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A “vontade de poder” como impulso da descoberta e colonização do Brasil: a recepção de Nietzsche em Paulo Prado

Nietzsche na produção intelectual de Paulo Prado

Paulo Prado, com seu Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, inaugura o ensaísmo de interpretação do Brasil especificamente modernista. Tanto que foi entre os modernistas que seu ensaio foi melhor compreendido e discutido. De maneira que seu “Retrato do Brasil abre realmente a estrada real dos “estudos brasileiros” (...); ele cria, igualmente, em alto estilo, o ensaísmo propriamente modernista”. Trata-se de “um ensaio, na melhor definição do gênero: são as reflexões ao mesmo tempo amarguradas, pessimistas e moralizantes” de um autor preocupado em apresentar “uma extraordinária construção interpretativa” do Brasil (MARTINS, 1973 p. 178-9). Também foram os críticos do movimento modernista, tais como Sérgio Milliet e Agripino Grieco, os primeiros a constatarem e discutirem a recepção da filosofia de Nietzsche na produção ensaística de Paulo Prado. Talvez por causa da proximidade temporal, eles não chegaram a vislumbrar claramente que o emprego que Paulo Prado realizou do vocabulário da filosofia de Nietzsche em sua produção crítico-literária e ensaístico-interpretativa acentuou, por um lado, a proposta do projeto estético modernista da primeira fase e, por outro lado, também reforçou aspectos conservadores do projeto político-ideológico da segunda fase do movimento.

No mais, apenas atualmente é que se sabe com clareza e nitidez que Paulo Prado era um leitor das obras de Nietzsche. Mais exatamente, ele lia as obras do filósofo traduzidas para a língua francesa, em participar as traduções realizadas e/ou editadas por Henri Albert. É provável que também tenha lido produções da literatura secundária produzida à época a respeito do filósofo de origem francesa e portuguesa. Mas somente após a reorganização e atualização de sua obra é que foi possível dimensionar a presença da filosofia de Nietzsche na produção ensaística do grande favorecedor da Semana de Arte Moderna de 1922. As pesquisas de Carlos Augusto Calil mostram que na biblioteca de Paulo Prado havia exemplar da edição francesa das “Considérations inactuelles, na

tradução de Henri Albert, Paris: Mercure de France, s.d., 5ª edição”, mais especificamente a segunda Consideração extemporânea (HL/Co. Ext. II, KSA 1, p. 242-324). Ele localizou na página “123” do exemplar uma “Anotação manuscrita de” Paulo Prado, na qual se lê: “As exceções se destacam: os seus nomes acorrem facilmente ao bico da pena. Uns chegam, outros já somem: são ambiciosos, o mais é o rebanho que passa, pastando”” (CALIL, 2012 p. 349). Pequena anotação que será, futuramente, reformulada, ao comparecer em seu ensaio de interpretação do Brasil.

A leitura das obras de Nietzsche repercutiu na produção do modernista, aparecendo em textos de crítica literária, publicados pelo próprio Paulo Prado em revista e jornal. E estendeu-se, de forma ainda mais aprofundada, em seu inaugural ensaio de interpretação do Brasil. As ressonâncias da leitura se mostram, entre outras, no vocabulário adotado pelo autor. O vocábulo “inactual”, por exemplo, tornou-se veículo para discorrer sobre o que, segundo ele, havia de mais “inactual” no passado histórico e social brasileiro. Não é sem razão que o crítico Nelson Werneck Sodré, em artigo publicado no Correio Paulistano, a 15 e 22 de junho de 1949, tenha ironicamente qualificado o livro Retrato do Brasil como “Inatual, certamente, quanto ao processo de interpretação” (SODRÉ, 2012, p. 197).

Paulo Prado também faz menção explicita ao filósofo em artigo publicado no diário carioca O Jornal, em 1929. Anos antes, já havia feito menção no conhecido prefácio escrito para o livro de estreia em poesia do modernista Oswald de Andrade, intitulado Pau-Brasil. Consta ainda a presença de vocabulário proveniente da filosofia de Nietzsche empregado numa carta enviada a René Thiollier, em março de 1922, na qual procura convencê-lo a atuar em favor da arte modernista, mencionando o termo “nihilismo”, o qual ele associa e qualifica a Semana de Arte Moderna de 1922.

