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Interpretações nietzschianas do Brasil: a recepção de Nietzsche em Gilberto Freyre

Nietzsche no modernismo de Gilberto Freyre

Em Gilberto Freyre é plenamente possível identificar uma recepção parcial da filosofia de Nietzsche: num primeiro momento, no âmbito das suas atividades exercidas na esfera da crítica literária e, num segundo momento, em sua produção ensaístico- interpretativa. Seu contato com o pensamento do filósofo começa ainda na adolescência, se destacando a partir do período de formação, quando passa a escrever artigos e resenhas, estendendo-se, com mais profundidade, para os seus ensaios de interpretação do Brasil, em contribuições significativas para o movimento modernista, como é o caso do ensaio

Casa-Grande & Senzala. De maneira que Gilberto Freyre realiza, em sua produção

crítico-literária e ensaístico-interpretativa, uma recepção ora política, ora avaliativo- cognoscitiva da filosofia de Nietzsche, ao adotar dela determinados procedimentos metodológicos e valores-guia para a fundamentação teórica das suas pesquisas histórico- sociológicas sobre o Brasil.

Primordialmente, o contato de Gilberto Freyre com a obra de Nietzsche tem início antes das suas atividades como crítico literário e, portanto, da sua formação acadêmica, nos Estados Unidos, a partir de 1918. O seu contato com a obra de Nietzsche começa no Recife mesmo, durante a sua adolescência, quando já lia as obras do filósofo traduzidas para o francês. Em seu diário de adolescente, relata que os rapazes estudantes de Direito se espantavam pelo fato de ele já ler “Nietzsche”, aos 15 anos de idade. Nesse mesmo diário, no ano de 1917, muito presunçoso, assegura que entre os “filósofos nos quais” podia se “considerar iniciado”, consta “Nietzsche” (FREYRE, 2006 p. 30-41). Mas as suas primeiras referências mais significativas a respeito do filósofo só começarão a aparecer nos artigos produzidos durante os anos de aprendizagem e formação, nos Estados Unidos, datados do ano de 1921 adiante.

Mais efetivamente, vocábulos, expressões, imagens e personagens da filosofia de Nietzsche começam a ganhar mais espaço e profundidade nos artigos, nas resenhas e

crônicas produzidas por Gilberto Freyre sob a atmosfera modernista, consolidada a partir de 1922. Desse período adiante, é numerosa a quantidade de textos de caráter crítico- literário nos quais Nietzsche aparece citado, publicados nas páginas do Diário de

Pernambuco, impressos sob o título geral Da outra América (por se tratarem de textos

escritos durante a estadia nos Estados Unidos) ou, geralmente, obedecendo a uma simples enumeração, outras vezes, em títulos como Mencken e Acerca de Santayana7.

Em revisão muito posterior, o próprio Gilberto Freyre avalia que alguns desses textos se aproximam, por serem “experimentais e aventurosos, de pequenos ensaios”. Considera que são textos “antecipadores”, que foram trabalhados segundo as “sugestões” de “renovadores da ensaística”, constando “arcaísmos” “modernizados” à maneira “gilbertiana”. Pondera que a importância dessa produção se encontra “em suas antecipações” “de ideias e de conceitos só algum tempo depois estabelecidos ou aceitos”, sugerindo que seu valor “estaria em suas inovações de expressão, além de jornalísticas, literárias”. Assegura tratar-se da “primeira moderna expressão literária” brasileira, seja por sua repercussão entre os jovens, cujo o autor, um “inovador mal saído da adolescência”, chegou inclusive a ter imitadores, seja por se configurar como “pontos de partida para uma nada insignificante renovação estilística entre os jovens brasileiros na década de 1920”. São textos escritos no período concomitante “à notável revolução linguística que viria de São Paulo: da Semana de Arte Moderna” (FREYRE, [1978] 2016 p. 39-40) e, de fato, eles apresentam inovações de expressão, sendo o vocabulário de Nietzsche, precisamente, uma dessas inovações.

