• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2 O Metropolitano de Lisboa Como Local de Exposição de Arte

2.1. Processo histórico: critérios e opções

2.1.2. A recuperação definitiva com os azulejos de Maria Keil

Seria na esteira de Barradas, Almada e Portinari, bem como dos arquitetos que passaram a recorrer ao azulejo, com especial relevância para o seu marido, que Maria Keil, pintora, iria trabalhar:

Comecei a fazer azulejos para as obras do meu marido a partir de 1953. Por essa altura havia um grande interesse entre nós pela recuperação do azulejo.

98

Em Belo Horizonte, Minas Gerais, de Óscar Niemeyer.

99

Cfr. Luís Fernandes Pinto, Azulejo e Arquitetura: Ensaio de Um Arquitecto, p. 24.

100

Cfr. Paulo Henriques, A Construção das Modernidades, in O Azulejo em Portugal no Século XX, p. 73.

101

Maria Keil referirá que de repente, houve a igreja da Pampulha no Brasil. Portinari assustou todos

nós. E começámos todos a enxotar o susto trabalhando afincadamente (cfr. entrevista concedida a

Maria Manuela d'Oliveira Martins, Conversa com Maria Keil, in João Castelo-Branco Pereira

(organização), Maria Keil, Azulejos, p. 48).

102

Cfr. João Castel-Branco Pereira, Arte: Metropolitano de Lisboa, p. 18.

103

Cfr. ibidem, p. 13.

104

Cfr. Rogério Ribeiro em entrevista in Francisco Vaz Fernandes (coordenação), Sem Margens, Rede Ferroviária Nacional, Refer EP, Lisboa, 2000, ISBN 972-98557-1-4, p. 204. Tentou-se confirmar, sem sucesso, esta informação nos livros das Actas das Reuniões da Câmara Municipal de Lisboa dos anos de 1950 a 1959. Todavia, dos Relatórios da Gerência Municipal de cada ano, incluídos nos citados livros de atas, consta a encomenda a vários artistas de painéis de azulejos destinados às escolas que então se encontravam em construção, entre eles Rogério Ribeiro.

Vários arquitectos começavam a aplicá-lo nas suas obras. Faziam-se ensaios e tentativas a que não podíamos ficar indiferentes105.

Porém, várias vezes ouviu conselhos no sentido de não executar obras em azulejo, pois era trabalho de artesão (...).Impróprio para um pintor106. No entanto, entendia que

a arte não tinha um campo assim tão limitado. A arte era muito mais. Estava também em pequenas coisas comuns, em muitas coisas à nossa volta. Na proporção das coisas, dos espaços, das superfícies, apesar de saber que o seu trabalho no metro não seria reconhecido como obra de arte107.

A pintora adquiriu experiência na execução de painéis de azulejos de grandes dimensões, designadamente com os destinados à aerogare de Luanda, à delegação de

Paris dos Transportes Aéreos Portugueses, aos escritórios da União Eléctrica Portuguesa, em Setúbal, e ao refeitório da colónia de férias da mesma empresa, em Palmela, para projetos saídos do atelier de arquitetura do seu marido108, para além de que começara já a trabalhar em O Mar (1958), painel de revestimento do muro da escadaria de acesso a prédios de habitação na Avenida Infante Santo (figs. 47 e 48), em Lisboa, que constitui uma das mais notáveis obras de azulejo do século XX109. Todos os painéis que criou seguiram uma rigorosa integração arquitetónica, pois Maria Keil não se deixou cair na tentação do azulejo para enfeitar. Tudo o que tenho feito é para

integrar numa determinada construção, num todo. Mesmo os painéis decorativos que fiz110.

Por isso, propôs o azulejo para animar as paredes do metro, o que foi aceite, mas com a condição, imposta pelo engenheiro Francisco de Mello e Castro111, de não representar motivos figurativos, uma vez que, como os espaços a animar eram zonas de

passagem, não deveria haver lugar para motivos que provocassem a paragem dos

105

Entrevista concedida a Maria Manuela d'Oliveira Martins, Conversa com Maria Keil, in João Castelo-Branco Pereira (organização), Maria Keil, Azulejos, p. 47.