Esse vocábulo havia começado a aparecer na imprensa brasileira no final do século XIX, empregado sobretudo num sentido político negativo, relacionado aos “nihilistas” da “Rússia” (Correio Paulistano, a 7 de junho de 1879). Designava um movimento político subversivo. Mas a partir de 1891, começa a ser associado ao “anarchismo” e a designar nova significação, quando relacionado com a obra de Tolstói. À 19 de janeiro de 1903, no Correio da Manhã, José Veríssimo contará entre os primeiros intelectuais brasileiros a distinguir “O nihilismo moral de Nietzsche” dos demais. Mas somente a partir do período modernista e particularmente com intelectuais desse movimento o vocábulo passará a ser lido e empregado num sentido mais próximo daquele então encontrado no pensamento de Nietzsche, entendido sobretudo em seu elemento

negativo, ligado a desvalorização dos valores morais tradicionais, e pouco entendido no sentido positivo, enquanto condição para ultrapassar o esvaziamento dos valores e realizar a criação de novos valores. É envolto por essa polaridade que o vocábulo “nihilismo/niilismo” aparecerá no projeto estético do modernismo da primeira fase e, igualmente, no projeto ideológico-político da segunda fase do movimento, nas produções de autores como Alceu Amoroso Lima, Elísio de Carvalho, Agripino Grieco, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira.

Oswald de Andrade, a 18 de setembro de 1925, no diário carioca O Jornal, ao se defender das críticas de Tristão de Athayde a sua “Poesia Pau Brasil”, chama a atenção para o fato de que “se quisermos ter uma literatura e uma arte e mesmo uma política e uma educação”, será “[a]penas em coincidência de passagem com o nihilismo dadá (...)” (ANDRADE, 1925 p. 04). O crítico modernista Agripino Grieco, nesse mesmo diário, na data de 16 de setembro de 1928, ao resenhar reedição do livro de “Augusto dos Anjos, “Eu e outras poesias”, 3ª edição, Livraria Castilho, Rio, 1928”, detecta certo “nihilismo moral” na obra do poeta, mais particularmente em “os “Versos íntimos”, [pois] estes articulam um grito de pessimismo, de irremediável nihilismo moral” (GRIECO, 1928 p. 03). Ao tratar da poesia de Frederico Schmidt, no artigo “Schmidt físico e metafísico”, publicado a 7 de julho de 1929, argumenta que nele também se pode encontrar “as suas horas de nihilismo intelectual” (GRIECO, 1929 p. 04). Ainda nas páginas de O Jornal, RJ, a 17 de maio de 1931, ao discorrer sobre o livro “Libertinagem”, Agripino Grieco critica o “nihilismo” e a “descrença integral em matéria política ou religiosa” presente na obra do poeta Manuel Bandeira (GRIECO, 1931 p. 02).

Ao contrário do que se encontra na produção de Agripino Grieco e Alceu Amoroso Lima, na carta de Paulo Prado enviada a René Thiollier, Prado emprega o vocábulo no sentido positivo, de criação e renovação. Assim, solicita ao amigo que ele “não veja a Arte Moderna na insuficiência dos nossos recursos de cidade de província, mas sinta, como nós todos sentimos, o sopro vivificador que há nessas tentativas modestas de renovação e liberdade”. Sugere, desse modo, que “É o desenvolvimento da tese que eu, se fosse escritor e jornalista, escreveria, à moda de Barrès, com este título – A Arte Moderna e Nihilismo...”. A arte modernista, para Paulo Prado, seria niilista na medida em que se constituía como uma “reação contra as oligarquias artísticas e políticas, contra o mau gosto e a má política (...)”. Para ele a arte modernista teria, então, uma dimensão niilista e, paralelamente, iconoclasta. Eis porque ele adverte a René Thiollier, nos

seguintes termos: “E não nos tome por iconoclastas”, uma vez que “As nossas admirações e o nosso culto pelo Passado continuam intactos” (PRADO, [1922] 2004 p. 296).

