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Capítulo 2 O Metropolitano de Lisboa Como Local de Exposição de Arte

2.1. Processo histórico: critérios e opções

2.1.1. Azulejo: tradição, decadência e reabilitação

O azulejo é um material com tradição velha de séculos em Portugal no revestimento de paredes, quer exteriores quer interiores, possuindo características ótimas para a cobertura de grandes superfícies sujeitas a uso intensivo, como é o caso das zonas de circulação do metro, por ser de destruição difícil e de fácil manutenção. Além do mais, tem um baixo custo, se o compararmos com outro tipo de revestimento, como os mármores do metro de Moscovo. Caíra, porém, em declínio no início do século XX.

Várias vezes se afirmou que a Câmara de Lisboa, cerca de 1920, teria aprovado uma postura que proibia a aplicação de azulejos nas fachadas dos edifícios, o que determinou o seu declínio. Contudo, tal postura não foi encontrada (nem outro tipo de diploma), sendo possível que a proibição fosse antes uma orientação no sentido de não o permitir nos projetos que se apresentassem a licenciamento para construção86.

Pelo contrário, Paulo Henriques afirma que o declínio foi fruto da arquitetura racionalista dos anos 20 e 30, que recusava o ornamento em favor da evidência da

estrutura construtiva e da pureza geométrica dos volumes87, e Luís Fernandes Pinto

85

Cfr. Paulo Henriques, Arte no Metropolitano de Lisboa, in Maria Fernanda Rollo (coordenação), Um

Metro e Uma Cidade, vol. 3, p. 124. Contudo, Guilherme Rodrigues refere que Maria Keil (que

conhecia pessoalmente e com quem conversou muitas vezes) era artista residente na Fábrica Viúva Lamego e que, nessa qualidade, foi paga pela fábrica, pois o trabalho terá sido encomendado pela ML à fábrica e não diretamente à artista (cfr. entrevista de 20/08/2012, in Vol. II, Anexo 4, p. 158). Por seu lado, na entrevista concedida a Maria Manuela d'Oliveira Martins (cfr. Conversa com Maria Keil, in João Castelo-Branco Pereira (organização), Maria Keil, Azulejos, Instituto Português do Património Cultural, Lisboa, 1989, s/ ISBN, pp. 47-51) a artista afirmou que não foi bem paga pelo trabalho do metro (o que significa que alguma remuneração terá recebido), por não saber relacionar o seu trabalho com o dinheiro (cfr. p. 49), tendo referido que teve todo o apoio da Fábrica Viúva Lamego, onde aprendeu a técnica do azulejo e realizou todas as suas experiências, designadamente com recuperação de técnicas tradicionais (cfr. pp. 47-48). Por sua vez, Carla Tomás menciona que a artista recusou um

atelier na fábrica, para não lhe ser imposta obrigação (cfr. Maria Keil, A Modernidade do Azulejo, in Cerâmicas, Ano 7, nº 21 (agosto de 1995), pp. 37-42, s/ ISSN, p. 40).

86

Cfr. A. J. Barros Veloso e Isabel Almasqué, Azulejos de Fachada em Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1989, s/ ISBN, p. 25, que referem afirmações de José Calado Loureiro, de Rafael Calado e dos operários das fábricas de azulejos. Também Guilherme Rodrigues se refere a esta proibição (cfr. entrevista de 20/08/2012, in Vol. II, Anexo 4, p. 168).

