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A primeira versão da composição “Café” que iremos analisar está presente no álbum Corações Futuristas. A formação é composta por voz, sintetizador, violão, sax soprano, bateria e contrabaixo. Nesta versão instrumental, a voz de Gismonti atua também como um instrumento solista junto ao sax soprano.

Assim como “Dança das cabeças”, “Café” possui uma extensa narrativa dividida em numerosas seções, geradas a partir das variações de suas Seções A e B e das convenções que permeiam estes segmentos.

Tabela 10: Forma da primeira versão de “Café” (instrumental) do álbum

Corações Futuristas (1976)

0:00 – Introdução – 8 compassos 0:34 – Seção A – 6 compassos 0:58 – Seção A – 6 compassos 1:22 – Seção B – 7 compassos

1:47 – Convenção 1 - 5 compassos (2 últimos sobrepõem ao tema) 1:51 – Seção A - 7 compassos (2 últimos sobrepõem a convenção 1) 2:13 – Convenção 2 – 8 compassos

2:25 – Improviso sax sobre A – 6 compassos 2:48 – 2º Improviso de sax sobre A – 8 compassos 3:11 - Seção B – 7 compassos

3:36 - Convenção 1 - 5 compassos - (2 últimos sobrepõem o tema) 3:41 - Seção A - 7 compassos (2 últimos sobrepõem a convenção 1) 4:02 - Convenção 2 – 8 compassos

A música começa subitamente com a chamada do sax soprano levando-nos ao acorde de ré menor – a tonalidade da composição - no violão. Podemos ouvir que há uma sobreposição de acontecimentos musicais realizados pelo violão (overdubbing), que em uma das camadas assume a condução rítmico-harmônica e na outra realiza alguns comentários aparentemente envoltos pelos efeitos da aplicação do pedal

mutron bi-phase. É possível compreender a textura desta seção como “camadas” que se sobrepõem numa continuidade homogênea. Esta textura sofre alterações de dinâmicas a partir da aplicação do efeito do pedal e da inserção do timbre de saxofone, que por sua vez, executa frases melódicas dentro de uma extensão de registro bastante ampla.

O ambiente harmônico e rítmico da composição nos remete ao toque característico do berimbau, conhecido pelas gravações dos afro-sambas de Baden Powell (especificamente a canção de mesmo nome registrada em 1963 no disco

Baden Powell à vontade73). Baden foi mencionado anteriormente como importante

influência violonística para Gismonti.

A Introdução de oito compassos apresenta a figura rítmica do violão na seguinte sequência de acordes; Dm7 – Ebm7 e Dbm7.

Exemplo 74: Levada “berimbau” da Introdução da primeira versão de “Café” (1976) – (0:11 – 0:34)

Observamos pouco contraste na transição entre Introdução e Seção A, na qual o violão funciona como uma espécie de elemento pivô entre uma e outra, na manutenção da levada já apresentada. A partir da Seção A, por conta das funções atribuídas a cada instrumento, a textura volta-se a um contexto polifônico de efeito contrapontístico, no qual contrabaixo violão e voz se concatenam rítmica e harmonicamente.

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Optei por dividir o tema de seis compassos da Seção A em três momentos (a, a1 e b). Associando esta construção temática a algum dos formatos propostos por Sérgio Freitas (FREITAS, 2010, p.618) podemos levantar a hipótese de que se trata de uma sentença incompleta, ou seja, uma sentença que contém “inciso”, “inciso1” e “segmento de contraste”, mas não possui o segmento cadencial característico.

Inicialmente temos a sequencia de acordes do modo dórico (Dm7 e Gm7). Paulo Tiné, em sua tese de doutorado, aponta o universo deste modo como característico da produção da música popular. Menciona também o vamp Im – IVm – também na região de Ré menor – do toque de berimbau da canção homônima de Baden Powell. (TINÉ, 2008, p.114 e 154).

O acorde de Mi menor seguinte pode ter correspondência com o modo da menor melódica, bem como o acorde de Dbm7 (C#m7) sétimo grau da mesma escala. Mais do que compreender os procedimentos dentro da tonalidade, é interessante notar que as notas meio tom abaixo e meio tom acima de ré (Db e Eb) são utilizadas como recursos melódicos tanto na Introdução como nesta Seção A inicial.

Exemplo 75: Divisão dos três momentos da “sentença incompleta” da Seção A da primeira versão de “Café” (1976) – (0:34 – 0:55)

No sexto compasso, onde a melodia repousa sobre a quinta de ré, aparece um acontecimento musical realizado por contrabaixo e violão que aparenta simular uma “dominante” de retorno à tonalidade de ré menor. Nela, o contrabaixo executa as

notas das tríades maior e menor de lá, enquanto o violão toca a sétima maior de lá e sua quarta aumentada (ré#), conferindo a este trecho uma sonoridade de suspensão bastante característica.

