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Interpretações nietzschianas da cordialidade brasileira : a recepção de Nietzsche em Sérgio Buarque de Holanda

Nietzsche no modernismo de Sérgio Buarque de Holanda

Com Sérgio Buarque de Holanda, de forma semelhante ao que acontece com Gilberto Freyre, a recepção da filosofia de Nietzsche se realiza, num primeiro momento, no âmbito das atividades exercidas na esfera da crítica literária e, num segundo, na produção ensaístico-interpretativa, em fundamentais produções para o modernismo da primeira e da segunda fase. Seu contato com o pensamento do filósofo, portanto, começa ainda na época de estudante, quando começa a escrever artigos e resenhas, aprofundando- se em seus ensaios de interpretação do Brasil, com os quais apresenta contribuições verdadeiramente significativas para o movimento literário modernista, como é o caso do ensaio Raízes do Brasil. Sérgio Buarque de Holanda realiza, nessa produção crítico- literária e ensaístico-interpretativa, uma recepção avaliativo-cognoscitiva da filosofia de Nietzsche na justa medida em que nela encontra determinados procedimentos metodológicos e valorativos para a fundamentação das suas próprias reflexões histórico- sociais sobre o Brasil.

Sérgio Buarque foi um crítico radical do intelectualismo clássico, com seus modelos abstratos e genéricos, tão distantes da realidade em sua diversidade, riqueza e vitalidade. Ele não poupou críticas ao nacionalismo ufanista da ala conservadora do modernismo, com seu nacionalismo abstrato e piegas, defendendo, por sua vez, um nacionalismo autônomo, enquanto expressão do nacional. Ao invés de partir de uma cultura universal e/ou estrangeira, preferia tomar como base da sua crítica e orientação intelectual o nacional e a partir deste rumar ao universal. De maneira que sua atuação no modernismo esteve sempre voltada para a busca “de uma cultura local independente que recolhe os elementos que são necessários para o seu desenvolvimento e, desta maneira, contribui para ampliar o próprio universal”. Eis porque, já em 1926, critica “duramente o intelectualismo” de certos grupos do modernismo, “que insistia em impingir uma concepção pronta e acabada da expressão nacional” (AVELINO, 1987 p. 02). De maneira

que os textos de Sérgio Buarque de teor crítico-literário em que a filosofia de Nietzsche comparece, abaixo examinados, escritos e divulgados sob a atmosfera modernista, foram decisivos para o aprofundamento de aspectos renovadores do movimento, porquanto desenvolviam e aprofundavam o projeto estético-renovador da primeira fase do movimento.

Entre os seus textos de crítica-literária produzidos durante a primeira fase do modernismo nos quais constam aspectos da filosofia de Nietzsche, podem ser incluídos “O homem-máquina”, publicado na revista A Cigarra, em 1921; “André Gide I”, publicado na revista América Brasileira, em 1924 e “Perspectivas”, publicado em 1925, na revista Estética. Entre a transição e o estabelecimento da segunda fase do modernismo, constam ainda o texto intitulado “Tristão de Athayde”, de 1928, divulgado no Jornal do

Brasil; o artigo publicado no diário de São Paulo chamado a Folha da Manhã, em 1935,

intitulado “Elisabeth Förster - Nietzsche”; e, por fim, o texto intitulado “A vida de Paulo Eiro”, de 1940, divulgado no jornal carioca Diário de Notícias, quando assume o lugar de Mário de Andrade.

Já entre os textos de aspecto ensaístico-interpretativo nos quais Nietzsche comparece, abaixo examinados, compostos durante a segunda fase do modernismo, podem ser incluídos Corpo e alma do Brasil: ensaio de psicologia social, publicado pela revista Espelho, em 1935; e, finalmente, o livro Raízes do Brasil, edição de 1936. O recorte deixa fora outros textos de Sérgio em que Nietzsche aparece, como o texto O atual

e o inatual em Leopoldo von Ranke, de 19749. Para a leitura e análise de Raízes do Brasil, adota-se aqui a edição crítica organizada por Pedro Meira Monteiro e Lilia Moritz Schwarcz, com estabelecimento de texto e notas de Mauricio Acuña e Marcelo Diego, de 2016, que permite aos pesquisadores examinar o texto da primeira edição, de 1936.