A pesquisa do passado que Paulo Prado levava adiante valorizava os elementos até então recalcados, como o africano, o indígena, a miscigenação. Esses elementos, por ele mobilizados para discorrer sobre a origem e formação social do Brasil, possuíam uma dimensão niilista e iconoclasta. Para os modernistas dos movimentos pau-brasil e antropofágico, o sentido desse niilismo e dessa iconoclastia, no entanto, eram positivos. Mas havia também quem os compreendessem, como René Thiollier, no sentido negativo: eis porque Paulo Prado solicita para que ele não tome os modernistas empenhados na Semana de Arte Moderna por iconoclastas, no sentido negativo. Os vocábulos “Nihilismo” e “iconoclastas” corroboravam e encorajavam o projeto modernista (e, igualmente, de Paulo Prado) de “renovação e liberdade”, seja no campo da pesquisa histórica, seja no campo da criação literária e das artes plásticas. Não formavam ou não expressavam, porém, um sentido teórico e filosófico acabado, definido, com uma conceituação precisa e uniforme, referente à filosofia de Nietzsche. O vocábulo “Nihilismo”, em particular, uma vez já muito associado a Nietzsche, era tomado na sua forma vaga e geral, como uma palavra conexa com o que Paulo Prado entendia por “– Arte Moderna, arte pura, sem escolas, sem programas, sem preconceitos – Arte, com maiúscula, aberta a todos, desde que tenham talento, livre, e até mesmo anárquica, mas viva e fecunda, com todos os encantos de mocidade alegre e revoltada” (PRADO, 2004 p. 295-296). Dessa maneira, observa-se que o emprego do vocábulo “Nihilismo” realizado por Paulo Prado voltava-se para o apoio do projeto modernista; inicialmente, na esfera de renovação estética e crítico-literária, como ocorre na carta a René Thiollier.

Caso exemplar do uso de outros aspectos parciais do pensamento de Nietzsche para corroborar com o projeto do movimento modernista da primeira fase encontra-se no prefácio escrito para o livro de estreia em poesia do modernista Oswald de Andrade. O texto do prefácio foi, inicialmente, publicado em 1924, na Revista do Brasil, sendo depois revisado para o livro de Oswald, de 1925. A citação do nome de Nietzsche consta desde a versão inicial. Trata-se de uma passagem chave do texto, na qual, com entusiasmo, para exaltar as propostas do movimento pau-brasil, Paulo Prado escreve: “Como Nietzsche, todos exigimos que nos cantem um canto novo” (PRADO, 2004 p. 312).

Entre os escritos de Paulo Prado, como assinalado acima, consta um artigo publicado no diário carioca O Jornal, RJ, a 7 de dezembro de 1929, em que, ao discorrer sobre a evolução histórica e social do Brasil, recorre a Nietzsche e o cita explicitamente.

No artigo, Paulo Prado recorre, num sentido indefinido, aberto e geral, ao vocábulo “inactual”. Acerca do “Brasil do século XVI”, enfatiza como da “mansidão passiva do indígena, o individualismo do conquistador, a sedução de um clima acolhedor e favorável aos primeiros contatos”, “a contribuição do africano”, bem como da “mescla imediata das raças” e da “adaptação dos costumes” surgiu então “as caraterísticas do tipo étnico” do brasileiro. De modo que, para Paulo Prado, precisamente este “alvorecer” do Brasil “É o que não torna “inactual” o seu estudo, como diria Nietzsche, na turbada fase de hoje de nossa evolução histórico social” (PRADO, 1929 p. 04).

Não é sem razão, por isso, que no livro Paulística, encontre-se um esforço de Paulo Prado para situar um quatro da história paulista por meio de noções como decadência e regeneração, num sentido não totalmente distante do universo de pensamento de Nietzsche, já tão disseminado à época no Brasil.

Já o Retrato do Brasil, como indica o próprio autor em nota à quarta edição, datada de 1931, é um “pequeno livro” no qual pretendeu “apenas esboçar uma vista panorâmica do povoamento e da evolução da terra brasileira”, mas que acabou por tornar-se “um ensaio puramente filosófico” (PRADO, 2012 p. 35). Essa indicação de que seu ensaio é um escrito ensaístico puramente filosófico não é um capricho de Paulo Prado nem uma mera eventualidade, ela se coaduna perfeitamente com o fato de o autor do ensaio realmente ter se expressado por meio do emprego livre de um aparato conceitual de proveniência filosófica, no caso, proveniente da filosofia de Nietzsche. Isso fica evidente no recurso a vocábulos e expressões como “transmutação dos valores”, “rebanho”, “vontade de poder”, “individualismo”, “decadência”, dentre outros.

