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A referenciação e a intencionalidade: atividade discursiva

Neste capítulo, abordaremos a referenciação, uma atividade textual-discursiva das mais relevantes para a produção e compreensão de sentidos. Para isso, primeiramente, daremos atenção à concepção de que o texto, como observado em KOCH (2009), é um evento discursivamente comunicativo em que estão presentes sistemas de conhecimentos como: o linguístico¸ o enciclopédico e o interacional. Tais conhecimentos contribuem para o processamento textual. O linguístico compreende o conhecimento gramatical e lexical que são responsáveis pela organização do material linguístico na superfície do texto; por outro lado, o enciclopédico é aquele que se encontra armazenado na memória de cada indivíduo, quer sejam adquiridos por meio de experiências, quer por meio de proposições a respeito dos fatos do mundo. No aspecto sóciointeracional, o conhecimento, decorrente das ações, costuma ser verbalizado mediante enunciações características que exigem dos interlocutores reconhecer os propósitos comunicativos numa determinada situação de interação.

Segundo Koch (2009, p.13), os estudos em Pragmática promoveram o surgimento de teorias do texto para além do enfoque sintático-semântico. Em outras palavras, o processamento do texto não depende apenas do cotexto, como se o(s) sentido(s) estivesse(m) preso(s) à materialização textual, mas de um contexto comunicativo situacional, entendido como tudo aquilo que circunda os interlocutores, envolvendo ações ligadas, coordenadas e orientadas para um determinado fim, ou seja, o contexto é construído, em grande parte, pela própria interação.

Portanto, quando lemos ou produzimos algum texto, sempre recorremos a estratégias sociocognitivas e interacionais para nos auxiliar na compreensão e produção de sentido. Assim, no decorrer do processamento textual, ativamos nossos conhecimentos, sabendo da importância dos elementos linguísticos presentes na superfície do texto, mas também sabendo que os sentidos não existem apenas na superfície textual, pois são construídos na interação locutor-texto-interlocutor.

Além disso, o leitor necessita também apreender sentidos implícitos, por meio das inferências feitas para que os sentidos sejam construídos. As inferências envolvem

processos cognitivos que permitem facilitar o processamento textual, quer em termos de produção, quer em termos de compreensão.

Portanto, segundo Cavalcante (2012), observamos que a coerência textual não está apenas no texto, mas ela se constrói a partir da incessante interação entre locutor- co(n)texto-interlocutor, numa dada situação comunicativa, na qual o leitor, com base em seus conhecimentos linguísticos, enciclopédicos e interacionais, compreende a construção de sentido do texto.

Nessa perspectiva, a interpretação do que lemos e produzimos é resultado de uma ação discursiva, ou seja, a realidade não é objetiva nem estática, mas se transforma em referentes os quais se constroem e reconstroem à medida que o discurso progride, levando em conta os sujeitos, seus conhecimentos, suas visões de mundo, suas experiências em sociedade; afinal, conforme Marcuschi (2007), a maneira como dizemos aos outros as coisas é decorrente de nossa atuação discursiva sobre o mundo e de nossa inserção sociocognitiva nele.

Desse modo, Koch (2009, p.61) afirma que “os processos de referenciação são escolhas do sujeito em função de um querer-dizer”. Os referentes (objetos de discurso) são construídos e reconstruídos pela forma como sociocognitivamente interagimos em situações comunicativas, criando por meio de gêneros textuais específicos, efeitos decorrentes das práticas sociais.

Assim sendo, a referenciação constitui uma atividade discursiva em que o sujeito por ocasião de interação verbal, opera sobre os materiais linguísticos que têm à sua disposição e procede a escolhas significativas para representar o estado das coisas, de acordo com a sua intenção comunicativa. (cf. KOCH, 2009, p.61).

Em vista disso, reafirmamos que o contexto deixa de ser uma realidade estática e passa a ser representado pelo espaço comum em que os sujeitos, em função da interação, mobilizam diferentes tipos de saberes, tendo em vista aquilo que para eles parece ser relevante em uma determinada situação comunicativa.

Para Marquesi (2007, p.217), “a referenciação exige que se pense não apenas na abordagem linguística, mas também na cognitiva, já que são concernentes às práticas e aos discursos”. Assim, observamos que a referenciação está vinculada à interpretação e à (re) construção de mundos por meio da interação com o entorno físico, social e cultural.

Então, a mera decodificação dos sinais emitidos pelo produtor não é de modo algum suficiente: cabe ao leitor estabelecer, entre os elementos do texto e todo o contexto,

relações dos mais diversos tipos, para ser capaz de compreendê-los em seu conjunto e interpretá-los de forma adequada à situação.

