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A recepção franco-brasileira de Nietzsche no período pré-modernista

Um Nietzsche francês no Brasil

Semelhante ao que ocorre no movimento germanista, no pré-modernismo o carecimento de filosofia no Brasil continua sendo satisfeito, em larga medida, por meio de empréstimos estrangeiros. Nesse período, é entre intelectuais do ensaísmo que melhor se identifica a recepção de filosofia, em produções de autores como Elísio de Carvalho, Alberto Torres, Oliveira Viana, Manoel Bomfim, dentre outros. A filosofia satisfazia a carência desses autores por um sistema de objetivações que lhe oferecessem elementos teóricos para fundamentarem suas pesquisas. Os temas mais prementes, como a miscigenação, demandavam a adoção de critérios objetivos para a sua abordagem. Mais ainda, demandavam a adoção de elementos avaliativos com os quais fosse possível distinguir e qualificar as etnias originárias da formação identitária brasileira. Como tantas outras filosofias apropriadas em vista da satisfação dessas carências, também a de Nietzsche supria carecimentos ideológicos, epistêmicos e avaliativos. Mas, diferente da recepção ocorrida no movimento germanista, que havia tomado contato com obras de Nietzsche em sua língua original, alemã, no pré-modernismo predomina as fontes francesas a seu respeito, havendo ainda, com menor incidência, fontes portuguesas, mas que eram também elas um prolongamento das fontes franceses. No Brasil e mesmo em toda a América Latina desse período, isto é, desde o final do século XIX e início do século XX, “Nietzsche, apesar das aparências, era mais essencialmente francês do que alemão” (LE RIDER, 1999 p. 26). Seu primeiro tradutor francês, Henri Albert, não deixou escapar as chances de sublinhar a proximidade e a admiração de Nietzsche pela cultura francesa. Ele assegurava, inclusive, que a partir de 1883, o próprio filósofo “sonha escrever com o olhar da França” (ALBERT, 1903 p. 14).

Do período pré-modernista adiante, a recepção brasileira de Nietzsche passa a ser marcada pela presença predominante das produções francesas (característica essa que, em certo sentido, permanecerá determinante pelo menos até os anos de 1970). No Brasil, tal como na França do final do XIX, como explicitou Gide, a repercussão de Nietzsche

precedeu a própria aparição de sua obra traduzida (BIANQUIS, 1929, p. 10). Na França, essa situação muda, como bem expôs Geneviève Bianquis, quando, em 1898, Henri Albert começa a publicar suas traduções das obras do pensador alemão. Representante devoto do Nietzsche-Archiv na França, apresenta e difunde o filósofo sobretudo como um escritor e poeta. Além dele, os críticos e teóricos do simbolismo francês, como Jean Bourdeau e Jules de Gaultier, forneceram comentários e interpretações de Nietzsche aos intelectuais do nosso pré-modernismo, muitos deles atuantes no movimento simbolista brasileiro.

Mazzino Montinari estabeleceu uma lista dos autores franceses que descobriram Nietzsche entre os anos de 1883 e 1889. Nessa direção, cita, entre eles, Théophile Gautier, Gustave Flaubert, os Goncourt, Maupassant, Ferdinand Brunetière, Jules Lamaître e Eugène Fromentin (MONTINARI, 1988). Vários intelectuais brasileiros à época tiveram a oportunidade de ler os primeiros textos franceses sobre o filósofo, muitos desses escritos por autores como Teódor de Wyzewa, Eugène de Roberty, Daniel Halévy, Alfred Fouillée, Émile Faguet, Jules Gaultier, Édouard Shuré, Henri Lichtenberger e Jean Bourdeau. Muitas de suas produções eram acolhidas e publicadas por revistas como a

Revue des Deux Mondes, o Journal des débats e a Mercure de France. Elas

desempenharam papel decisivo na recepção brasileira da filosofia de Nietzsche. José Veríssimo se orgulhava do fato de ter tomado contato com o pensamento de Nietzsche por meio da cultura francesa, numa sorte de empréstimo cultural. Brito Broca nos assegura que “Nietzsche lhe chegara naturalmente, às mãos, através das edições que o “Mercure de France” começava a lançar” (BROCA, 1956 p.112). A Mercure de France era o principal veículo de contato, para muitos brasileiros, com a filosofia de Nietzsche. Ela possibilitava, assim, acesso não somente à própria cultura francesa, mas também à cultura alemã, embora intermediada pela língua francesa.