Os textos de Sérgio Buarque de Holanda escritos quando ainda era um jovem crítico literário revelam que entre as suas fontes acerca de Nietzsche nesse período encontram-se Richard M. Meyer, André Gide e Alfred Bäumler. Sendo, este último, nada menos do que a “figura chave para a assimilação de Nietzsche no âmbito ideológico do III Reich” (MONTINARI, 1982). Todavia, malgrado o teor ideológico das suas primeiras fontes, nos seus escritos Sérgio Buarque se opõe aos modernistas que comprometem o pensamento de Nietzsche com as ideologias autoritárias. Ele se posiciona ao lado dos

9 Texto examinado por CHAVES, Ernani: “O historicismo de Nietzsche, segundo Sérgio Buarque de

Holanda”. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy (Orgs.). Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Campinas/Rio de Janeiro: Editora da Unicamp/EdUERJ, 2011 (1ª reimpressão), p. 397-412.

modernistas que procuravam desfazer tal associação, que se preocupam com a recuperação do pensador das apropriações ideológicas totalitaristas, procurando libertá- lo das falsificações forjadas por Elisabeth Förster e por editores como Bäumler. Coerente, portanto, com seu engajamento contra a guerra e o fascismo, enquanto inveterado debatedor e crítico dos intelectuais ativos nos movimentos verde-amarelo e integralismo.

Já os textos da fase ensaístico-interpretativa revelam que entre as suas fontes de Nietzsche desse período constam o filósofo Oswald Spengler, o sociólogo Max Weber, os filósofos Karl Jaspers e Ludwig Klages e o sociólogo George Simmel. A sua biblioteca pessoal, instalada na Unicamp, mostra a evolução do seu contato com as obras de Nietzsche: depois de ter iniciado sua leitura em traduções francesas, passa depois para a leitura na edição Kröner, na década de 1930. Em seguida, irá ler na edição Schlechta, de 1954 e, por fim, acompanhará a edição crítica de Giorgio Colli e Mazzino Montinari, que inicia publicação a partir de 1967.

Durante o período em que atua no movimento modernista da primeira fase, Sérgio Buarque escreve textos nos quais Nietzsche comparece ora citado explicitamente, ora implicitamente, ora por meio de expressões como os “super-homens”, ora referindo-se a personagens como o “Zarathrusta”. Nessa produção crítico-literária, às vezes de matiz polêmico, observa-se, como já indicado, um crítico que não compromete o filósofo com ideologias autoritárias, nacionais ou estrangeiras, mas, ao contrário, observa-se um crítico mais inclinado a conciliar aspectos valorativos da sua filosofia com o rumo da renovação estética do movimento vanguardista atuante em São Paulo, ligado a Mário e Oswald de Andrade.

Já nos escritos ensaísticos, estendendo ainda mais essa característica, agora no âmbito do projeto político da segunda fase do modernismo, a filosofia de Nietzsche mostra-se como um guia de conhecimento, seja, particularmente, enquanto fonte de procedimentos metodológicos e avaliativo-cognoscitivos estruturadores de argumentos e teses centrais de Raízes do Brasil. Nietzsche é então adotado para refletir sobre as raízes da formação da identidade afetiva/emotiva/sentimental do tipo brasileiro, tanto no âmbito psicológico dos afetos que formaram o tipo do “homem cordial”, quanto ainda no âmbito ético e político, envolto pela noção geral do dever de uma nação.

Sérgio Buarque de Holanda começa a empregar o vocabulário proveniente da filosofia de Nietzsche em sua produção intelectual já no início dos anos de 1920, coincidindo com o período de atuação na frente modernista empenhada na renovação estética da primeira fase do movimento. À época, a incidência do nome de Nietzsche e do vocabulário da sua filosofia nos diários e periódicos já era acentuada. Numa das revistas de maior circulação do Estado de São Paulo, A Cigarra, tal incidência se mostra sobretudo em expressões como “eterno cyclo” e “super-homem”. A revista chegou a publicar em suas páginas quinzenais traduções dos aforismos e de trechos retirados das obras de Nietzsche, transcritos na forma de máximas ou de sentenças, explorando o seu sentido de proverbio e de aforismo. O jornalista e escritor Sud Mennucci, em número de fevereiro de 1919, publica o artigo intitulado “Nietzsche e a Guerra”, no qual defende o “filósofo de Sils-Maria” das acusações de ser o “inspirador da passada conflagração” (a 1ª Guerra Mundial), ponderando que ele “não pregou a Guerra”. Para tanto, examina e cita passagens do “Crepusculo dos Deuses”, da “Genealogia da moral, 3.a dissertação, 26” e de “Par de la Bien et le Mal, nº 254” (MENNUCCI, 1919 p. 28).