Pela sua configuração, atribuo a este acontecimento a função de uma “convenção” que estabelece um corte, no sentido de um contraste dentro da própria “unidade sonora” (por estar conectado harmonicamente com a sensação de dominante) que subitamente modifica a textura desta para uma homofonia, característica das convenções do jazz fusion ou do rock progressivo.

Exemplo 76: Convenção rítmico-melódica do final da Seção A da primeira versão de “Café” (1976) – (contrabaixo e violão) – (0:53 – 0:57)

Na reapresentação da Seção A somam-se à formação instrumental o sax soprano; que executa em uníssono junto à voz a melodia principal, e o sintetizador, que se une ao contrabaixo numa espécie de contracanto.

Da ampliação da quantidade de instrumentos presentes procede-se uma consequente ampliação da densidade acrônica desta repetição, sem, no entanto, fazer- se sentir grandes alterações em relação à textura de “efeitos contrapontísticos” referida na seção anterior. Abaixo estão transcritos contrabaixo, sintetizador, sax soprano e voz, e a cifra correspondente dos acordes executados pelo violão.

Exemplo 77: Reapresentação da Seção A da primeira versão de “Café” (1976) – (0:58 – 1:21)

Na transição para a Seção B podemos perceber novamente a atribuição de uma função específica para cada instrumento, que faz com que esta seção se aproxime mais a um tipo de distribuição, e consequentemente de textura, mais “comum”: melodia sendo realizada pelo sax soprano, sintetizador apoiando as harmonias e violão na condução harmônico rítmica junto à bateria.

Atentamos novamente para o tipo de linha melódica elaborada tocada pelo contrabaixo, que mantém de certa forma o tipo de diálogo contrapontístico proposto nas seções anteriores. Esta elaboração é enfatizada pela mixagem da faixa, na qual se atribuiu ao violão um volume menor no resultado sonoro e um maior destaque de intensidade para contrabaixo e sintetizador. Este último toca uma progressão harmônica constituída de sucessivos “IIm7 – V7” de tonalidades distantes por semitons (G-F#-F-E) que é estendida a partir do oitavo compasso, onde reside o acorde diminuto-dominante da tonalidade original. No exemplo abaixo, estão exemplificados os quatro primeiros compassos desta seção.

Exemplo 78: 4 primeiros compassos da Seção B da primeira versão de “Café” (1976)

(Voz, Sintetizador e contrabaixo) – (1:21 – 1:37)

Nos compassos seguintes, espera-se um acorde dominante do tipo C7 no lugar do acorde “C#7M”. As notas que aparecem na voz, sintetizador e violão parecem

endossar o aparecimento deste acorde. No entanto, no segundo tempo do compasso 25 do exemplo abaixo, a linha do contrabaixo executa o “b9” de Dó (dó#), fornecendo a este trecho harmônico traços de uma sonoridade frígia:

Exemplo 79 : Compasso 5-8 da Seção B da primeira versão de “Café” (1976) – (1:37 – 1:47)

No final da Seção B ocorre uma mudança de compasso, passando de uma pulsação binária para ternária. O cruzamento das intenções rítmicas na passagem de uma seção a outra em 1:51, como assinalado na partitura, gera um contraste entre estas unidades sonoras que podem ser abstraídas como um processo de “telhagem”, ou seja, um “cruzamento” entre materiais da seção anterior sobrepostos, durante a transição, com os novos elementos da seção seguinte. Este cruzamento rítmico gera, a partir do compasso 33 do exemplo abaixo, o padrão no qual se estabelecem as linhas de sintetizador e contrabaixo.

É a partir do compasso 31 do mesmo exemplo que observamos a consequente geração de uma polirritmia binária + ternária que rege toda a terceira apresentação da Seção A.

Exemplo 80: Cruzamento de Seção B e Seção A da primeira versão de “Café” (1976) – Oposição adjacente através do processo de “telhagem” gerando a polirritmia – (1:47 – 2:02)

A terceira repetição da Seção A retorna aos pressupostos texturais de efeitos “contrapontísticos”. Na transição entre esta seção e o trecho seguinte, escutamos novamente a convenção demonstrada no exemplo 76, que parece “descolada” da unidade sonora anterior, gerando uma nova seção, que denomino “Convenção 2 Optei por transcrevê-lo disposto em oito compassos e em uma métrica ternária (6/8). Este trecho, executado por contrabaixo, violão e bateria sofre algumas alterações em sua textura homofônica através de algumas inserções do sax soprano e sintetizador. Em relação a suas alturas, este padrão é formado pelas notas de lá maior e menor tocadas e pelos intervalos de 4ª e 5ª destacados pelo violão. Nos dois últimos compassos o padrão se estende num movimento ascendente por segundas menores.

