• Nenhum resultado encontrado

PARTE I: APONTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

CAPÍTULO 2 A SURDEZ COMO OBJETO DISCURSIVO

No presente tópico, propomos pensar a surdez como um objeto discursivo, em que as lutas e jogos de poder dados da esfera social são reconstruídos por meio do dizer. Tais traços atravessam os campos de saberes e podem ser perceptíveis na materialidade linguística dada pelos imaginários sociodiscursivos, entendidos como dimensão tangível das representações sociais, tal como discutimos no primeiro capítulo. Articulamos nossa argumentação por meio da interlocução entre os Estudos Surdos, Estudos Culturais e Análise do Discurso.

Ser surdo ou não-surdo envolve, então, disputas de traços identitários sociais e discursivos que se revelam a cada situação de comunicação, explícita ou implicitamente. Semelhança e diferença se estabelecem nas práticas sociais e se revelam e propagam por meio do dizer.

Perlin (2005, p. 62-67) estabelece uma categorização das identidades surdas com o intuito de sistematizar os processos de heterogêneos de diferenças dentro da surdez. Com base em Hall (1997), na ótica da autora, sobressaem-se cinco tipos, a saber:

a) “Identidade política surda”, marcada pela perspectiva da militância e dos movimentos sociais em prol do reconhecimento das diferenças.

b) “Identidades surdas híbridas”, lugar de referência para os sujeitos que nasceram ouvintes e se tornaram surdos ao longo do tempo. Perlin (2005) entende que tais pessoas sempre terão duas línguas, porém a preferência identitária penderá para a surdez.

c) “Identidades surdas de transição”, quando o surdo abandona a vivência no universo dos ouvintes e interage com a comunidade surda, em um processo de “des-ouvintização”.

d) “Identidade surda incompleta”, referente aos surdos sob o poder ouvintista, os quais são se veem e não se aceitam plenamente como integrantes da comunidade surda.

e) “Identidades surdas flutuantes”, sujeitos sem laços com a comunidade ouvinte nem surda. Essa desvinculação identitária seria decorrente da falta de conhecimento necessário para comunicar em língua oral e/ou sinais.

A sistematização das identidades surdas por Perlin (2005) atua como referencial para se perceber a complexidade e hibridez das formações de sensos de identificação dos surdos. Nota-se que o traço distintivo das identidades surdas se respalda no pertencimento a uma cultura, na comunicação entre os sujeitos, no domínio pleno ou não da língua de sinais60 ou oral. O cenário traçado por Perlin (2005) é um primeiro passo para a compreensão da pluralidade e complexidade identitária dos surdos:

Não é saudável alegar uma identidade, cultura ou perspectiva surda (Surda) unificadora, pois os surdos também se enquadram nas categorias de raça, gênero, classe, nacionalidade, condição física e em outras fontes de “diferença” (SÁ, 2002, p. 94).

Assim, não é somente a característica da surdez que determina “quem” é o sujeito, mas as suas distintas interfaces individuais e sociais no âmbito de cada face de cultura pela qual transita.

Conforme Hall (1997, p. 21), “as identidades são contraditórias, se cruzam, se deslocam continuamente”. Em uma vertente de pensamento charaudeana, pontuamos ainda que as identidades são construídas e desconstruídas a cada situação de comunicação, não sendo estanques e perenes. Assim como explica Charaudeau (2009b), existem identidades sociais (aquelas que os sujeitos são vistos como tal) e identidades discursivas (como os enunciadores se projetam para os interlocutores). Desse modo, o surdo pode querer ser visto, por exemplo, na “identidade política surda”, mas ser percebido pelos outros a partir de uma “identidade surda de transição”. O jogo identitário se estabelece, então, enquanto projeção de sentidos, seja do Eu ou do Outro.

Em Figueiredo (2008), debatemos como a surdez é uma diferença comunicativa antes de ser biologicamente ou politicamente marcada, em que as representações sociais têm papel preponderante na organização de sensos de

60

Para consultar sobre nossa visão acerca da estruturação da Libras como língua espaço-visual, vide Figueiredo (2008).

identificação sobre o Outro. A surdez não está restrita somente a uma condição biofisiológica, tendo em vista que a cultura surda se estruturaria centralmente pela língua de sinais. Nessa ótica, os saberes sobre a surdez são híbridos e não podem ter a origem facilmente demarcada em domínios da medicina, educação, antropologia, sociologia.

Porém, majoritariamente, os não-surdos ainda têm a impressão de que a comunicação oral-auditiva é o único modo de materializar eficientemente um pensamento. Este posicionamento se ancora nos referenciais particulares e grupais de mundo, esquecendo-se de que a linguagem pode ser expressa por quaisquer dos cinco sentidos humanos (visão, tato, paladar, olfato, audição) desde que o interlocutor compartilhe os índices e códigos que se emite. A narrativa de vida da surdo-cega Suely Silva – exibida pelo Jornal Visual em 21 de fevereiro de 2011 – ilustra a possibilidade de sistemas mistos de comunicação. Surda de nascença, ela utilizava a língua de sinais até que, aos 48 anos, ficou cega. Desde então, aprendeu o Braille para a leitura e emprega o tato para receber os enunciados dos interlocutores em Libras.