De tal maneira que, no texto de Sérgio Buarque, intitulado O homem-máquina, as expressões “Zarathrustas” e “super-homens” não soavam estranhas ao leitor de A Cigarra (número 155, de março de 1921), já familiarizados com expressões da filosofia Nietzsche e debates acerca de sua posição frente ao pangermanismo da época. Neste momento, fazer literatura e crítica literária eram atividades nas quais deparar-se com tais expressões havia se tornado algo inevitável, sendo o receptor/autor brasileiro impelido a incorporá-las e, mais ainda, a explorar as suas possibilidades linguísticas, estéticas e políticas. No texto de Sérgio Buarque, a expressão o “homem-máquina” representa o tipo que sucumbe a “mentira do utilitarismo”, segundo à qual “a felicidade só é atingida pela simplificação extrema da vida”. Por isso mesmo, contra o “espírito utilitário”, critica os efeitos do progresso e das tentativas utilitárias de simplificar a vida, que acabam por tornar o “próprio homem” um “objeto de máquina adaptado e especializado a funções próprias”. Lamenta que sobre isso, “entretanto, não se quiseram convencer os Zarathrustas da nova espécie de super-homens, – os homens máquinas”, já disseminados em “escolas como o futurismo”. Extraídas de seu contexto original e ressignificadas em outro completamente distinto, as expressões sugerem a adesão do autor a um expediente muito praticado à época: o de incorporar a terminologia de Nietzsche às suas produções (HOLANDA, 1921 p. 22). Nesse texto, porém, esse expediente aparece de forma ainda tímida e metafórica. Mas ganhará mais espaço na produção de Sérgio Buarque quando ele passar mobilizá-lo

em favor da renovação crítico-literária do modernismo e, depois, em benefício de suas interpretações sobre as raízes do Brasil.

Como já indicado anteriormente, a incidência do nome de Nietzsche e de expressões referentes a sua filosofia nos diários e revistas do período modernista era expressiva. Na revista América Brasileira, dirigida por Elísio de Carvalho e Renato Almeida, essa incidência é ainda mais significativa, sobretudo porque comparece tanto entre os intelectuais empenhados no movimento modernista estético-renovador quando ainda entre os intelectuais dissidentes, atuantes na ala conservadora do modernismo. Entre os autores da ala renovadora, o filósofo é citado em texto de Mário de Andrade e de Sérgio Buarque de Holanda; entre os autores pertencentes à ala ideológica, ele aparece citado principalmente em produções de Elísio de Carvalho e de Renato Almeida. Em seu número 31, de julho de 1924, numa seção chamada “Bibliografia”, dedicada a informar os leitores sobre as publicações de escritos inéditos de autores estrangeiros, encontra-se uma breve resenha sobre as “Obras completas de Nietzsche”, editadas “sob a direção da Senhora Elisabeth Förster Nietzsche, irmã do filósofo, e do Sr. Max Oehler, a qual já tem 10 volumes publicados”. Não consta assinatura, podendo ter sido escrita provavelmente por Renato Almeida ou Elísio de Carvalho. O texto informa e avalia elogiosamente o material que reúne “os Ensaios de Mocidade, quase todos inéditos”, das “tendências de Nietzsche dos 15 aos 20 anos” (ANÔNIMO, 1924 p. 233).

No artigo André Gide I, publicado no número 26 da revista América Brasileira, de fevereiro de 1924, Sérgio Buarque trata precisamente de uma obra de criação literária que, em certa medida, fora escrita sob inspiração das obras de Nietzsche, como era caso do romance L’immoraliste, de André Gide. Provavelmente, Gide sabia que Nietzsche costumava definir-se precisamente como “imoralista” (Immoralist) (MA I/HH I Prefácio § 1, KSA 2, p. 15; EH/EH, As extemporâneas, § 2, KSA 6, p. 139 e Humano, demasiado humano, § 6, KSA 6, p. 328). Um dos títulos da planejada e depois abandonada obra chamada Transvaloração de todos os valores intitulava-se, justamente, “O imoralista”. No seu artigo, Sérgio Buarque localiza na noção de felicidade uma das preocupações do escritor francês e, precisamente, “Nesse como em muitos outros pontos [identifica quanto] o seu pensamento coincide estranhamente com o de Nietzche”. Chega a essa conclusão na esteira do crítico alemão Richard M. Meyer, que via em Gide “o anunciador de uma nova geração inimiga de qualquer contato com o passado, um discípulo francês de Nietzche” (HOLANDA, 1924 p. 23). Richard M. Meyer, até aquele momento, já havia publicado numerosos trabalhos sobre Nietzsche. Havia chegado, inclusive, a ser

nomeado, em 1910, para o conselho da Fundação do Nietzsche-Archiv, mas depois de disputas com Elisabeth Förster, renunciou, em 1913. É provável que Sérgio Buarque tenha lido alguns de seus trabalhos.