A transição desta convenção para a seção seguinte, abre-se espaço ao improviso do sax soprano, marcado por um corte na sonoridade e pelo retorno ao tipo de textura das seções anteriores. O timbre do sintetizador utilizado na Seção B reaparece neste trecho. Sintetizador e contrabaixo executam a mesma linha melódica realizada pela voz feminina no exemplo 77. Desta forma, é gerado um ambiente sem muitos acontecimentos musicais diferenciados, propício para o tipo de improviso realizado pelo sax soprano, bastante melódico.

A improvisação acontece sobre a harmonia da Seção A. Novamente, situada no último compasso do exemplo abaixo (compasso 47) reaparece a convenção que proporciona o “corte” entre as unidades sonoras:

Exemplo 82: Seção de improviso do sax com contracanto de sintetizador e contrabaixo da primeira versão de “Café” (1976) – (2:24 – 2:47)

No segundo chorus de improviso do sax soprano retoma-se novamente a forma da Seção A. Intensifica-se a textura de efeitos contrapontísticos na diferenciação das linhas melódicas executadas por sintetizador e contrabaixo, assim como no exemplo 77.

Exemplo 83: 2 chorus de improviso do sax da primeira versão de “Café” (1976) (contrabaixo, sintetizador e sax) – (2:48 – 3:03)

De 3:11 até 4:02, seguem-se as repetições das seções apresentadas entre 1:22 e 2:13, com instrumentação e texturas semelhantes. A única diferença notada consiste nas inserções improvisadas, até o fim da gravação, do sax sobre a melodia principal.

Tabela 11: Forma da segunda versão de “Café” (canção) do álbum Carmo (1977) 0:00 - Introdução – 8 compassos 0:14 – Seção A – 16 compassos (12+4) 0:52 – Seção A – 12 compassos 1:20 – Seção B – 15 compassos 2:04 – Seção A – 12 compassos 2:32 – Seção B – 17 compassos (15+2) 3:11 – Seção A = 16 compassos 3:47 – Coda – 24 compassos

“Café” é recriada em versão canção no álbum Carmo de 1977. Transformada em um estilizado samba lento, a composição reinventa toda a estrutura rítmica da versão anterior, reelaborando-a no interior de uma condução rítmico-harmônica de caráter fragmentado, conduzida principalmente por piano e violão.

Sua Introdução de oito compassos é formada por duas partes contrastantes; na primeira, piano e violão apresentam o gérmen da intenção rítmica que comandará a maior parte da canção. Na segunda parte, acrescenta-se bateria (que utiliza apenas os efeitos dos pratos) e contrabaixo; este último parece se aproveitar (assim como o violão da primeira versão) da possibilidade de overdubbing. Tal motivo é percebido através da existência de duas linhas de contrabaixo sobrepostas, uma que sustenta as notas graves e “estacionadas” e outra que executa curtos comentários melódicos numa região mais aguda do instrumento. Destaca-se novamente o resultado da maior intensidade do contrabaixo em relação aos outros instrumentos proporcionando um destaque timbrístico ao instrumento.

Dois acordes aparecem sobre a nota pedal “fá”, executada pelo contrabaixo, exemplificados a seguir. Em relação ao segundo acorde, consideramos duas explicações possíveis: a primeira considera a formação deste como um Bb7(9,b13) de função subdominante “IV7”. Na segunda, acatada no exemplo, este acorde é compreendido como uma extensão do próprio Im, com a característica do b2 (solb),

tratando-se assim de uma alteração possível do modo “Fá dórico b2”, uma “estratégia dos acordes retirados da escala menor melódica”. 74

Exemplo 84: Introdução da versão segunda versão de “Café” (1977) – (0:05 – 0:14)

Na transição entre Introdução e Seção A não há qualquer transformação nas características texturais da composição. O tipo de textura de que estamos a tratar faz proveito de uma estrutura mais “pontilhista” dos instrumentos, dispostos novamente em camadas distintas que agem independentemente, tendo como foco a interação rítmica dos instrumentos.

O piano parece seguir sempre uma proposta rítmica de ataques em semicolcheias curtas que se deslocam entre as subdivisões do compasso binário enquanto violão apresenta uma maior atividade rítmica, conjugando estas semicolcheias em padrões variados que ora se modificam em curtos espaços de tempo e ora mantêm-se regularmente repetidos. O contrabaixo, que ainda se destaca em volume em relação aos outros instrumentos, permanece executando a nota longa “fá” como pedal.