Assim como qualquer discurso, o tema da surdez não é isento de influências e marcas individuais e sociais, em que os sujeitos embutem nos dizeres os valores, crenças e ideologias nos quais se respaldam. A presente tese considera, na perspectiva charaudeana, que não há sobredeterminação nem liberdade totais para que o sujeito se autodefina: ele se insere no contrato de comunicação e parte de referências anteriores e já-ditos para se constituir em seus papéis e identificações.

Os imaginários sociodiscursivos sobre a surdez são constitutivos de ethé prévios e discursivos, influenciando as identidades que os surdos e não-surdos selecionam e ressignificam para se encenarem discursiva e socialmente. Desse modo, os sujeitos escolhem e estruturam os sensos de identificação a partir dos saberes de conhecimento e de crença que circulam no campo discursivo do qual fazem parte.

O campo discursivo é entendido aqui como arena onde os dizeres sociais se confrontam, se aliam ou procuram se neutralizar. Maingueneau (2004, p. 29) acredita que

C’est à l’interieur du champ discursif que se constitue un discours et nous faissons l’hypothèse que cette constitution peut se laisser décrire en termes d’opérations régulières sur les formations discursives déjà existantes. Ce qui ne signifie cependant pas qu’un discours se constitue au même titre avec tous le discours de ce champ (MAINGUENEAU, 1984, p. 29)61.

O campo discursivo pode ser pensado como um ponto de encontro entre discursos que possuem a mesma função social e divergem sobre o modo de como se deve ocupá-la. Todavia, o campo não pode ser apreendido em sua totalidade por meio da linguagem, o que somente é possível através do objeto discursivo, entendido aqui como dimensão tangível do campo discursivo.

Contrariamente ao posicionamento de Maingueneau (1984, p.28), não se compreende o campo discursivo como conjunto de formações discursivas. As regularidades estanques e herméticas não existem e não condicionam totalmente os projetos de fala dos sujeitos. Existem, sim, regras situacionais e comunicacionais para a formação dos discursos, mas há também uma liberdade do sujeito, uma margem de manobra que permite a ruptura do contrato de comunicação ou a incorporação visões particularizadas por meio de estratégias discursivas.

Os saberes não flutuam sozinhos no interior da língua. O percurso de manifestação de imaginários sociodiscursivos não é linear e envolve, portanto, subjetividade de quem fala dentro de um texto imerso dentro das condições impostas pelo contrato de comunicação.

Não se pode pensar, portanto, em termos de regularidade discursiva sem a presença dos sujeitos. Os discursos são localizados nas esferas social, histórica, cultural, especial e temporal; eles se fazem e refazem a cada situação de comunicação, em um complexo movimento de ruptura e descontinuidade na reconstrução de saberes em discursos. O campo discursivo não é um local com delimitações evidentes, se aproximando mais de uma abstração conceitual para a observação das trocas sociais, da relação de interdiscursividade e dialogicidade.

Enquanto objeto discursivo que revela traços de um campo, a surdez é (re)construída por saberes acerca dos surdos e não-surdos, influenciando o

61 “É no interior desse campo discursivo que se constitui um discurso e nós fazemos a hipótese de

que essa constituição pode de deixar descrever em termos de operações regulares sobre as formações discursivas já existentes. Isso não significa que um discurso se constitui do mesmo modo que todos os discursos desse campo”. (Tradução nossa).

estabelecimento de identidades sociais e discursivas de tais sujeitos e grupos. A recorrência de traços de saberes de conhecimento e de crença sobre a surdez, depositados na memória coletiva, tem, portanto, o poder de influenciar as visões particulares e coletivas acerca do Outro, do diferente – nesse caso, o surdo. Dito de outra forma, o fato de se comunicar por um canal espaço-visual distinto do sistema majoritário da comunicação oral-auditiva leva ao estabelecimento de visões, por vezes, cristalizadas que condicionam o olhar sobre os surdos.

Diante do exposto, o questionamento de Thoma (2005) se faz pertinente:

A não aprendizagem do surdo é mesmo um fato natural, decorrente da condição biológica e, portanto, de sua exclusiva responsabilidade, ou decorre de fatores de ordem social? Ou, ainda: O fracasso escolar do surdo não está ligado a um imaginário e uma representação que lhe dita uma incapacidade de aprender decorrente da perda biológica, introjetada e aceita pelo próprio surdo? (THOMA, 2005,

p.136: grifos da autora).