7 Só do Diário de Pernambuco, pode-se listar, entre os muitos, os seguintes textos: os de número 32, editado

em 1921, o de número 58, publicado em 1922, o de número 4, de 1923, um identificado com o número 28, datado de 1923, outro também numerado 58, divulgado em 1924, o artigo intitulado Um escritor português, datado de 13/12/1923, o artigo intitulado Otto Braun, de 5 de fevereiro de 1924, o de número 64, do ano de 1924, o de número 77, também de 1924, mais dois, identificados pelos números 79 e 80, e o artigo intitulado À rebours, datados de 1925, e o artigo Acerca de Santayana, publicado em 1926 e, mais, por fim, o artigo “Tendências atuais na literatura americana”, publicado na Revista do Brasil, em dezembro de 1923. Em 1978, esses textos foram revisados pelo próprio Gilberto Freyre, para serem reeditados na coletânea Tempo de aprendiz. Com exaltação, argumenta que eles representam atitudes modernistas, não “sectariamente “modernistas””, mas atitudes paradoxalmente também atadas às atitudes “regionalistas” e “tradicionalistas”. Freyre nega que tenham sido atualizados “o estilo”, embora admita “ter” realizado “recomposições de certos trechos ilegíveis”, corrigido alguns “erros de revisão”, além de procurar “tonar claras expressões que, para o leitor de hoje, seriam, talvez, obscuras”. Confessa ainda que procurou “recompor truncamentos” e as “deteriorações” causadas “pelo tempo”. Precisamente por isso, analisa-se aqui os textos nas fontes originais, expediente possível graças aos sites e portais que disponibilizam os materiais originais em versões fac-símiles, como é o caso da Hemeroteca Digital, da Biblioteca Nacional. Concomitantemente, coteja-se com os mesmos textos, revistos pelo próprio Gilberto Freyre, para a coletânea Tempo de aprendiz, organizada posteriormente, por José Antônio G. de Mello, na edição da editora Global, 2016. Não consta na coletânea os artigos Otto Braun e Um escritor português.

Quanto à sua produção ensaístico-interpretativa, consta a recepção de Nietzsche em Casa-Grande & Senzala, edições de 1933 e, mais extensamente, na edição de 1943. Bem como no livro Sobrados e Mucambos, de 1936 e o breve ensaio sociológico intitulado Futebol mulato, publicado em 1938, no Diário de Pernambuco. Nietzsche comparece ainda em estudos sociológicos mais metódicos e experimentados, quais sejam, os livros Problemas brasileiros de antropologia, de 1943, e em Sociologia: introdução

ao estudo dos seus princípios, de 1945.

Essa inovadora produção crítico-literária e ensaístico-interpretativa de Gilberto Freyre situa-se numa tradição brasileira modernista da qual fazem parte ensaístas como Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, entre outros, com os quais manteve constante diálogo crítico.

As fontes de Gilberto Freyre sobre Nietzsche

As fontes de contanto de Gilberto Freyre com o pensamento de Nietzsche podem ser divididas entre aquelas que aparecem em seus textos de crítica literária, consoante ao seu período de aprendizagem e formação acadêmica, temporalmente produzidos no período da primeira fase modernista, publicados em diários e periódicos, e aquelas fontes referidas nos ensaios de intepretação do Brasil. Diferente de outros modernistas, nota-se que em Gilberto Freyre a tradição de matriz francesa sobre Nietzsche não teve o mesmo peso, contraponteado pela tradição de língua inglesa. Ainda assim, sua leitura de livros do filósofo em tradução francesa deixou marcas em sua produção.

Entre as fontes de Nietzsche mais determinantes do seu momento de atuação enquanto crítico-literário encontram-se autores como Henry Louis Mencken, George Santayana e Havelock Ellis. Entre eles, Mencken é o que mais se destaca. Foi “Por intermédio de Mencken [que] Freyre descobriu o potencial de Nietzsche como crítico cultural” (GIUCCI, 2007 p. 125). E “por toda sua vida, Freyre se referiria com orgulho à carta de incentivo que recebeu desse “Nietzsche americano”, em resposta à cópia da tese de mestrado que o jovem estudante audaciosamente enviou ao famoso crítico” (BURKE e PALLARES-BURKE, 2009 p. 57). Há estudo dedicado a mostrar que “as raízes nietzschianas do conceito de identidade multirracial de Gilberto Freyre” provêm do influxo do pensamento de Nietzsche, ocorrido a partir da interpretação de Mencken, fundamental para a sua interpretação da miscigenação, explorada, posteriormente, em

Casa-Grande & Senzala (DEWULF, 2014 p. 93). De fato, inicialmente, o contato de

Freyre com a filosofia de Nietzsche é mediado pelas leituras (e aproximação pessoal) que fez de Mencken, especialmente o livro The philosophy of Friedrich Nietzsche, de 1908, cujo exemplar Freyre possuía, na edição de 1913. Realmente, Freyre demonstra profunda admiração por Mencken, chegou inclusive a reconhecer seu débito quanto à composição futura de Casa-Grande & Senzala, asseverando que a obra resulta das pesquisas para a sua tese, Social Life in Brazil in the Middle of the 19th Century, apresentada em 1923 à Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade de Colúmbia. Como ele mesmo confessará, trata-se de “Trabalho que Henry L. Mencken fez-me a honra de ler, aconselhando-me que o expandisse em livro. O livro, que é este [Casa-Grande &