Mais adiante em seu artigo, Sérgio julga que os “preceitos” de Gide fazem lembrar a poesia “afirmativa da vida”, do poeta Robert Browning. Para melhor discorrer sobre o tema da felicidade, encontra na poesia deste motivo para citar um “aforismo” de Nietzsche. O poeta inglês havia publicado, em 1840, um poema ficcional sobre a vida de Sordello da Goito, um trovador lombardo do século XIII representado no Canto VI do Purgatório de Dante Alighieri. Segundo Sérgio Buarque, “muitos anos depois Nietzche escreve este aforismo que podia ser a moralidade daquele drama pungente”. E, assim, faz a citação de um breve trecho central do Prólogo de Zarathustra: “Irmãos, eu vos suplico,

fiqueis fieis à terra e não acrediteis naqueles que vos seduzem com a esperança de uma

outra vida! São envenenadores, conscientes ou não” (HOLANDA, 1924 p. 23). Com essa citação, Sérgio Buarque propõe que tanto em Gide quanto em Browning e, mais particularmente, em Nietzsche encontram-se as características de uma concepção afirmadora da vida, à qual, entrelinhas, subscreve, em oposição àquela afirmação da vida trágica definida de maneira verborrágica, ideológico-conservadora e ético-religiosa, seja por Elísio de Carvalho e/ou Alceu Amoroso Lima. Em debate com Alceu Amoroso Lima, Sérgio Buarque recorre a essa mesma concepção afirmadora da vida, enquanto elemento moral e/ou valorativo, proveniente da filosofia de Nietzsche, que lhe permite fazer avançar, no plano crítico-literário, o projeto de renovação estética do modernismo.

Não é sem razão ou por simples casualidade que a revista Estética, sob direção e administração de Prudente de Morais Neto e de Sérgio Buarque de Holanda, em seus três números semestrais editados, entre setembro de 1924 e julho de 1925, apresente referências a Nietzsche em textos de autores chaves do modernismo. Como visto já acima, aparecem referências a Nietzsche em textos de Graça Aranha, de Renato Almeida e do próprio Sérgio Buarque de Holanda. Nesses dois últimos, sobretudo, o pensador alemão baliza reflexões provocadoras e aprofunda aspectos contrastantes do movimento. O texto de Sérgio Buarque, publicado no terceiro e último número da revista Estética, com o título

Perspectivas, apresenta reflexões que convergem com as do filósofo acerca do caráter

perspectivista da vida: “a Perspectiva (Perspektivische)” como “a condição básica de toda a vida” (JGB/BM, Prólogo, KSA 5, p. 12). Além disso, a sua crítica à linguagem e à ciência mantém semelhanças intrínsecas com as do pensador, em particular com a

reflexão desenvolvida na seção 11 de Humano, demasiado humano, intitulada “A linguagem como pretensa ciência” (MA I/HH I, § 11, KSA 2, p. 30-1).

Abaixo, pode-se ler o início e trechos seguintes do texto de Sérgio Buarque a esse propósito:

As palavras depositaram tamanha desconfiança no espírito crédulo dos homens, que estes acabaram por lhes voltar as costas. A gente começa a admirar-se de que uma porção de civilizações tenha enxergado incessantemente na letra qualquer cousa que não seja uma negação de vida – negação formal, está claro, mas nem por isso menos eficiente (...). Nada do que vive se exprime impunemente em vocábulos (...). O ato elementar de definir, que se encontra à base de toda ciência humana, implica o propósito de instalar todo o objeto de conhecimento numa continuidade fixa e inalterável. (...) o próprio impulso que levou os primeiros homens a gravar desenhos nas paredes das cavernas participa muito, não de um desejo de libertação como já se tem dito (isto é libertação no sentido de exaltação: correspondendo a uma expansão de vitalidade), não de um esforço de resistência contra o aniquilamento, mas ao contrário, e acentuadamente, ao desejo invencível de negar a vida em todas as suas manifestações (...). Direi provisoriamente que a vida, apesar de tudo, continua a nutrir sub-repticiamente e por uma espécie de verba secreta as regiões mais ocultas de nossas ideologias (HOLANDA, [1925] 2014 p. 272).

