quadros de interpretação possíveis, resgatando conhecimentos e crenças anteriores. Na vertente destes autores, os espectadores podem adotar diferentes estilos de relação com a emissão: aceitação com implicação; aceitação com distância; crítica com implicação; crítica com distância; além de recusas parciais ou totais.

As perspectivas defendidas por Chabrol e Camus-Malavergne ([1984] 2013) e Livingstone e Lunt (2009) evidenciam que a recepção não é uma incorporação imediata, plena e automática de dizeres. A recepção deve ser entendida enquanto atividade atrelada a um processo complexo que envolve outros fatores, tais como empatia, comportamento, abertura para o diálogo, humor, estados emocionais, além de partilha de conhecimentos e crenças em comum. Ademais, a compreensão de uma mensagem não significa a aceitação, a memorização e a tomada de ação a partir dela.

Cabe pontuar, de acordo com Katz (2009, p. 48), que os estudos sobre a comunicação realizados por Lazarsfeld40 em 1937 já traziam as primeiras conclusões acerca da recepção: os efeitos das mídias são intermediados por processos seletivos de atenção, percepção e memória, os quais dependem e estão atrelados a um conjunto de variáveis da situação comunicativa e da pré-disposição à mensagem; o que, à época, foram elencados como: idade, história familiar, filiação política, dentre outros.

Diante da complexidade da recepção de mensagens midiáticas e da consideração do sujeito enquanto comunicante, Courbet, Fourquet-Corbel e Chabrol

40 Lazarsfeld é considerado um dos principais teóricos clássicos do campo de estudos da

Comunicação. O autor propôs o modelo comunicacional Two-step flow (teoria do campo comunicacional em duas etapas), mostrando que a influência dos meios de comunicação é seletiva, conforme as opiniões prévias do receptor e suas relações interpessoais.

([2006] 2013) indicam as quatro perspectivas que são estudadas na França, a partir do campo de estudos da Psicologia Social:

1) l’étude des processus intraindividuels dans la réception et dans la construction de la signification au moment du contact avec le média ; 2) l’étude des processus non conscients dans la réception et la co- construction de la signification ; 3) l’étude de la réception et du double processus intra- et interindividuels de co-construction sociale de la signification et des actions partagées; 4) l’étude de la co-construction de l’action à la suite de la réception où l’individu a été engagé par une micro-action41 (COURBET, FOURQUET-CORBEL E CHABROL ([2006] 2013, p. 170-171).

Percebe-se que a recepção tem sido pesquisada no viés intraindividual, da compreensão das mensagens, bem como interindividual, da co-construção de sentidos. Conforme Chabrol ([2004] 2013, p. 202): “le sens est co-construit progressivement de façon interactive dans les situations interlocutives, mais aussi dans les situations monolocutives de lecture ou d’écoute42“. As formas linguísticas são, com isso, interpretadas de acordo com os contextos discursivos em que surgem e com as operações de inferências; tais formas atuam como “instruções de sentidos”, explica o referido autor. Segundo Chabrol ([2004], 2013), a noção de conhecimento partilhado para o entendimento mútuo entre produtor e receptor tem como referências os preceitos bakhtinianos de intertextualidade e interdiscursividade.

O quadro dos sujeitos da linguagem da Teoria Semiolinguística deve ser encarado não como o fenômeno comunicativo em si, mas como um modelo teórico- metodológico que abstrai, cientificamente, sobre as possibilidades dadas durante as trocas linguageiras. As relações são assimétricas entre os sujeitos da linguagem. Ponderamos aqui que as margens de manobra dos enunciadores e destinatários podem extrapolar as condições previstas para o contrato comunicacional.

41“1) Estudo dos processos intraindividuais na recepção e na construção da significação no momento

de contato com a mídia; 2) estudo dos processos não conscientes na recepção e na construção da significação; 3) estudo da recepção e do duplo processo intra e interindividual de co-construção social da significação e das ações partilhadas; 4) estudo da co-construção da ação após a recepção onde o indivíduo foi engajado em uma micro-ação”. (Tradução nossa).

42 “O sentido é co-construído progressivamente de modo interativo nas situações interlocutivas, mas