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O principal objetivo perseguido ao longo desta tese foi o de comprovar a proposição de uma recepção parcial da filosofia de Nietzsche no Brasil entre os anos de 1876 e 1945, conforme a definição da filósofa Agnes Heller, em seu livro A Filosofia

Radical. Com essa base teórico-filosófica, foi possível identificar e comprovar, mais

especificamente, uma recepção ideológico-política e avaliativo-cognoscitiva da filosofia de Nietzsche nesse período. O fio condutor adotado para evidenciar essa recepção foi o exame detalhado da trajetória do emprego do vocabulário da filosofia nietzschiana, então traduzido e incorporado ao léxico da língua nacional, inicialmente, como visto no primeiro capítulo, entre autores do movimento germanista, em seguida, no segundo capítulo, entre os autores do período pré-modernistas e, por fim, nos capítulos seguintes, entre os autores do movimento modernista, em particular na basilar tríade de ensaístas do movimento: Paulo Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.

Cabe agora apresentar de forma sucinta os ganhos obtidos. A comprovação da hipótese permitiu verificar que essa recepção ideológico-política e avaliativo- cognoscitiva da filosofia de Nietzsche ocorrida nesse período da história da cultura brasileira, malgrado a sua parcialidade, acentuou, de um lado, a renovação crítico-literária e ensaístico-interpretativa do modernismo e, de outro, o seu conservadorismo político- ideológico, consolidado a partir da segunda fase do movimento. Por conseguinte, ficou patente que essa recepção, primeiro: abriu espaço para uma futura recepção filosófica do pensamento nietzschiano no âmbito acadêmico universitário e, segundo: que ela ainda permanece repercutindo na cultura nacional, nas mais diversas áreas, nas artes e nas ciências humanas e, tanto mais ainda, continua a refletir no léxico da língua, em expressões hoje cristalizadas, que, outrora, no horizonte da renovação cultural promovida pelo modernismo, tiveram papel fundamental na ruptura com o tradicionalismo passadista, com o arcaísmo da língua portuguesa de Portugal e com a consolidação do ensaísmo de interpretação do Brasil. As disputas e desafios em torno das traduções e incorporações do vocabulário da filosofia nietzschiana alargaram o alcance da língua receptora: neologismos foram criados, enriqueceu-se a língua de chegada com imagens, com metáforas, com palavras novas, portadoras de significações e sentidos variados e polêmicos, com procedimentos heurísticos estruturais, metodológicos e valorativos adotados enquanto guias para a construção de novos conhecimentos.

Ao longo dos capítulos, a parcialidade dessa recepção se mostrou evidente, por um lado, entre os autores/receptores que se apropriaram de aspectos parciais da filosofia de Nietzsche de maneira irrefletida, mobilizando o vocabulário, argumentos, o estilo e a linguagem do filósofo em favor de ideias conservadoras; ainda em uma completa dependência das traduções, comentários e interpretações estrangeiras. Elísio de Carvalho e Plínio Salgado representam bem esse tipo de recepção parcial ideológico-política da filosofia de Nietzsche no Brasil. Por outro lado, essa parcialidade também se mostrou evidente entre os autores/receptores que se apropriaram de aspectos parciais da filosofia de Nietzsche de maneira refletida e consciente, mobilizando procedimentos metódicos e valorativos do pensador para guiar a construção crítica e teórica de pesquisas próprias. Ficou evidente que Paulo Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda apresentam-se como casos exemplares desse tipo de recepção parcial avaliativo- cognoscitiva da filosofia de Nietzsche no Brasil do período modernista.

Portanto, a recepção brasileira de Nietzsche deixou um significativo legado linguístico, alcançado pelo esforço de tradução de sua obra para a língua portuguesa brasileira. Dos primeiros vestígios de recepção até a sua consolidação, observou-se que a tradução do vocabulário da filosofia nietzschiana no Brasil se estabeleceu mediante um empreendimento realizado ao longo de décadas de disputas na escolha dos léxicos. Teve, mais exatamente, papel relevante para o projeto modernista de renovação da língua portuguesa/brasileira. Por meio das traduções realizadas por autores/receptores modernistas é que, em larga medida, os vocábulos da filosofia de Nietzsche começaram a gradualmente se consolidar no léxico da língua nacional e, embora hoje demostrem desgaste e sentido histórico comprometedor, sobretudo por causa de suas tendências ideológicas adquiridas ao longo da trajetória, alguns ainda são tradicionalmente aceitos. Dessa maneira, a recepção brasileira do pensamento de Nietzsche enriqueceu de expressões e de sentidos novos a língua receptora, ampliou seu âmbito de alcance do estilo e do seu sentido do ritmo, aumentou, por conseguinte, a perspectiva intelectual do receptor. Além do mais, as traduções brasileiras apresentam uma rica contribuição histórico-crítica para o entendimento da obra de pensamento traduzida. A iniciativa modernista de traduzir e incorporar ao seu projeto cultural o vocabulário da filosofia de Nietzsche abriu novas possibilidades de criação, de interpretação, de reflexões críticas e epistemológicas. Em conformidade com o pensador, constituíram-se como “exercícios de traduções de um idioma para outro” capazes de “estimular de forma mais frutífera o sentido artístico da própria língua” (BA/EE, § Vortrag II, KSA 1, p. 677).