Em todas as suas apresentações, a melodia principal da Seção A, assim como na primeira versão de “Café”, ordena-se através de uma frase que se repete duas vezes sobre a região da tônica (fá menor) e duas vezes sobre a região da subdominante menor (si bemol menor). No entanto, ao invés dos seis compassos que formaram a Seção A da versão anterior, temos agora – por conta da pulsação binária - a

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Em diversos momentos (páginas 63, 145-163, 175-176, 209, 211, 214, 216-218, 374-376, 630, 631, 634, 638, 769de sua tese de Doutorado, Sérgio Freitas menciona e aprofunda as chamadas “estratégias da menor melódica”: “Está estratégia “maior com inflexão menor melódica” (parafraseando RIEMANN, 1945, p. 97) será tratada aqui, de modo geral, como “ambiente menor melódico” ou “estratégia menor melódica” (parafraseando LIMA, 2000). Tal estratégia, extrapolando os limites diatônicos regulares (dórico, mixolídio, jônico, etc.) se alastrou pelas subdominantes, dominantes e tônicas de uma tonalidade que, assim, reinventada como um tipo de dialeto ou gíria harmônica local, adotou os deslocamentos do acorde‐tipo “meio‐diminuto” (a célebre configuração intervalar do “acorde de Tristão”, ou do histórico “acorde menor com sexta”) como uma espécie de ideal de sonoridade para tocar quaisquer acordes. (FREITAS, 2010, p. 63)

duplicação destes, num total de 12 compassos igualmente distribuídos em três partes diferentes. Interessante notar, que esta divisão em três partes se transforma numa métrica de quatro versos na letra.75

Nos exemplos abaixo podemos ver tanto a disposição textural a que me refiro no parágrafo anterior como a distribuição do plano harmônico em que são construídas as idéias poéticas na primeira estrofe de quatro versos.

No exemplo abaixo (Ex.85-1) está exemplificado o início desta seção através dos acordes da tonalidade da canção, Fá menor. No compasso 12, tendo em vista que em seguida haverá uma tonicização para a região de Si bemol menor, podemos considerar o acorde formado pela cisão rítmica convencionada como um acorde de função dominante, se o considerarmos como um Fá maior com a sétima menor, quinta aumentada e terça no baixo. Desta forma, a variação da qualidade da dominante com quinta aumentada adviria do modo “mixolídio b6”, derivado do campo harmônico de Si bemol menor melódico e portanto, outra “estratégia menor melódica”.

75 1ª Seção A “Cada vez que te vierem falar/ de afeto, de amor, de paixão/ dê a volta por cima ou não/ mas não esqueça que a marca é a marca no fim./ 2ª Seção A - Cada vez que te vierem prensar/ num abismo, na rua ou num gol/ transe um papo malandro ou não/ mas não esqueça que o tempo revela o fim. Seção B: Sabe Deus por quantas vezes puseram a mão na ferida e falaram/ meu caro, relaxe porque isso vai melhorar/ é só deixar rolar num samba solto. 3ª Seção A: Cada vez que te vierem propor/ personagens pra vida real/ jogue as máscaras fora ou não/ mas não esqueça que é triste o flagrante no fim./Seção B: Bote o pé numa estrada qualquer e carregue no medo a paixão/ que vai dominar a loucura do seu não ser/ a toa pra rolar num samba solto./ 4ª Seção A: E por fim, se sua maneira de ser é só/ aquela quem sabe de mim sou eu/ beba uma pro santo também ou não/ Mas não esqueça que um dia a casa cai”.

Exemplo 85: Seção A - disposta em a, a1 e b - da versão segunda versão de “Café” (1977)

a-) Seção A – “a” – (0:14 – 0:23)

Partindo da idéia de que há uma tonicização para a região de Si bemol menor, o acorde meio diminuto seguinte (Gm7(b5,9)) pode ser relacionado novamente a um recurso próprio da escala menor do tipo melódica por conta da adição da nona, numa montagem “9-3-5-7’ Este acorde, de função tônica na região menor melódica (VIm7(b5)) atua ao mesmo tempo como o acorde IIm7(b5) da tonalidade de Fá menor. Este leva a dominante “C7” em sua versão “frigia” C7sus4(b9,13) que mais uma vez está prevista no campo harmônico do modo de Si bemol menor melódico, funcionando também como V7 de Fá menor.

c-) Seção A: “b” – (0:33 – 0:42)

Os quatro compassos são considerados como pertencentes ao final da Seção A. Podemos arriscar dizer que trata de uma espécie de “segmento cadencial” da forma, construído sobre um loop de dois acordes, que preparam o retorno à seção. Neles, no segundo compasso do exemplo abaixo, sobrepõem-se sobre Fá maior a triade maior do segundo grau desta tonalidade abaixado, Sol bemol maior. Temos assim novamente, uma recorrência à sonoridade do modo frígio. Esta pequena seção de quatro compassos também aparecerá no final da Seção B que explicaremos em seguida.