Senzala], deve esta palavra de estímulo ao mais antiacadêmico dos críticos” (FREYRE,

1943 vol. 1 p. 38). Já Havelock Ellis, por sua vez, “teria provavelmente funcionado como um incentivador da postura nietzschiana que Freyre precocemente admirava” (PALLARES-BURKE, 2005 p. 109). Com efeito, durante o período de formação, livros de Henry Mencken e George Santayana sobre Nietzsche foram lidos, consultados e resenhados por Freyre.

Do momento em que escreve ensaios de interpretação do Brasil, a fonte que mais se destaca é Ruth Benedict. Embora também possamos incluir, novamente, Havelock Ellis e Mencken, além de Oswald Spengler, Alfred Zimmern e George Simmel. Mas é a obra de Ruth Benedict, Patterns of Culture, que se destaca; ela possibilita a Gilberto Freyre aplicar, classificar e interpretar manifestações culturais brasileiras com o auxílio da antítese conceitual apolínio/dionisíaco.

No período da sua formação, quando leu Humain, trop hummain, Freyre deixou as suas marcas de leitura na sua cópia da edição de 1921, da Mercure de France, na tradução de Alexandre-Marie Desrousseaux. Nesse momento, de “Nietzsche, como revela a marginália” de “sua cópia da tradução francesa”, Gilberto Freyre “havia aprendido que o talento e até mesmo o gênio não eram suficientes para produzir um grande homem” (BURKE e PALLARES-BURKE 2009 p. 46). Os sublinhados, traços à margem e comentário na marginália, as suas marcas de leitura quase apagadas aparecem no Prólogo, pois lê a 2ª edição, de 1886; aparece na seção 225, O espírito livre, um conceito relativo; na seção 292, Avante e na seção 521, Grandeza significa dar direção. No Prólogo, na seção 6, marcas indicam que lhe avultou as reflexões do filósofo sobre o caráter perspectivista (Perspektivische) de toda estimativa de valor. Da seção 225, destaca que o “espírito livre” “é um conceito relativo”, não porque lhe é próprio “ter opiniões mais

corretas”, mas porque “Normalmente, porém, ele terá ao seu lado a verdade, ou pelo menos o espírito da busca da verdade”. Da seção 292, sublinha o raciocínio do autor na passagem em que ele, no que concerne à história, recomenda que nos familiarizemos com ela e o seu “cauteloso jogo dos pratos da balança: “de um lado – de outro lado””. Na marginália da seção 521, comenta, sob a forma de interrogação: “E dar uma direção pessoal aos afluentes, dar [?] cultura não será um dom natural que nem todos têm?” (APALLARES-BURKE, 2005 p. 169).

O capítulo V do livro, intitulado Sinais de cultura superior e inferior, lhe causou forte impressão. Registrou, “em seu caderno de anotações”, um “plano” de visitas durante o estágio na Europa que “parecia seguir as recomendações feitas por Nietzsche sobre a necessidade de se levar em conta pontos de vista diferentes (“verschiedene Augen”) em toda atividade humana” (APALLARES-BURKE, 2005 p. 84). Em Sociologia, de 1945, observa-se passagens cuja a atmosfera argumentativa remonta a aforismos deste capítulo, sobretudo da seção 228, O caráter bom e forte e a seção 236, As zonas da cultura, na qual Nietzsche compara o que denomina de cultura tropical e cultura temperada.

O contato de Gilberto Freyre com o livro Humano, demasiado humano foi mais frutífero do que ele próprio poderia vislumbrar e menos ainda admitir. Significativo tanto para o momento da aprendizagem e formação, da atuação enquanto crítico literário no modernismo, que então se impõe e se consolida, após a Semana de 1922, quanto para o que ainda estava porvir, quando irá se aventurar no ensaísmo de interpretação do Brasil, já na segunda fase do movimento.