87

Cfr. Ausência e Nobilitação do Azulejo: A Política do Espírito, in Ana Maria Rodrigues (coordenação),

O Azulejo em Portugal no Século XX, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos

atribui-o unicamente ao alheamento ou a incompreensão dos arquitectos portugueses88. Contudo, algumas dificuldades de aprovação de fachadas revestidas a azulejo deveriam existir na Câmara Municipal de Lisboa, pois na memória descritiva e justificativa do projeto do edifício da Rua Vale do Pereiro, em Lisboa, o arquiteto modernista Pardal Monteiro (1897-1957) não se poupa a justificações para o revestimento azulejar preconizado, solicitando o acordo da Câmara, o que não seria necessário se o procedimento fosse o habitualmente autorizado:

Quanto às fachadas, procurou o autor dentro de uma expressão francamente de espírito novo, tirar partido do revestimento de azulejo, tão largamente empregado em outros tempos nas casas de Lisboa e de que infelizmente se acabou por fazer tão má aplicação pela falta de sentido estético que redundou na satisfação apenas de objetivos de ordem económica e portanto anti-artísticos. Pensa o autor que se justifica, mais do que nunca, a tentativa de ressurgimento duma indústria tão portuguesa, como é a da cerâmica na sua aplicação à construção civil (...). O azulejo português como material de revestimento deu largas provas de ser excelente e não parece desacertado que se tente, não a reprodução dos seus antigos modelos, mas a criação de novas interpretações estéticas, integrando-o mais no todo da composição, procurando que o conjunto constitua para cada caso uma peça e uma só. É uma tentativa que o autor deseja fazer com esperanças de bom resultado e para a qual se espera a concordância e apoio municipais.89

Certo é que as fachadas revestidas a azulejo praticamente desapareceram das obras arquitetónicas, mantendo-se pontualmente os revestimentos cerâmicos, como é o caso da Casa da Moeda, em Lisboa, da autoria de Jorge Segurado (figs. 37 e 38), construída entre 1933 e 1941 (que é revestida com placas cerâmicas vidradas), e outros raros exemplos de fachadas em azulejo, como refere Paulo Henriques90. Por outro lado, os anos 40 trouxeram um revivalismo histórico na arquitetura, com referências que iam desde o barroco seiscentista ao pombalino, onde os azulejos ou não tinham lugar ou repetiam os modelos "antigos", como no caso da antiga embaixada portuguesa do Rio de Janeiro91 (Palácio de S. Clemente - fig. 39).

Apesar de tudo, Jorge Barradas (1894-1971), pintor do primeiro modernismo português, começou no final dos anos 30 uma atividade como ceramista, com um painel em relevo representando o Infante D. Henrique e a Escola de Sagres, para o Pavilhão de

88

Cfr. Azulejo e Arquitetura: Ensaio de Um Arquitecto, Getecno, Lda., Lisboa, 1994, ISBN 972-8242-00-X, pp. 18 e 32. Luís Fernandes Pinto afirma que Porfírio Pardal Monteiro desconhecia tal proibição e que, se ela existisse, teria certamente pedido a sua revogação na memória descritiva e justificativa do projecto do edifício da Rua do Vale do Pereiro, em Lisboa.

89

In Memória descritiva do Processo de Obra nº 822 do Arquivo Geral da Câmara Municipal de Lisboa,

apud Paulo Henriques, 1949-1974: A Construção das Modernidades, in O Azulejo em Portugal no Século XX, p. 71 e nota 1, pág. 107, e também A. J. Barros Veloso e Isabel Almasqué, Azulejos de

Fachada em Lisboa, p. 25.

90

Cfr. op. cit., p. 70.

91

Cfr. Paulo Henriques, op. cit., p. 70, e José Meco, Os Azulejos do Metropolitano de Lisboa, in Artes

Portugal da Exposição Universal de Nova Iorque, em 1939 (fig. 40). A partir daí continuaria na cerâmica, até que em 1945 teve lugar a sua primeira exposição individual, no Secretariado de Propaganda Nacional, em Lisboa, intitulada Faiança na

Arte. Posteriormente, foi convidado por Eduardo Leite da Silva, sócio da Fábrica

Cerâmica Viúva Lamego, a instalar nesta a sua oficina, o que aceitou e lhe permitiria ter as condições necessárias à investigação e à vasta obra que viria a produzir, aproveitando o conhecimento dos técnicos e trabalhadores da fábrica e vindo a ser mestre para as gerações seguintes92. A sua obra continuaria, no entanto, a privilegiar os motivos tradicionais portugueses93 (fig. 41) mas não sem reatualizar os formulários, numa conciliação entre tradição e modernidade também ao gosto do Secretariado de Propaganda Nacional94.