Nessa direção, em seu ensaio sobre a tristeza brasileira, Paulo Prado discorre, num linguajar de ressonâncias e influxos claramente provenientes do pensamento de Nietzsche, sobre a “dissolução dos costumes” na colônia, descreve o brasileiro como um tipo triste, fadado aos impulsos de luxuria e de cobiça, de sensualidade e de melancolia, provenientes do “anseio/sentimento de poder” que impulsionou a descoberta e a formação do novo homem que daí surgiria.

Desse modo, Paulo Prado procura explicar a psicologia da descoberta e da colonização do Brasil recorrendo a argumentos que se aproximam consideravelmente do pensamento filosófico de Nietzsche, sobretudo em sua vertente da tradição francesa, então predominante. Ao recorrer “a dois grandes impulsos” para explicar a psicologia da descoberta, adota o vocabulário dos textos do filósofo que discorrem ou se aproximam da temática dos impulsos. Daí Paulo Prado explicar a descoberta e colonização do Brasil a

partir de dois impulsos, segundo ele não geradores de alegria: “a ambição do ouro e a sensualidade livre e infrene”. Em consonância ou à semelhança de algumas passagens de escritos de Nietzsche, Paulo Prado encontra a origem desses impulsos na Renascença e, mais ainda, encontra aí o nascimento de “um homem novo”, assegurando que “o retorno ao ideal antigo teve como melhor resultado o alargamento, por assim dizer, das ambições humanas de poderio, de saber e de gozo” (PRADO, 2012 p. 39).

Isso posto, importa frisar aqui que o objetivo principal desse capítulo é examinar a recepção da filosofia de Nietzsche no ensaio de interpretação do Brasil de Paulo Prado, isto é, em seu Retrato do Brasil. Assim, trata-se de mostrar que seu ensaio foi significativo para o movimento modernista e suas tentativas de interpretação do Brasil, entre outros motivos, por causa de sua incorporação de aspectos parciais da filosofia de Nietzsche à sua interpretação do passado colonial do país, de maneira que seu ensaio acabou por contribuir, ao mesmo tempo, para a renovação estético-literária da primeira fase do modernismo e a agravar o conservadorismo político da segunda fase do movimento.

Críticas à presença de Nietzsche na produção intelectual de Paulo Prado

De forma mais abundante, durante o período das duas primeiras fases do modernismo, verifica-se que a presença da filosofia de Nietzsche comparece sobretudo no que se pode denominar como crônica literária, ou de colunismo, ou de jornalismo, ou de noticiário literário, e, não em menor expressão, comparecia também na crítica literária propriamente dita, em produções de autores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, José Lins do Rego, Alceu Amoroso Lima, dentre outros. Nessas produções, geralmente, ao se tentar realizar o exame crítico dos textos de Nietzsche, bem como de textos a seu respeito que chegavam ao Brasil, o receptor brasileiro se limitava a informar ao público de que tratava o texto/obra, que tipo de pessoa/intelectual era o autor/pensador, quais eram as suas opiniões e atitudes em fase de seu contexto histórico, etc. De tal modo, a produção na qual Nietzsche comparece, em autores como o modernista Agripino Grieco, recai normalmente na paráfrase do texto/livro examinado, sujeito às digressões do crítico, permanecendo numa espécie de exercício do estilo, levado adiante pelo crítico/receptor sem preocupação com a letra do autor/pensador.

Resquícios desse procedimento, de início, se mostram presentes mesmo naquilo que depois se convencionou denominar como ensaio de interpretação do Brasil. É nessa

direção que, em Retrato do Brasil, pode-se observar o recurso ao vocabulário da filosofia de Nietzsche, já traduzido e fixado na linguagem. Essa é a primeira vez que esse vocabulário é estruturalmente incorporado ao discurso de um autor que, por sua vez, está empenhado em usá-lo em seus estudos sobre as origens primitivas do país.

De certa forma, esse procedimento de incorporação de vocábulos da filosofia de Nietzsche para a explicação de acontecimentos históricos não era incomum à época. O crítico modernista Candido Motta Filho, nas páginas do Correio Paulistano, em 1 de novembro de 1928, adianta algo que Paulo Prado irá desenvolver em seu Retrato do

Brasil, ao empregar o vocábulo “vontade de poder” para com ele expressar-se sobre a

movimentação expansionista que levou à descoberta do novo mundo. Para Motta, “O anseio das descobertas desperta tão forte que assemelha “a vontade de poder” dos filósofos alemães” (FILHO, 1928 p. 04). Também Paulo Prado, em seu Retrato do Brasil, apresenta sua interpretação das grandes descobertas tomando de empréstimo esse e outros vocábulos da filosofia de Nietzsche.