Em 1889, Remy de Gourmont, juntamente com Alfred Vallette, entre outros intelectuais, fundam a revista francesa chamada Mercure de France. Em 1894, ela começa a publicar livros: entre eles, os primeiros livros de Nietzsche em francês. Eis a principal fonte das obras de Nietzsche no Brasil durante o final do século XIX e início do XX. A Mercure valorizava os ataques do filósofo à cultura alemã e contra o Reich, comparecendo assim um Nietzsche antinacionalista e apolítico, ao passo que destacava sobremaneira sua relação com a França. A valorização crescente da Mercure fomentava, igualmente, a ascensão de Nietzsche entre os intelectuais franceses e permitiu, entre os anos de 1890 e 1914, o primeiro grande momento da recepção francesa do filósofo. Os

artigos de Jean Bourdeau, de 1888, e de Eugène de Robert, de 1890, publicados na Revue

internacionale de sociologie; os elogiosos artigos de Daniel Halévy, na Le Banquet; os

de Teódor de Wyzewa, na Revue bleue, de 1891 e de Jean de Néthy, na Revue blanche, de 1892, não produziram o mesmo efeito que a série de artigos de Henri Albert publicados na Mercure de France, a partir de 1892 (LE RIDER, 1999 p. 69).

Tanto que o germanista francês Henri Albert se tornou a principal fonte dos leitores franceses e brasileiros de Nietzsche do final do século XIX e início do XX. Seu papel foi predominante na recepção francesa, tanto que lhe valeu a alcunha de “apóstolo fiel do nietzschéisme”, encarnando uma das facetas históricas do “Nietzsche francês” (VERBAERE, 2017 p. 11-12). Todas as obras traduzidas por ele foram publicadas pela Mercure de France e, com exceção de Pages choisies, fazem parte da coleção Oeuvres complètes de Frédéric Nietzsche. Henri Albert traduziu Ainsi parlait

Zarathoustra, no ano de 1898. Depois, traduziu Pages choisies, que aparece em 1899;

nesse mesmo ano, publica ainda Aphorismes et fragments choisis. No ano seguinte, traduziu La généalogie de la moral, em 1900. Depois, Aurore, em 1901; nesse mesmo ano traduziu Le gai savoir. Depois, Le voyageur et son ombre: Opinions et sentences

mêlées, em 1902. Também traduziu Par-delà le bien le mal (uma primeira tradução data

de 1898, por L. Weiscopf et Art; mas Henri Albert publica uma nova tradução, em 1903). Traduziu ainda La volonté de puissance. Essai d’une transmutation de toutes les valeurs (études et fragments), em dois volumes, no ano de 1903. Traduziu Le Crépuscule des

idoles, Le Cas Wagner, Nietzsche contra Wagner e L´Antéchrist, em 1906. Em seguida,

traduziu as Considérations inactuelles, em 1907 e, por fim, Ecce homo, em 1909. Como se pode verificar, o público francês toma conhecimento das obras do filósofo numa desordem cronológica. Segundo Jacques Le Rider, essa desordem cronológica explica, em grande parte, a imposição da imagem de um Nietzsche triunfante e profético, poeta, literato e iconoclasta (LE RIDER, 1999 p. 43-66). Isso ocorre com nitidez na França e, por conseguinte, também em Portugal e no Brasil. Na França, antes dos livros traduzidos por Henri Albert, encontram-se apenas três obras publicadas: “Richard Wagner à Bayreuth”, editada em Paris, em 1877, traduzida por Marie Baumgartner; À travers l´oeuvre de Frédéric Nietzsche. Extraits de tous ses ouvrages, de 1893, antologia traduzida por A. Schulz e, por fim, Le Cas Wagner: un problème musical, de 1893, traduzida por Daniel Halévy e Robert Dreyfus. Diferente da recepção inicial de Nietzsche na Alemanha, em torno da polêmica instalada pelo Nascimento da tragédia,

lançada em 1972 por Wilamowitz-Moeleendorff, na França e no Brasil, a recepção começa com a tradução das obras de seu último período.

Por conseguinte, no período pré-modernista brasileiro predomina a vertente francesa de Nietzsche. José Veríssimo, Albertina Bertha, João do Rio, Gilberto Amando e tantos outros intelectuais evidenciam o forte alcance e dependência à tradição francesa, nessa recepção inicial de Nietzsche no Brasil. Geralmente, Veríssimo indicava essa dependência logo no início de seus textos, na forma de epígrafe. Enquanto jornalista influente, divulgava o pensamento e as obras de Nietzsche para os intelectuais da época através de empréstimos, no sentido de trabalhar com traduções francesas das obras do filósofo e, de igual modo, de se dirigir e dialogar exclusivamente com comentadores franceses de seu pensamento.