Para tanto, o leitor infere os elementos que o texto contém e relaciona com aquilo que o texto deixa implícito, preenchendo as lacunas que ele apresenta, recorrendo para tanto: a) ao seu conhecimento de mundo ou enciclopédico; b) aos conhecimentos partilhados entre ele e seu interlocutor (quanto maior o conhecimento partilhado, menor a necessidade de verbalização).

Acerca disso, para estabelecer as atividades ou os processos que permitem toda a reflexão humana, Marcuschi (2007, p.88) afirma:

A referenciação, assim como a inferenciação e a categorização, é processo básico, construído em atividades discursivas que permitem toda a reflexão humana e a análise do próprio pensamento no âmago da linguagem.

O autor também defende a tese de que a realidade não está segmentada da forma como é concebida, e as coisas não estão no mundo da maneira como são ditas, mas as coisas ditas são coisas discursivamente construídas, e os referentes são na maioria objeto de discurso. Afirma também que não existem categorias naturais, uma vez que não existe um mundo naturalmente categorizado, mas, sim, um mundo construído discursivamente, por meio dos referentes que são produtos de interações sociocognitivas.

Ao estudar a referenciação, KOCH (2009) enfatiza que a categorização é um problema de decisão dos atores sociais envolvidos na construção dos referentes. As variações no discurso dependem mais da pragmática do que da semântica dos objetos. Trata-se, em geral¸ da ativação dos conhecimentos pressupostos e compartilhados entre os interlocutores.

Portanto, a categorização é vista como um poder de decisão do sujeito no sentido de (re) construir o referente, por meio do processo interativo. À medida que essas categorias evoluem sob o efeito de uma mudança de contexto ou de ponto de vista, o objeto de discurso torna-se dinâmico na esfera de um grupo social.

Desse modo, observamos que, quando precisamos nos comunicar, estamos frequentemente adaptando, elaborando, modulando o nosso dizer para atender as necessidades surgidas na interação. Em outras palavras, estamos categorizando e recategorizando constantemente o objeto do discurso.

Assim sendo, a recategorização é um fenômeno muito estudado em referenciação no que diz respeito à possibilidade de um referente passar por mudanças ao longo do texto, ou seja, o sentido de uma palavra, expressão ou até mesmo uma imagem é renegociada, mudando de significado de acordo com o contexto e da intencionalidade do autor, cabendo ao leitor saber interpretá-lo por meio de seu conhecimento prévio. Dessa forma, a recategorização passa a ser uma estratégia importante na construção do humor em charges políticas, que serão abordadas em seções posteriores.

Considerando, ainda, que o processamento e a configuração textual envolvem estratégia de ações e sua realização em elementos linguísticos (verbal e não verbal), podemos afirmar que processos interpretativos são administrados não só por uma percepção multimodal que geralmente envolve combinações de fala, gestos, texto, processamento de imagem, etc, construídos pelos sujeitos, mas também por diferentes métodos de conhecimento, que são sócio-históricos e discursivamente constituídos. Segundo Dionisio (2011, p.140), a multimodalidade pode ser considerada como uma diversidade de modos de comunicação presentes nos gêneros orais e escritos. Além disso, a autora afirma que “as ações sociais são fenômenos multimodais, consequentemente, os gêneros textuais falados e escritos são também multimodais”, ou seja, quando produzimos e organizamos um texto, estamos constantemente categorizando e recategorizando o referente, seja por meio de palavras, imagens, gestos, entonações, etc. Portanto, o enunciador pode inferir uma variedade de formas em diferentes situações sociais e com diferentes propósitos. Os aspectos visuais dessas ações sociais, resultantes da infinidade de possibilidades de combinação entre a imagem e a palavra, surpreendem o leitor, criando expectativas ou não.

Portanto, as ações de linguagem ultrapassam o linguístico, visto serem os textos de natureza multimodal. Obtém-se, então, a construção de objetos de discurso não só por meio da linguagem verbal, mas também por meio de outros aspectos simbólicos, conforme afirmam Mondada e Dubois (2003, p.17):

As categorias e objetos de discurso pelos quais os sujeitos compreendem o mundo [...] se elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir dos contextos. [...] são marcados por uma instabilidade constitutiva, observável através de operações cognitivas ancoradas nas práticas, nas atividades verbais

A partir disso, podemos afirmar que os referentes podem ser entendidos como o conjunto de operações dinâmicas e como entidades cognitivas e discursivas construídas à medida que o discurso se desenvolve, com a finalidade de elaborar as experiências vividas e percebidas numa situação comunicativa.