106

Entrevista concedida a Maria Manuela d'Oliveira Martins, op. cit., p. 48.

107

Entrevista concedida a Margarida Botelho, A Arte no Metro, Metropolitano de Lisboa, 1991, s/ ISBN, p. 50.

108

Cfr. João Castel-Branco Pereira, Arte: Metropolitano de Lisboa, pp. 19-20.

109

Cfr. João Castel-Branco Pereira, Azulejos no Metropolitano de Lisboa, Metropolitano de Lisboa, 1990, s/ ISBN, p. 14.

110

Cfr. Maria Manuela d'Oliveira Martins, op. cit., p. 48.

111

Diretor-geral da Metropolitano de Lisboa, SARL (cfr. Maria Alexandre Lousada e Maria de Lurdes Rodrigues, O Metro no Quotidiano de Lisboa, in Maria Fernanda Rollo (coordenação), Um Metro e Uma Cidade, vol. 3, p. 113, nota 10).

utentes112. Contudo, Maria Keil mais tarde viria a referir que o revestimento estava

condicionado à grande extensão das superfícies a revestir, à urgência na sua execução e, consequentemente, à necessidade de usar azulejo de padrão em larga escala, daí a opção geométrica113. Rogério Ribeiro, que desenhou os azulejos da estação Avenida, confirmou que se deixava ao "artista" o estudo da "estampilha" que, por repetição no

menor número possível, devia animar a superfície114.

Por conseguinte, a artista renunciou logo às ideias de representar motivos ligados ao metro:

mesmo nos primeiros estudos que fiz, com rodas, carris, peças das maquinarias, foram rejeitadas. Tudo seria feito sem representar coisas concretas. Naqueles trabalhos há apenas movimentos de formas e de cores, tendo em conta que se destinavam a lugares de passagem intensa de centenas de pessoas apressadas, e que formas ou cores muito fortes podem causar perturbação. Sobretudo nas escadas115.

Os azulejos para o metro foram produzidos, uma vez mais, na Fábrica Viúva Lamego. Aí Maria Keil contou com a ajuda preciosa de Jorge Barradas e dos técnicos da fábrica, designadamente o Mestre Sousa116, experimentando técnicas e materiais, e controlando a produção dos azulejos.

Impedida de usar elementos figurativos, a artista encontraria no padrão a solução para o seu trabalho. Pela observação das fachadas lisboetas revestidas a azulejo (figs. 49 e 50), deparou-se com o padrão repetido indefinidamente, enquanto durasse a parede a revestir, e inspirou-se nele. Por outro lado, sabendo que os transeuntes não contemplam as paredes mas as sentem117 e que o azulejo é essencialmente uma presença, um brilho.

Liso ou trabalhado, de extrema simplicidade ou de extrema riqueza, é sempre perturbante118, não usou formas nem cores fortes, para não causar perturbação aos passantes. E como também pretendeu sempre integrar os azulejos na arquitetura, executou revestimentos diferentes para cada uma das estações, com marcação da respetiva quadrícula no projeto de arquitetura do espaço a revestir, técnica essencial

112

Cfr. João Castel-Branco Pereira, Azulejos no Metropolitano de Lisboa, p. 14.

113

Entrevista concedida a Margarida Botelho, A Arte no Metro, p. 50.

114

Ibidem, p. 56.

115

Entrevista concedida a Maria Manuela d'Oliveira Martins, Conversa com Maria Keil, in João Castelo-Branco Pereira (organização), Maria Keil, Azulejos, p. 48.

116

Paulo Henriques refere-se-lhe como António de Sousa (cfr. Arte no Metropolitano de Lisboa, in Maria Fernanda Rollo (coordenação), Um Metro e Uma Cidade, vol. 3, p. 125) e como José de Sousa (cfr. A

Construção das Modernidades, in O Azulejo em Portugal no Século XX, p. 107, nota 2). Por sua vez, João Castel-Branco Pereira denomina-o António de Sousa (cfr. op. cit., p. 43).