Apenas décadas depois, com o modernismo, ocorrerá certa inflexão positiva nesse processo de recepção do pensamento de Nietzsche por empréstimo, até então completamente dependente da produção francesa. Embora os materiais de acesso ao pensamento do filósofo continuassem sendo de origem francesa, passa a ocorrer traduções da terminologia de Nietzsche e sua aplicação para se pensar e agir sobre a própria realidade brasileira. Com alguns dos vocábulos traduzidos de sua filosofia, se procurara pensar e explicar manifestações culturais brasileiras, sendo empregadas em favor da renovação estética modernista. Essa relativa independência se mostra na medida em que, enquanto na França, não raro, ocorresse leituras e interpretações negativas, seja, por exemplo, com Édouard Schuré, Alfred Fouillé e Édouard Seillère, aqui, entre os modernistas da primeira fase do modernismo era levado adiante um uso positivo, experimentalista, orientado pela busca de uma nova linguagem, por novas perspectivas de conhecimento, às vezes em convergências objetivas com o próprio filósofo, embora sempre de forma parcial.

As produções francesas sobre Nietzsche então lidas no Brasil não eram tanto as dos filósofos universitários, quase sempre negativas, conservadoras, mas principalmente as dos literatos, na maioria das vezes mais positivas, no sentido da renovação na expressão, do uso novo da linguagem, etc. O pouco interesse por Nietzsche na filosofia universitária francesa, entre os anos de 1890 e 1914, resultava “não de uma ignorância, mas de uma reivindicação de profissionalismo (...)”. Com “sua imagem ‘irracionalista’, ele tinha pouca chance de ser cultivado por filósofos de título enquanto um filósofo legítimo a quem seria indispensável confrontar”. Aos filósofos universitários franceses de então “ele aparecia sob os traços duvidosos de um filósofo ‘popular’ que responde às

expectativas éticas e estéticas do grande público, e mesmo dos burgueses incultos e arrogantes” (PINTO, 1995 p. 38-39). Por essas e outras razões, entre os modernistas brasileiros se valorizava principalmente o Nietzsche dos literatos franceses, e mesmo um Nietzsche mais literato do que filósofo, tanto por sua filosofia do Versuch, como ensaio, como tentativa e/ou como experimentação, quanto por seu perspectivismo e por seus ataques à moral cristã.

Adiante, ver-se-á que os principais agentes brasileiros receptores dos empréstimos franceses sobre Nietzsche foram os modernistas. Por meio desses empréstimos, foram capazes de realizar em suas produções uma recepção da filosofia de Nietzsche num contexto de renovação das artes, das pesquisas e da crítica-literária e, igualmente, de conservadorismo político-ideológico. As fontes sobre Nietzsche dos modernistas, bem diferentes das fontes dos autores pré-modernistas, eram as produções dos profissionais universitários, entre os quais se admitia sem conotação negativa um Nietzsche mais próximo da literatura do que da filosofia, tais como Charles Andler e Geneviève Bianquis.

Pressupostos do contexto histórico-literário do modernismo

Antes de tudo, o objetivo aqui é reconstituir os pressupostos básicos do contexto de recepção do pensamento de Nietzsche no modernismo, particularmente em sua primeira fase, de caráter predominantemente crítico-literária. Por isso, inevitavelmente, a investigação retroage no tempo para recompor a trajetória do legado de Nietzsche no período pré-modernista, sobretudo quando se tratar da análise de materiais de autores chaves do modernismo, como Oswald de Andrade, que em seu periódico O Pirralho (1911-1918), deixou textos nos quais discorre sobre o filósofo. A presença da obra de Nietzsche no período pré-modernista é significativa e exige, no mais, um trabalho específico. Desse modo, a seguir analisa-se autores que auxiliam na tarefa de reconstituir os pressupostos básicos do contexto de recepção do pensamento de Nietzsche pelo modernismo. Por isso, os autores escolhidos são os primeiros a adotar o gênero ensaístico no Brasil e neles apresentarem conceitos da filosofia de Nietzsche que são, na verdade, utilizados para expor suas investigações estéticas e histórico-interpretativas do país.