Ao longo desta tese, sobretudo a partir do terceiro capítulo, observou-se que o emprego das traduções do vocabulário da filosofia de Nietzsche em textos de teor crítico- literário e ensaístico-interpretativo produzidos por autores modernistas possuíam, segundo o tratamento dado pelos diferentes autores e gêneros textuais, significações diversas, não raro, completamente contrapostas. Foi por iniciativa do movimento modernista que as traduções dos seus vocábulos centrais da filosofia de Nietzsche se transformaram em “palavras-chave”, em jargões, mobilizados por diferentes movimentos internos do movimento. Mais extensamente, suas traduções circularam e produziram significativas implicações ideológico-políticos e teórico-metodológicos na crítica literária e no ensaísmo de interpretação do Brasil. Verificou-se que em geral essas traduções não transmitiam um conceito filosófico preciso, estando antes marcadas pelas oscilações de caráter léxico linguístico, no sentido da variação ortográfica no emprego do verbete e, igualmente, no sentido semântico, com suas modulações, conotações e significados que variavam consideravelmente, entre as duas fases do modernismo.

De forma geral, em termos teóricos as traduções dos vocábulos derivados da filosofia de Nietzsche não formavam uma conceituação precisa ou bem definida e não chegavam, portanto, a constituir-se enquanto conceito filosófico propriamente dito. Se tornaram uma referência comum da época, como quê slogans, palavras que não ficaram restritas à linguagem teórico-conceitual da filosofia, porquanto se difundiram também na linguagem cotidiana. De modo que, geralmente, os usos efetivos da terminologia central da filosofia de Nietzsche eram indissociáveis do contexto do receptor, no caso, com seu uso arbitrário e sem critérios, recebendo-a de forma parcial e empregando-a como doxa, como palavra-chave hipostasiada, de uso comum, sem significação precisa, mero jargão utilizado por todos, sem uma proposição conceitual uniforme. Tratava-se, portanto, de uma recepção da filosofia de Nietzsche que se efetivava, sob a forma, parcial, da tradução de vocábulos/palavras, mas não ainda de sua recepção filosófica, completa. Não obstante, o que principalmente se procurou destacar é que esses vocábulos eram aproveitados enquanto guias de conhecimento, quase sempre, de conhecimentos científicos de viés histórico-sociológico.

Nesse sentido, pôde-se constatar e comprovar que a recepção da filosofia de Nietzsche realizada pelo modernismo aprimorou e consolidou um vocabulário até então inexistente no léxico da linguagem nacional. Vocabulário esse que, em autores como Paulo Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, aparece entranhado à estrutura argumentativo-conceitual das suas primeiras pesquisas histórico-sociais, fundadoras de

uma nova tarefa: a de compor ensaios de interpretação do Brasil. Ao longo desta tese, constatou-se que sem a recepção de Nietzsche no Brasil os autores do movimento germanista não teriam celebrado com o mesmo entusiasmo o tema da “morte da metafísica”, nem alcançado o mesmo ânimo para fazer frente ao predomínio do positivismo francês; mostra que entre os pré-modernistas, sem ela, não teria havido certas tentativas de compreensão da realidade nacional, nem a inusitada defesa da emancipação feminina, ancoradas em aspectos do pensamento de Nietzsche; evidencia que o retrato da descoberta e colonização do Brasil ensaiado por Paulo Prado não teria por fundamento principal dessa descoberta e colonização precisamente a “vontade de poder”, no sentido geral nietzschiano da vontade de poder enquanto força de expansão, domínio e subjugação. Esta tese mostra que sem a recepção de Nietzsche no Brasil a pesquisa de Gilberto Freyre sobre o patriarcado brasileiro talvez não tivesse chegado a compreender o negro como um tipo dionisíaco, o indígena como tipo apolíneo e o mulato, surgido da miscigenação, como um tipo ressentido, que os valores da senzala, como a cordialidade, teriam vencido sobre os valores dos senhores, da casa-grande; esta tese constata que sem a recepção de Nietzsche no Brasil a crítica de Sérgio Buarque ao conceito do homem cordial não teria sido a mesma, não haveria a associação do homem cordial com o homem de rebanho nietzschiano, com o cristão compassivo.