No contexto desta revitalização do azulejo, também preconizada por Porfírio Pardal Monteiro, José de Almada Negreiros (1893-1970), figura maior do modernismo português, em 1949 desenhou um padrão para o revestimento integral do acima citado edifício da Rua Vale do Pereiro, em Lisboa (figs. 42 e 43)95. Esta obra de Almada, igualmente produzida pela Fábrica Viúva Lamego, afastou-se definitivamente dos modelos tradicionais de Jorge Barradas96, tal como Pardal Monteiro pretendia, ao mesmo tempo que abriu caminho para o geometrismo que Maria Keil viria a adotar na sua obra para o metro.

Um acontecimento teve importância capital para a reafirmação do azulejo de que se vem falando: em 1953, no III Congresso da União Internacional dos Arquitetos, em Lisboa, foi apresentada a exposição de Arquitetura Brasileira Contemporânea, em que foram mostrados dois edifícios: o Ministério da Educação e Cultura (atual Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro), concluído em 194497, e a Igreja de S. Francisco

92

Cfr. Paulo Henriques, Ausência e Nobilitação do Azulejo: A Política do Espírito, in O Azulejo em

Portugal no Século XX, pp. 59-60, e Luísa Arruda, Decoração e Desenho. Tradição e Modernidade, in

Paulo Pereira (direção) História da Arte Portuguesa, vol. III, Círculo de Leitores, s/l, 1995, pp. 407-505, ISBN 972-42-1225-4, p. 423.

93

Cfr. João Castel-Branco Pereira, Arte: Metropolitano de Lisboa, p. 13.

94

Cfr. António Rodrigues, Ausência e Nobilitação do Azulejo, in O Azulejo em Portugal no Século XX, p. 56.

95

Cfr. Paulo Henriques, A Construção das Modernidades, in O Azulejo em Portugal no Século XX, pp. 71-72.

96

Cfr. João Castel-Branco Pereira, op. cit., p. 19.

97

Ao contrário do referido por Paulo Henriques (cfr. op. cit., p. 73), este edifício teve a sua construção iniciada em 1937 (cfr. Luís Fernandes Pinto, Azulejo e Arquitetura: Ensaio de Um Arquiteto, p. 20), mas apenas foi concluído em 1944 e inaugurado em 1945.

de Assis da Pampulha98, inaugurada em 194399. Ambos apresentavam revestimentos em azulejo azul e branco da autoria de Cândido Portinari e com execução de Paulo Rossi, com motivos repetidos a lembrar a figura avulsa, no primeiro caso (figs. 44 e 45), e representando cenas da vida de S. Francisco, no segundo100 (fig. 46). Impressionada pela eficiência estética dos azulejos101, em que

manchas de contornos sinuosos estabelecem rimas plásticas com a ondulação das paredes no edifício do ministério e na cobertura da igreja e o recurso a fundos em diferentes tonalidades sobre os quais se abrem reservas de formas sinuosas criam ilusoriamente planos avançados e recuados102,

a arquitetura portuguesa voltaria à utilização do azulejo, designadamente com os arquitetos Victor Palla, Bento d'Almeida e Chorão Ramalho, em Lisboa, e José Carlos Loureiro, no Porto103.

Uma ajuda preciosa à recuperação do azulejo foi o facto de, em meados dos anos 50, a Câmara de Lisboa ter passado a ser obrigada a ceder, para a construção de obras de arte, uma percentagem (dois ou três por cento) do valor dos edifícios públicos que

atingissem um determinado montante104, o que permitiu que os arquitetos

encomendassem obras, muitas delas em azulejo.