Periódico literário, político e de humor, O Pirralho foi fundado por Oswald de Andrade e Dolor de Brito, em 1911, com a intenção principal, mas não exclusiva, de repensar a arte brasileira. Circunscrito ao período de excitação cultural pré-modernista

que culminou no modernismo, era propriedade formal de José Oswald N. de Andrade, pai do então jovem escritor, Oswald de Andrade. O periódico indica que a primeira geração do movimento modernista já começa, sobretudo no campo das artes plásticas, a se apropriar de aspectos da filosofia de Nietzsche, incorporados ao seu programa de renovação cultural. Como pretendiam romper com as regras preestabelecidas na cultura nacional de então, as ideias estéticas de Nietzsche eram levadas em alta conta. Elas logo se tornaram fonte fundamental de autores diversos, dada a sua alta convergência histórico- cultural no momento. As referências mais significativas ao pensador apontam para os intelectuais modernistas que começavam a se agrupar, tais como Oswald de Andrade, Ignácio da Costa Ferreira, mais conhecido como Ferrignac e Amadeu Amaral. Elas estão vinculadas ao clima de mudança encabeçada por autores que, nas mais diversas áreas da criatividade, poesia, teatro, música, artes plásticas e política, buscam a “regeneração estética da terra”. E consideram-se “os modernos, os supremos, os filhos de Nietzsche (...)” (ANÔNIMO, 1917, p. 17). Ao longo de sua atividade, o periódico veiculou expressões centrais da filosofia de Nietzsche, tais como “eterno recomeço” e “super- homem”. É nessa atmosfera de renovação que melhor se compreende a crônica de Amadeu Amaral, publicada em O Pirralho, intitulada, precisamente: “Super-Homem”, em novembro de 1914 (AMARAL, 1914 p.11).

Quanto a Oswald de Andrade, o seu contato com o pensamento de Nietzsche começou cedo, quando ainda era bastante jovem, no início de sua atividade e formação intelectual. Retrospectivamente, em sua autobiografia (Um Homem sem Profissão:

Memórias e Confissões, Volume I: 1890-1919, Sob as Ordens de Mamãe), revela ter sido

Nietzsche um dos “gênios” que “tinham presidido” a sua “formação intelectual” (ANDARDE, 1971 p. 69). E, de fato, na revista O Pirralho, a 28 de novembro de 1914, Oswald publica texto no qual trata da relação de Wagner com a Alemanha de seu período e com Nietzsche. Nele, assegura que com Wagner “[o]s patriotas regozijavam-se com a ressurreição maravilhosa dos velhos heróis nacionais”, sendo exceção “Apenas o sombrio Nietzsche [que] se revoltou. De há muito, o seu caráter de solitário sofria desesperadamente com o cabotinismo do mestre” (ANDRADE, 1914 p. 09). Na edição 192 da revista, de 19 de junho de 1915, encontra-se uma resenha na qual Oswald discorre sobre o livro Amor Imortal, de José Antonio Nogueira. Felicita o autor, ao considerar que seu livro se mostra “novo no nosso meio produtivo”, uma vez que “não se joga assim Nietzsche à cabeça de um público habituado a ver estreias pouco complicadas sem ser novo pelo menos”. Sobre seu livro, Oswald de Andrade faz uma crítica negativa,

situando-o na corrente espiritualista. Acusa-o de inspirar-se em “Nietzsche” para pensar uma “nova noção de eternidade” e, por isso, “em filosofia” ficou muito “aquém dele”, assegura Oswald. Nessa resenha, Oswald indica o estatuto segundo o qual considerava o filósofo, afirmando que “Nietzsche mesmo é um tipo raro, caso de artista mais do que de pensador e caso de desvairado sobretudo” (ANDRADE, 1915 p. 08).

Como melhor se poderá acompanhar adiante, no terceiro capítulo, a recepção que Oswald de Andrade realizou da obra de Nietzsche contribuiu sobremaneira para o rompimento com o modelo cultural dos autores pré-modernistas. Além de também possibilitar estudos sobre o Brasil ao sugerir que ele, ainda que estive num processo civilizador inacabado, justamente por isso poderia propiciar uma cultura na qual os instintos mais profundos não teriam sido completamente suprimidos.