Nietzsche na produção crítico-literária de Gilberto Freyre

O primeiro artigo do Diário de Pernambuco em que Gilberto Freyre cita Nietzsche data de 23 de outubro de 1921. Nele, Freyre indica, claramente, ter tomado contato “com as ideias do profundo Nietzsche” por meio do livro de “Henry L. Mencken”. Livro em que as ideias do filósofo, julga Freyre, “são remexidas e vasculhadas com rara inteligência e conhecimento raro das espessas filosofias germânicas” (FREYRE, [1921] 2016 p. 147). Noutro artigo, intitulado Mencken, também publicado no Diário de Pernambuco, a 25 de outubro de 1923, novamente faz lembrar que Mencken escrevia “à maneira desse espantoso Nietzsche, que aliás tanto excitou os vinte e tantos anos do sr. Mencken”; não esquece de mencionar que ele “é o autor dum belo estudo sobre Nietzsche” (FREYRE,

1923 p. 03). Livro cujo exemplar havia ganhado de um amigo, intitulado “Philosophy of Friedrich Nietzsche”, publicado em 1908, depois reeditado em 1913, com correções e acréscimos, com o título “Friedrich Nietzsche”.

No artigo intitulado “Da outra América”, de 30 de julho de 1922, Gilberto Freyre informa e analisa uma comedia teatral que acaba de assistir: “What the public Wants”, de Arnold Bennett, que explora a pobreza do jornalismo norte-americano daquele momento. Ao discorrer sobre o contexto da apresentação e o conteúdo da peça, Freyre argumenta que a peça revela a influência da demagogia sobre a imprensa, tão ao gosto do público meio-educado. Adverte que ela apenas chancelou, justamente, o gosto da maioria. Por isso, sustenta que a peça pode ser “de prova à tese de Nietzsche, cujo maior horror era à mecanização das coisas em lugar da sua criação artística, à vitória da massa unida sobre a elite, ao truncar ou confusão de papéis entre senhor e escravo” (FREYRE, 1922 p. 03). Como em outros artigos, Freyre situa Nietzsche enquanto um autor elitista, isto é, que opõe, de um lado, como inferior, a massa, a maioria, os escravos, consumidores do jornalismo de “sensação” e, de outro, como superior, a elite, única capaz de produzir e apreciar uma literatura de “encanto” e “força”. Retrospectivamente, na introdução à coletânea Tempo de aprendiz, de 1979 (uma coletânea que reúne seus artigos publicados em jornais durante a adolescência e a primeira mocidade, entre 1918 e 1926, organizados em livro por José Antônio Mello), Freyre revisa e modifica a frase acima, substituindo os termos “senhor e escravo”: “ou à confusão de papéis entre superiores e inferiores” (FREYRE, 2016 p. 218). Ele mesmo reconhece, então, que nesse como em outros artigos dessa época há “Certo aristocratismo ou elitismo sob evidentes influências (...) de Nietzsche (...)”, entre outros autores e filósofos (FREYRE, [1978] 2016 p. 44).

Entre esses artigos, outro, bastante expressivo, data de 28 de outubro de 1923, intitulado/enumerado 29. Nele, Freyre situa Nietzsche como um escritor da “negação e da contradição”. Por isso, questiona: “Haverá ou não benefício em deixarmo-nos examinar, à voz dum Nietzsche ou dum Stirner travestido em inspector de saúde, nos mais íntimos valores intelectuais, morais e estéticos de que vivemos?” (FREYRE, 1923 p. 03). Em artigo anterior, de 20 de maio de 1923, havia feito um “paralelo já sugerido entre ler e comer”, sendo “Nietzsche” assinalado, ao lado de Schopenhauer, entre os escritores “hors-d’oeuvre”, isto é, como “mero estimulante do apetite”, advertindo que “O perigo de muito ler a Schopenhauer, como a Nietzsche, é a dispepsia, não da leitura deles mas das leituras a que nos excitam” (FREYRE, [1923] 2016 p. 250). Depois, no artigo de outubro de 1923, situa Nietzsche em oposição aos “escritores-entrées”, isto é, “das

entrées confortadoras”, como “São Tomás de Aquino”. Em contraste a estes, opõe os

escritores “cuja negação e contradição expressam não uma quase revolta contra certos instintos da espécie, como Nietzsche, mas contra os excessos de certas épocas”. Esse é um dos artigos mais significativos, no sentido de ser portador da difusa e aberta compreensão que Gilberto Freyre possui, à época, acerca de Nietzsche, como um escritor da “negação e da contradição”, compreensão que irá retornar, de maneira mais elaborada, na sua produção ensaística (FREYRE, 1923 p. 03).