Agora, pode-se, a seguir, confrontá-lo com o trecho inicial da seção 11 do livro de Nietzsche:

– A significação da linguagem para o desenvolvimento da civilização está em que, nela, o homem colocou um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou bastante firme para, apoiado nele, deslocar o restante do mundo de seus gonzos e tornar-se senhor dele. Na medida em que o homem acreditou, por longos lances de tempo, nos conceitos e nomes das coisas como em aeternae veritates, adquiriu aquele orgulho com que se elevou acima do animal: pensava ter efetivamente, na linguagem, o conhecimento do mundo. (MA I/HH I, § 11, KSA 2, p. 30-1).

As reflexões de Nietzsche sobre a linguagem remontam aos seus escritos do período de juventude, seja, por exemplo, a Sobre verdade e mentira no sentido

extramoral. Nesse texto, considera que a linguagem contribui para que ocorra certo

dogmatismo epistemológico, ontológico e lógico, no sentido de fazer acreditar que é capaz de apreender as coisas como elas são. Partindo da “distinção kantiana entre fenômeno e noumenon”, procura “mostrar que, na medida em que não se tem acesso à coisa-em-si, as palavras não correspondem às próprias coisas”. Já em Humano,

demasiado humano, abandona o “referencial kantiano” e passa a realizar a crítica à

linguagem a partir da “crítica positivista à metafísica”. Nessa direção, critica o caráter simplificador da linguagem que, com suas palavras e conceitos, abriga “a crença numa verdade inscrita no mundo, numa verdade que só poderia ser expressa em palavras”, sendo antes um “perigo para a liberdade do espírito” (MARTON, 2016 p. 286).

Mantendo certa convergência com o pensamento de Nietzsche, em seu texto Sérgio Buarque também desconfiança da linguagem, pretensamente entendida enquanto maneira única de conhecer as coisas. Tal como o filósofo, também nega que as palavras possam traduzir ou transmitir o que as coisas são em si mesmas. Em ambos, vemos que as suas respectivas críticas se reportam contra a pretensão redutora das palavras, no sentido de pretenderem ser portadoras de conhecimento verdadeiro, seguro e fixo. Nesse pondo, é possível verificar, entre outras coisas, que a filosofia de Nietzsche, na vertente de sua dura crítica às verdades dogmaticamente estabelecidas por meio da linguagem, se faz sentir na crítica de Sérgio Buarque à tradição dogmática do modernismo, bem como na sua crítica da linguagem e da ciência. Enquanto intelectual empenhado no “elogio da inquietação”, ele recebe o pensamento de Nietzsche enquanto guia de conhecimento capaz de com ele tomar “uma posição que defende o fluxo da vida”, portanto, “com um forte pendor para o vitalismo nietzschiano” (THIENGO, 2011, p. 26-93). A crítica de Nietzsche à concepção metafísica do ser como estabilidade, permanência e imutabilidade é recebida por Sérgio Buarque como uma valiosa estratégia epistemológica e avaliativa com o qual ele pôde criticar os modernistas da vertente conservadora, tão apegados a valores concebidos como permanentes e imutáveis.

Essa visão vitalista e/ou afirmadora da vida e, igualmente, perspectivista presentes no texto de Sérgio Buarque convergem com as reflexões epistemológicas e axiológicas de Nietzsche, nas quais este considera a linguagem, o conhecimento e os impulsos enquanto perspectivas, não havendo, portanto, valores absolutos, sendo os valares “constituídos por estimativas perspectivísticas, que traduzem as condições de conservação e intensificação de determinadas espécies de vida” (CORBANEZI, 2016 p. 337). Se, para Nietzsche, a linguagem se mostra perigosa, pois leva os homens a acreditarem ter alcançado a verdade das coisas nomeadas, para Sérgio Buarque, não é diferente, uma vez que ele também considera que a linguagem realiza uma “negação de vida – negação formal”, mas “nem por isso menos eficiente”. Portanto, essa recepção da filosofia de Nietzsche guia, até certo, a produção crítica de Sérgio Buarque e, mais ainda, seu aprofundamento de aspectos basilares do modernismo, como o combate aos autores