Além do comentário de Oswald, o referido livro de contos de José Antônio Nogueira também foi prefaciado por Monteiro Lobato. Nesse prefácio, Lobato discorreu particularmente sobre o último conto, intitulado “Os Deuses Morrem”. José Antônio Nogueira era um romancista conhecido à época, também atuou como desembargador, professor, sociólogo, jornalista, ensaísta e foi membro da Academia Mineira de Letras. Lobato, mais próximo da corrente espiritualista do que Oswald, considerou o livro de Nogueira como “um gênero novo entre nós”. Afiançou que na “novela derradeira, “Deuses morrem...””, o autor, “em seu voo através das filosofias, cruzou com a águia taciturna de Sils-Maria. Nietzsche o domina, e, novo Virgílio, o conduz ao “seu” alto”. Sugere, com essas palavras, que “Nogueira, à poderosa lixivia nietzscheana, desfaz-se de todas as pêias e assume livremente uma atitude definitiva, particularmente sua, em face do problema eterno” (LOBATO, 1936 p. 05). Na verdade, ao recorrer a Nietzsche para pensar sobre a ideia de eternidade, Nogueira não se mostrava como renovador e em nada se desvencilhava do conservadorismo alinhado à corrente espiritualista, antes, ao contrário, retroagia.

Assim, já entre os pré-modernistas, Nietzsche ora servia para incrementar aspectos conservadores da cultura brasileira, ora para esquadrinhar aspectos renovadores, por importantes autores do período. Eles confirmam o veredito de Gilberto Amado, deixado em seu livro de memórias sobre a sua formação na Faculdade de Direito do Recife, entre os anos de 1905-1910: “para muitos, de toda uma geração, Nietzsche foi o que Schopenhauer tinha sido para ele” (AMADO, 1958 p. 108). Realmente, os livros do filósofo contam entre os mais lidos pelos intelectuais da época. O recenseamento de José Maria Bello sobre a movimentação editorial das livrarias do Rio de Janeiro mostra que

entre as vendas do mês de setembro de 1917 da “livraria Castilho”, “Nietzsche” aparece no grupo dos “escritores mais vendidos” (BELLO, 1917 p. 92).

Contudo, não era tarefa fácil à época ter acesso aos escritos Nietzsche. Monteiro Lobato, em 1904, em carta enviada a Godofredo Rangel, reclame que “Não há Nietzsches nas livrarias desta Zululândia [São Paulo]”. Adverte que os seus exemplares “vieram de França”. Indica tê-los recebido por volta do ano de 1904: “[c]hegou-me o Nietzsche em dez preciosas brochuras amarelas, tradução de Henri Albert”. Conta ao seu correspondente que “Nietzsche é um pólen” e assegura que “O que ele diz cai sobre os nossos estames e põe em movimento todas as ideias-germens que nos vão vindo e nunca adquirem forma”. Envia exemplar ao seu amigo e afirma que “Nietzsche te vai curar de todas as doenças do intelecto”. Julga que o filósofo, “inconscientemente se retrata como um “semeador de horizontes” – e é”. Transcreve para seu correspondente trecho do livro “Assim Falou Zaratustra”. Considera que seu autor é o “nosso ponto de referência”, que de um “banho em Nietzsche saímos lavados de todas as cracas do mundo exterior e que nos desnaturam a individualidade”. Alega ainda que de sua “obra” “saímos tremendamente nós mesmos. O meio de segui-lo é seguir-nos”. Avalia, por fim, que “Nietzsche é potassa cáustica. Tira todas as gafeiras” (LOBATO, [1944] 2010 p. 59-66). O próprio Lobato confessa, anos depois, que procurou “trilhar o conselho nietzscheniano, indiferente a censuras ou aplausos ou a interesses” (LOBATO, 1987 p. 21-22). Por volta de 1906, “retraduziu do francês O Anticristo e o Crepúsculo dos Ídolos, retraduções nunca publicadas” (CASSAL, 2003 p.123).

Com Monteiro Lobato, nem mesmo a literatura infantil ficou imune à filosofia de Nietzsche, na medida em que personagens como Emília contestam, à maneira do filósofo, os valores passivamente aceitos pela coletividade (MOURA, 2000). Décadas depois do contato de Lobato com a obra de Nietzsche, já em 1944, quando do lançamento do livro

A barca de Gleyre, em que publica sua correspondência, Cruz Costa critica o alcance

exercido pelo filósofo sobre o jovem literato nietzschiano de São Paulo. Avalia que esse contato o teria levado “a deitar ao largo mar o nietzscheismo heroico”, ao reter “alguma coisa das brochuras amarelas de Henri Albert, alguma coisa do Nietzsche lido na tranquila Areias do princípio do século” (CRUZ, 1944 p. 07).

No período pré-modernista, portanto, a incorporação de aspectos parciais da filosofia de Nietzsche não se encerrava no âmbito da produção literária, pois também se alonga no plano ideológico e político. As referências, por exemplo, à antítese conceitual apolíneo/dionisíaco nunca aparecem completamente dissociadas das reflexões políticas.

Os modernistas, por sua vez, em geral, desde a primeira fase do movimento, embora