Sem a recepção da filosofia de Nietzsche no Brasil, tal como ela se inicia, no final do século XIX e se desenvolve, nas primeiras décadas do XX, certos contornos do movimento modernista, como a renovação crítico-literária e ensaístico-interpretativa e o conservadorismo político-ideológico não teriam sido exatamente os mesmos. Na primeira fase do movimento, neologismos como “sobrehomem”, “Pró-homem”, “Super-homem”, vocábulos como “dionisíaco”, “apolíneo”, “ressentimento” e expressões como “vontade de poder/poderia/domínio/potência”, “eterno recomeço/eterno regresso”, “transmutação/inversão de/os valores” surtem efeitos inovadores na linguagem e nas pesquisas estéticas, etnográficas e histórico-sociais, dando voz a aspectos da cultura brasileira até então recalcados. Embora não chegassem, em geral, a portar uma conceituação filosófica bem definida, estavam em consonância e aprofundavam o projeto modernista voltado para o desejo de renovação da língua e aprofundamento das pesquisas de interpretação do Brasil. Em seguida, na segunda fase do movimento, com a ala conservadora do modernismo, esses vocábulos passam a ser usados à exaustão, se tornam gastos, rotineiros, esquece-se que eram novas unidades léxicas ou neologismos, já não exprimem mudança na linguagem, eram, então, irrefletidamente integrados pelo

nacionalismo autoritário, incorporados em favor de uma ideologia nacionalista reacionária e autoritária. Assim, a recepção da filosofia de Nietzsche realizada pelo movimento modernista brasileiro possui componentes negativos e positivos, bem como reacionários e progressistas, os quais precisaram ser cuidadosamente analisados, dada a importância de seu legado para a cultura brasileira do período.

O neologismo “Super-homem” é representativo da vitória de uma tradução da palavra Übermensch incorporada pelo modernismo. Essa tradução se manteve predominante e quase única até 1954, quando Mário Ferreira dos Santos passa a traduzir a palavra por “Além-Homem”. O neologismo “Super-homem” coloca em evidência uma considerável confusão em torno da tradução da palavra Übermensch para a nossa língua. De início, era só mais uma das traduções adotadas, aparecendo ao lado de outras, como “sobre-homem” e “Pró-homem”. Atualmente, já muito desgastada, a palavra “Super- homem” serve para indicar a personagem da indústria cultural e, no que diz respeito ao conceito do filósofo, indica, entre outras coisas, ser devedora da interpretação nazista de Nietzsche. Como visto no terceiro capítulo, essa palavra começou a circular no Brasil ainda no final do século XIX e já por volta de 1922 não passava de um jargão gasto, abundantemente difundida pela imprensa diária e periódica. Jornais e revistas da época mostram que era amplamente empregada, tanto de maneira pejorativa quanto extravagante. A partir de 1928, ganha destaque na publicidade cinematográfica, quando o título do filme do cineasta austríaco Josef von Sternberg (intitulado The Dragnet, considerado perdido) é traduzido no Brasil por “Super-homem”. Conforme anúncio divulgado no Correio Paulistano, o filme “o Super-homem” era um “drama criminalista”, tendo George Bancroft como ator principal, que soube criar uma personalidade nova para o cinema da época, considerada “uma personalidade máscula, que irradia energia, coragem e iniciativa” (ANÚNCIO, 1928 p. 12). Com esse título, é bem possível que a personagem do filme tenha contribuído para formar um imaginário em torno da palavra Super-homem, mesmo para aqueles que não perdiam totalmente de vista que se tratava de uma palavra derivada do termo Übermensch, conforme a filosofia de Nietzsche. Ela não possuía definição filosófica precisa, havia se tornado uma palavra comum, tato que eram chamados e/ou intitulados como ‘super-homens’, seja para exaltar, seja para depreciar, personalidades como Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Henri Bérgson, Mussolini, Wagner, o próprio Nietzsche, Vitor Hugo, Ibsen, D. Pedro II, dentre outros.