O modernista Agripino Grieco, nas páginas de O Jornal, a 23 de dezembro de 1928, ao resenhar os livros Paulística e Retrato do Brasil, enfatiza o empenho de Paulo Prado pela “cultura brasileira”, ao cooperar, por exemplo, com “a Semana de Arte Moderna e” tomar “franca atitude ao lado dos inovadores em estética”. Aponta que no livro Paulística, no qual Paulo Prado trata de perto das aventuras dos bandeirantes, há elementos provenientes de Nietzsche. Segundo o crítico, aos olhos de Paulo Prado, “Foram estes [os bandeirantes] uma gente impetuosa e amiga do perigo, aventureiros fora da lei, além do bem e do mal (...), bons discípulos – sem sabê-lo – de César Bórgia e – sabendo-o muito menos – nietzscheanos em ação antes das teorias de Nietzsche” (GRIECO, 1928 p. 02). Nos discursos de exaltação dos bandeirantes, discursos em que às vezes certos conceitos da filosofia de Nietzsche eram mobilizados para explicar as aventuras dos bandeirantes, geralmente se escondia, entretanto, nada menos do que os aspectos racistas e conservadores do projeto modernista da segunda fase.

Entre as críticas à quinta edição do Retrato do Brasil, reeditado em 1944, consta a de Sérgio Milliet, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, a 20 de janeiro de 1945, na qual expressa seu juízo sobre o “ensaio” de Paulo Prado. Em seu texto, Millet destaca as qualidades e o estilo do autor, advertindo que a forma por ele alcançada por meio da “elegância discreta e a precisão expressiva”, afasta “para o segundo plano a tese defendida”, nos induzindo “a aceitá-la de boa vontade”. Milliet faz ver que a tese defendida por Paulo Prado em seu Retrato do Brasil acerca da tristeza brasileira é

construída por meio da conjunção de noções entre às quais consta a de “vontade de poder”. Se, por um lado, aceita e elogia o estilo do ensaio, por outro lado, rejeita a tese, uma vez que considera que “o fundo da obra é dos mais discutíveis”, por ser ela “demasiado literária”. Sua crítica é contundente: “Essa tristeza doentia que brota da conjugação da vontade de poder somada à luxúria e à cobiça se há de afigurar aos estudiosos da psicologia social extremamente imaginosa e bem pouco objetiva” (MILLIET, [1945] 2012 p. 184).

Retrato “nietzscheano” do Brasil, por Paulo Prado

Pelo já exposto nos capítulos anteriores, depreende-se que não era adventício para a época modernista que Paulo Prado, justo no momento da transição da primeira para a segunda fase do modernismo, encontrasse na filosofia de Nietzsche vocabulário suficiente para expressar suas pesquisas histórico-sociais sobre a “colonização” e o “descobrimento do Brasil”. De forma que perpetrou, assim, uma recepção parcial avaliativo-cognoscitiva da filosofia de Nietzsche em seu ensaio, adotando determinados raciocínios metodológicos e valores-guia para orientar a sua reflexão histórico-social sobre a descoberta e o passado colonial do Brasil. De tal maneira que se pode dizer que seu Retrato do Brasil, como um quadro impressionista, oferece um retrato “nietzscheano” do Brasil. Para tanto, é provável que Paulo Prado tenha lido com afinco, em traduções francesas, sobretudo de Henri Albert, escritos de Nietzsche em que há uma sorte de ideologia colonial.

Compreendida em seu contexto, bem datado, do final da segunda metade do século XIX, encontra-se na obra de Nietzsche uma espécie de ideologia colonial extemporânea e paradoxal. Considerada no contexto do século XIX, momento em que um dos temas internacionais que mais se discute é precisamente o da abolição da escravidão, ganha significação a reivindicação de Nietzsche da “escravidão” enquanto “condição de toda cultura elevada” (JGB/BM, § 239, KSA 5, p. 177); bem como a sua apologia à lógica da prática política da expansão e da dominação colonial realizada por meio da migração. A migração é por ele apresentada como uma proposta para resolver a questão dos trabalhadores europeus de sua época. Entendia que “os trabalhadores da Europa deveriam declarar-se uma impossibilidade humana como classe” e, precisamente por isso, aconselha que “eles deveriam suscitar, na colmeia europeia, uma época de