No artigo Tendências atuais na literatura americana, publicado na Revista do

Brasil, em dezembro de 1923, Freyre destaca, entre as tendências literárias, Henry

Mencken e George Santayana, por ele reconhecidos como os mais importantes estudiosos norte-americanos de Nietzsche. De certa forma, Freyre produziu, enquanto crítico literário, em seus artigos e resenhas para o Diário de Pernambuco, meticulosas reflexões críticas a respeito dos trabalhos desses autores. Nesse artigo, trata das tendências da literatura de introspecção social americana do início do novecentos, empenhadas em “compreender e interpretar a vida nacional no que ela tem de mais seu e ao mesmo tempo de universal; de sondá-la nas suas correntes subterrâneas”. Bastante digressivo, julga que a literatura grega nos habituou a certo sabor de pessimismo na interpretação da vida. E que, nessa senda, “Nietzsche” nos mostra “a inclinação dos gregos para o mito trágico. Na sua obsessão da vida como puro fenômeno estético outra arte não queria Nietzsche senão a “arte forte””. Seu interesse, por fim, é antes de tudo avaliar que Ruy Barbosa, muito embora tenha sido um homem de conhecimentos, “não foi culto no sentido puro, alto, nietzscheano da palavra, faltando-lhe essa força íntima – a eurythmia dos gregos – que harmoniza quanto de esparso e divergente recolhe o espírito das leituras, dos museus, dos laboratórios”. (FREYRE, 1923 p. 303).

Ainda no mês de dezembro de 1923, no artigo Um escrito português, em que discorre sobre a literatura portuguesa do momento, “Nietzsche” é considerado como “quem mais forte negara os valores sociais de que vivemos, os modernos”, sendo visto como um autor “obcecado” pela ideia “do mundo como fenômeno estético” (FREYRE, 1923 p. 01). No ano seguinte, no dia 5 de fevereiro de 1924, aparece o artigo intitulado

Otto Braun, no qual faz considerações indiretas sobre Nietzsche. Nele, avalia que “a

filosofia de Nietzsche” é uma sorte de “Abismo donde o espírito não emerge o mesmo: sai clarificado ou combusto” (FREYRE, 1924 p. 02). Freyre chega a discorrer, muito ligeiramente, sobre a ruptura de Nietzsche com Wagner. Faz essa apreciação no artigo

quando sentiu o vazio em torno de sua superioridade, e o sufrágio dos raros amigos a enlanguecer-lhe a ânsia criadora, sem que em toda a Europa aparecesse um inimigo digno do seu gênio, fez de um dos raros amigos, seu inimigo”. Ao seu ver, “É esta” “a explicação da ruptura de Nietzsche com Wagner” (FREYRE, 1924 p. 03).

Depois, em artigo datado de 26 de outubro de 1924, ao discorrer sobre um texto de José Lins do Rego, Freyre aproxima a “teoria do poder”, de Nietzsche, a Louis- Gabriel-Ambroise, o visconde de Bonald, filósofo francês considerado como um dos expoentes da filosofia católica contrarrevolucionária. Segundo Freyre, “Num Brasil como o nosso, Nietzsche talvez escrevesse alguma coisa como a “teoria do poder”” (FREYRE, [1924] 2016 p. 428). Seguindo essa entonação aristocrático-conservadora, em outro artigo, intitulado À rebours, publicado a 31 de maio de 1925, encontra em Nietzsche elementos para argumentar em favor de uma “nova função do Estado”. Para tanto, alega que ao invés da “função de caridade e assistência a velhos, dementes etc.”, ao Estado “Cumpre manter os artistas e escritores reconhecidamente criadores, por meio de um imposto de admiração sobre a burguesia. A Nietzsche, não sei como escapou a ideia de semelhante sistematização” (FREYRE, 1925 p. 03). Observa-se essa mesma orientação aristocrática no texto do “Manifesto Regionalista”, onde Freyre argumenta que o Nordeste do período colonial, com a economia do açúcar, se tornou a “base” de “uma doce aristocracia de maneiras de gostos, de modos de viver e de sentir, tornada possível pela produção e exportação de um mascavo tão internacionalmente famoso” (FREYRE, 1996 p. 52).

Nessa produção crítico-literária de Gilberto Freyre, o pensamento de Nietzsche já desponta, em alguns textos, como guia de conhecimento aproveitado no âmbito da atividade de crítica. A seguir, na produção ensaístico-interpretativa, observa-se que a filosofia de Nietzsche aparece de forma ainda mais elaborada, ao fornecer a Freyre procedimentos metodológicos e avaliativos, por ele adotados para balizar investigações sociológicas e antropológicas sobre a cultura brasileira. Nessa produção, o pensamento de Nietzsche lhe oferece possibilidades metodológicas e avaliativo-cognoscitivas para pensar “o essencialmente humano no centro da organização social” brasileira (FREYRE, 1938a p. 04).

O afro-brasileiro como tipo “dyonisiaco”

No dia 15 de junho de 1938, o Diário de Pernambuco publica uma breve entrevista