117

Entrevista concedida a Maria Manuela d'Oliveira Martins, op. cit., p. 47.

118

para a articulação entre as imagens e o seu suporte119. Apesar de a proibição do figurativo a impedir de usar motivos alusivos a cada um dos locais das estações, o que teria permitido distingui-las, Maria Keil encontrou nesta adequação dos revestimentos a diferenciação das estações.

Não se pense, porém, que o padrão usado pela artista se limitou às regras compositivas que vinham desde o século XIX. Pelo contrário, tendo notado que a aplicação do padrão em paredes lisas, sem a interrupção natural de portas e janelas e respetivas cercaduras apresentada pelos edifícios, se tornava monótona120, tomou como base vários padrões repetitivos e, combinando-os bem como variando as cores, criou composições que desenhavam os tais movimentos de formas e de cores pelos quais os passageiros circulavam (figs. 51 a 54). Na estação Restauradores violou um pouco a proibição do figurativo e integrou elementos vegetalistas no labiríntico padrão de fundo, em pequenas barras floridas, algumas albarradas com flores em azul e branco e uns quantos querubins (fig. 55), retomando desta forma a tradição setecentista, mas sem revivalismos passadistas.

Rogério Ribeiro (1930-2008), também pintor, foi o autor do revestimento da estação Avenida (em 1959), a única da primeira fase que não pertenceu a Maria Keil. Este artista tinha ingressado em 1956 na Fábrica Viúva Lamego com a ajuda de

Querubim Lapa e ainda com os conselhos de Jorge Barradas, que tinha aí atelier121 e, por sugestão de Maria Keil, participou no metro122, animado pela vontade de intervir

noutra escala, pôr em prática o sentido da utilidade imediata, da obra acessível à mão, instalada na rua. Eram valores que muito prezávamos123. A sua obra resultou em tudo próxima das estações de Maria Keil, com a mesma utilização do padrão em módulos que se vão sobrepondo e criando formas, se bem que com um jogo de cores algo mais forte e contrastante que os usados por aquela artista (fig. 56).

Apesar do trabalho exemplar de Maria Keil e de Rogério Ribeiro, o espírito com

119

Cfr. Paulo Henriques, Arte no Metropolitano de Lisboa, in Maria Fernanda Rollo (coordenação), Um Metro e Uma Cidade, vol. 3, p. 125.

120

Cfr. João Castel-Branco Pereira, Arte: Metropolitano de Lisboa, p. 3, e Carla Tomás, Maria Keil: A Modernidade do Azulejo, p. 40. Aqui a artista refere que era difícil fazer um padrão enriquecido numa

parede completamente lisa porque resulta monótono. Para uma fachada com janelas e portas, uma parede já mobilada, é mais fácil.

121

Cfr. entrevista in Sem Margens, p. 204, e João Castel-Branco Pereira, Azulejos no Metropolitano de Lisboa, p. 43.

122

Cfr. João Castel-Branco Pereira, Arte: Metropolitano de Lisboa, p. 29.

123

que o desenvolveram não foi, ao contrário do que aconteceria a partir dos anos 80, um trabalho de afirmação autoral. Como refere Paulo Henriques, e também decorre dos acima citados testemunhos dos artistas, estes trabalhos constituíram

intervenções artísticas integradas numa unidade arquitectónica de usufruto público, em articulação orgânica entre arquitectura e artes plásticas (...). Para além da intenção de construir um objecto de arte total, próxima da utopia de integração das artes que percorreu a arquitectura do pós-Guerra, havia uma intenção de qualificar esteticamente os espaços, numa democratização do usufruto do objecto artístico entendido não como mítica transcendência de um indivíduo de excepção, mas como manifestação de uma das vertentes fundamentais da existência humana contemporânea124.

Para além disso, a unificação da imagem das estações contribuiu para a desejada afirmação da ML125, como presença forte e coerente no sistema de transportes públicos de Lisboa e virada para a prestação do melhor serviço público aos passageiros.