Exemplo 86: compassos finais da Seção A da versão segunda versão de “Café” (1977) – (0:42 – 0:51)

Desde o início do trabalho de transcrição, mais precisamente aos 5 segundos do fonograma, percebemos que o tempo forte do compasso coincidia com a marcação grave do contrabaixo no tempo “um”, se contrapondo à característica fundamental de uma levada de samba de acentuação no tempo “dois”, onde normalmente se localiza a

nota mais “grave” do contrabaixo. Transcrevi o acorde “Fm” e a nota tocada no contrabaixo demonstrado no exemplo 85 no primeiro tempo da pulsação binária. Seguindo esta contagem até o início da Seção B, veremos que esta marcação será transformada, alterando o acento característico do samba para o tempo “dois”, no qual o timbre do “surdo” junto aos comentários da cuíca enfatiza o restabelecimento de uma levada mais tradicional. Assim como na versão instrumental, esta seção se baseia no ciclo harmônico composto pelos acordes de função “IIm7 – V7”. Os oito primeiros compassos, descritos no exemplo abaixo, mostram como a composição é construída em torno de um padrão rítmico comum aos instrumentos (piano, violão e contrabaixo).

Sobre a palavra “porque” atinge-se a nota mais aguda da canção, correspondente a quarta do acorde de si. No final do oitavo compasso, no final da palavra “melhorar” observamos o cromatismo que inicia o ciclo por tonalidades distantes por semitons até retornar novamente ao IIm7 – V7 cadencial da tonalidade original:

Exemplo 87: Divisões da Seção B da segunda versão de “Café” (1977)

b-) Segunda parte da Seção B – (1:30 – 1:38)

Na continuação da Seção B podemos observar o alargamento das figuras rítmicas da melodia e uma modificação significativa na levada do samba, menos contida e fragmentada. Até este momento, mesmo com a sugestão das figuras sincopadas que permeavam o ambiente rítmico, o samba ainda não havia se consolidado.

Este samba que não se “desenrola” de forma natural, por conta do controle rítmico preciso dos golpes do piano e contrabaixo vai tomando forma com os acentos mais graves no tempo e, num sentido poético mais amplo, religa-se ao significado da letra na concretização do “samba mais solto”.

d-) Quarta parte da Seção B – (1:49 – 1:54)

É na última apresentação da Seção A, aos 3:11, que a composição chega ao ápice de tensão retomando um recurso presente na versão instrumental anterior. A sugestão de uma polirritmia aparece na divisão rítmica do piano que executa a primeira dentro de um padrão de três semicolcheias seguidas, resultando numa intenção ternária sobre uma marcação que permanece binária. A recriação deste recurso rítmico, a aplicação de uma longa notal pedal “dó” repetitiva e a intensificação da densidade diacrônica dentro desta unidade sonora contribui para modificar ligeiramente a textura da composição. Contribui também para este efeito a permanência dos acordes Im7, IVm e V7..

Exemplo 88: Primeiros compassos da última apresentação da Seção A da segunda versão de “Café” (1977) – (3:11 – 3:21)

Intensifica-se o efeito da palavra “cai” através de sua repetição num prolongamento desta seção por mais quatro compassos.

Exemplo 89: Compassos Finais da última repetição da Seção A da segunda versão de “Café” (1977) – (3:33 – 3:47)

A composição termina numa coda constituída por um loop de quatro acordes de aspecto textural menos “fragmentado”. Piano e violão executam semicolcheias ininterruptas e contrabaixo passa a agir com pouca atividade rítmica. O contraste também fica por conta da simultaneidade de acontecimentos musicais, resultando agora numa textura de camadas na qual o sintetizador aparece apoiando a harmonia

com acordes estacionados no agudo, a cuíca mantendo maior atividade rítmico melódica sobre a levada e o saxofone improvisando numa extensão bastante ampla.

A partir dos comentários das duas versões de “Café” podemos concluir que a principal característica que difere uma a outra é a quantidade de contrastes entre as seções. Na primeira, os instrumentos interagem num contínuo mais “melódico” que converte-se numa textura de “efeitos contrapontísticos”, entendido aqui como uma