A problemática da surdez está nos imaginários sociodiscursivos que condicionam, de certo modo, os traços identitários sociais e discursivos de surdos e não-surdos. “As diferenças empíricas – como a cor da pele ou a surdez – não possuem, em si mesmas, nenhum valor natural”, sinalizam Skliar e Souza (2012, p 8). As idiossincrasias dos sujeitos são marcadas e significadas socialmente pelos Outros. O “ser deficiente auditivo” passa a ser uma representação socialmente partilhada que pretende ser unificante e levada às outras instâncias da vida do sujeito.

Para Skliar (1998, p. 45), os surdos têm sido definidos a partir de supostas características negativas e anormais, “mas os processos de construção das identidades não dependem de uma maior ou menor limitação biológica”; estão condicionados por relações complexas no campo linguístico, histórico, social e cultural. Em termos históricos, a contraposição ideológica a essa intolerância ao multicultural começou a ganhar força com o movimento em prol do Bilinguismo na década de 1960. De acordo com Sacks (1990), vivenciar a cultura surda expõe a situações que nós, falantes, mal podemos imaginar, tendo em vista uma nova gama de possibilidades linguísticas, intelectuais e culturais.

No caminho apontado por Thoma (2005), os imaginários têm sido uma forma de pensar a educação dos surdos e entender melhor o modo como foram e são tratados social e educacionalmente. Ao viverem na sombra de uma cultura dominante e língua oral-auditiva supostamente superior, os surdos tiveram as

subjetividades atravessadas e “o seu sucesso ou fracasso escolar se relaciona diretamente com as imagens e representações que dão ao surdo certas dificuldades de aprendizagem”, afirma Thoma (2005, p. 135-136).

O repensar a surdez estaria condicionado a uma mudança de postura e olhar no momento de narrar o Outro. Skliar e Souza (2012) propõem inverter a lógica sociohistórica e cultural que predomina até a atualidade:

em vez de se entender a surdez como uma exclusão e um isolamento no mundo do silêncio, defini-la como uma experiência visual; em vez de representá-la através de discursos médicos e terapêuticos, quebrar essa tradição por meio de concepções sociais, lingüísticas e antropológicas; em vez de submeter aos surdos a uma etiqueta de deficientes da linguagem, compreendê-los como formando parte de uma minoria lingüística; em vez de afirmar que são deficientes, dizer que estão localizados e são produzidos no discurso da deficiência (SKLIAR; SOUZA, 2012, p. 13).

Pelo deslocamento do princípio da alteridade, o Eu passaria a se projetar como Tu para que reconheça a existência das diferenças, evitando, assim, a reapropriação de imaginários sociodiscursivos majoritários que circulam socialmente.

Skliar e Souza (2012) acreditam que as práticas sociais regulam as relações e os processos identitários, em um pensamento de filiação foucaultiana. Segundo os autores, a contemporaneidade é marcada por diversas estratégias62 de regulação e controle da alteridade. Os traços identitários dos surdos seriam sobredeterminados por discursos que procuram negar a existência do diferente e criar uma essência rígida ao corpo dito “anormal”, em um processo sociohistórico e cultural de marginalização da surdez que reflete as relações de força da esfera social. Por esse viés, não haveria escapatória a esse sujeito assujeitado pelas instituições e normas sociais.

Conforme abordado anteriormente, a Teoria Semiolinguística recoloca o sujeito no centro da produção linguageira e essa modificação de postura teórica

62 Skliar e Souza (2012, p. 3) exemplificam as narrativas: “a demonização do outro, a sua

transformação em sujeito “ausente” [...]; a delimitação e limitação das suas perturbações; [...] a permanente e perversa localização do lado do fora e do lado do dentro dos discursos e práticas institucionais estabelecidas, vigiando permanentemente as fronteiras; a sua oposição a totalidades da normalidade através da lógica binária; sua imersão no estereótipo; a sua produção e utilização, para assegurar e garantir as identidades fixas, centradas, homogêneas, estáveis”.

permite o reconhecimento da existência de um espaço de resistência às condições impostas pelo contrato de comunicação. O sujeito não está mais assujeitado por completo, pois pode transgredir às regras pela quebra desse contrato ou imputar as marcas individuais pelas estratégias discursivas. No domínio do discurso, não existe sobredeterminação plena nem liberdade total.

Os imaginários sociodiscursivos perpassam, discursivamente, todas as esferas e grupos sociais. A surdez, assim, é um objeto discursivo com fronteiras abertas, em que se confrontam valores, crenças, conhecimentos e ideologias. A sociedade é marcada pelo dissenso, o recorrente embate discursivo que traz, para o dizer, as relações de força e estratégias de posicionamento dos sujeitos e dos grupos. Não existem imaginários sociodiscursivos certos ou errados sobre a surdez, mas a reprodução discursiva de relações (aproximação, tensões, obscurecimento, desconhecimento, valorização, entre outras) entre maioria e minoria culturais.