Na recepção acadêmica de Nietzsche atual, quanto à tradução do termo

semelhante, “Além-Homem”, que substituem “Super-homem”. Como visto no terceiro capítulo desta tese, essas traduções (“além-do-homem” e “Além-Homem”) foram criadas num contexto histórico em que era necessário afastar, inocentar e reabilitar a filosofia de Nietzsche das apropriações indevidas realizadas por movimentos sociais, políticos e científicos conservadores. No entanto, com o passar do tempo, elas criaram um problema que somente agora os estudos de recepção podem explicitar em toda a sua relevância histórico-filosófica. Diferente do tradicional “Super-homem”, as palavras “além-do- homem” e “Além-Homem” carregam o defeito de remeter o termo Übermensch à ideia de um além de caráter transcendente, algo que Nietzsche certamente não aprovaria. Além disso, elas retomam, aprofundam e levam adiante uma necessidade histórico- interpretativa demasiadamente focada no afastamento da obra de Nietzsche das ideologias conservadoras que, por consequência, tende atualmente a contribuir para o alargamento de uma hermenêutica inocentista. Isto é, celebram apenas os trabalhos dos especialistas, intérpretes e comentadores preocupados em a todo custo inocentar o filósofo dos elementos conservadores intrínsecos à sua obra, como a defesa da escravidão.

Para além disso, as traduções brasileiras do vocabulário de Nietzsche realizadas e consolidadas no período aqui investigado legaram expressões, noções, vivências, experiências e produções reflexivas de valor crítico e científico. Elas abriram espaço para uma futura recepção filosófica completa da sua obra. No mais, por meio da recepção e tradução do seu vocabulário observa-se a apropriação de elementos de caráter valorativo, metodológico e estéticos, depois, finalmente, incorporados ao cabedal sentimental e intelectual do receptor brasileiro da sua filosofia. Como é possível acompanhar, sobretudo a partir do terceiro capítulo, as tensões que se estendem ao longo da trajetória do estabelecimento de um cânon padronizado para a tradução dos vocábulos derivados da filosofia de Nietzsche eram consideráveis, uma vez que o leitor brasileiro se deparava com uma multiplicidade de traduções, quase sempre muito divergentes e sem rigor conceitual. Ainda assim, muitos dos vocábulos centrais da sua filosofia introduzidos e consolidados no léxico da língua nacional brasileira pelo modernismo são ainda hoje adotados como tradicionalmente válidos (inclusive a palavra “Super-homem”), mesmo entre especialistas universitários, que nem sempre percebem as tensões conceituais, políticas e histográficas neles presentes.

Por fim, fazem parte dos resultados desta pesquisa os materiais recuperados nos anexos. Eles possuem valor literário, linguístico e cultural inestimável para a história da inteligência brasileira do período investigado. Além do mais, também possuem valor e

guardam seu lugar na história das ideias filosóficas no Brasil. São portadores de uma nova linguagem, de uma nova atitude estética, sociológica e filosófica. Contribuem sobremaneira para a renovação das ideias lítero-filosóficas e histórico-sociológicas no Brasil da república velha, da revolução de 1930, do movimento modernista e do Brasil do período da redemocratização, em 1945. São textos que transmitem o espírito dessa época, tão rica em transformações sociais e artísticas, tão pobre em retrocessos e recaídas no conservadorismo autoritário. Durante essa época, a filosofia de Nietzsche, sempre tão controversa, acaba contribuindo para os dois lados: – a renovação e o conservadorismo, aspectos, enfim, desde sempre muito ativos na cultura brasileira, ao mesmo tempo nova e velha, progressista e reacionária, antropofágica e cristã. Os materiais então recuperados abordam sua obra desde a juventude, quando ainda musicava poemas do poeta húngaro Petöfi, sendo esse requerido como o seu primeiro mestre em filosofia, passando pelas suas obras aforismáticas até aos escritos da maturidade, fragmentariamente traduzidos e interpretados segundo o contexto histórico dos seus leitores brasileiros. Os autores desses materiais não escondiam seus entusiasmos e perplexidades com os temas mais caros à filosofia do pensador alemão. Nela, eles encontravam as ferramentas metodológicas e os valores-guias para pensarem outros temas, bem brasileiros. Mais do que autores, escritores, jornalistas, eram tradutores, operários de uma nova linguagem, de um novo saber; eram poetas, feministas, anônimos, literatos marginalizados, outros consagrados, todos discípulos de uma filosofia grávida de futuro. Talvez fossem mais do que meros diletantes... Eram, antes, aventureiros, descobridores, curiosos, tentadores. Para o bem e para o mal, – ou para além do bem e do mal –, eram, alguns deles, mais nietzschianos do que muitos dos que hoje se acham que o são.