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Gênero charge: definição e característica

4. GÊNERO TEXTUAL: CHARGE

4.2. Gênero charge: definição e característica

Segundo o dicionário Houaiss, a charge é definida como desenho humorístico, com ou sem legenda ou balão, geralmente veiculado pela imprensa e tendo por tema algum

acontecimento atual, que comporta crítica, humor e focaliza, por meio da caricatura, uma ou mais personagens envolvidas. No dicionário Aurélio, a definição se completa ao dizer que o acontecimento é em geral, de caráter político. Desse modo, para compreender uma charge, o leitor deve conhecer o texto fundador, isto é, o fato que tornou a charge possível e/ou os textos que constituem o contexto. Seu caráter é temporal, pois trata do fato do dia.

Historicamente, a charge tem sido definida como uma ação social cujo propósito é reivindicar os direitos das minorias, dos excluídos, ridicularizando políticos, celebridades e outros poderosos, bem como eventos sociais e políticos em que estes estão envolvidos; aqueles têm sido alvos, direta ou indiretamente, do comentário gráfico na forma de desenhos com que os chargistas os expõem à opinião pública.

Além disso, apresenta traços e características do enunciador que constitui seu estilo. O desenho não é, pois, uma cópia fiel da realidade, porém veicula uma mensagem que se constitui a partir dos valores da cultura em que está inserida. O efeito da realidade, ou seja, o que torna a charge possível de ser aceita como parte de nosso arcabouço sociocultural, está ancorado nessa mensagem.

Desse modo, o enunciador pressupõe que o enunciatário da charge conheça o contexto social, cultural e político ao qual o enunciador se refere. Cabe ao leitor realizar a interpretação. Para isso, a compreensão depende da percepção dos recursos visuais (desenho, cor, traços exagerados, constituindo uma caricatura), verbais e pragmáticos, utilizados pelo enunciador da charge. Outro aspecto relevante está relacionado com o conhecimento prévio e enciclopédico que o leitor traz para que possa apreender sentido e desencadear o riso.

Para Melo (1994), a charge registra fatos políticos e trabalha com figuras públicas conhecidas e tende a atribuir a elas valores e a criticar suas ações. Ela possui a capacidade de abordar a realidade com traços críticos e lúdicos, utilizando imagens que fazem parte do imaginário popular, criando códigos de cumplicidade.

Para uma boa leitura é fundamental levar sempre em conta o contexto em que a passagem a ser lida está inserida, lembrando que esse contexto pode vir manifestado explicita ou implicitamente por palavras ou imagens, considerando-se que um mesma frase pode, portanto, assumir sentidos distintos, a depender, é claro, do contexto no qual ela se insere. Assim, há de se examinar, com base em Beaugrande (1997), a conceituação de contexto como uma unidade maior em que uma unidade menor está inserida, ou seja, o contexto é, portanto, um conjunto de pressuposições, baseados nos saberes dos interlocutores, motivados para a interpretação de um texto.

Além disso, destaca-se a importância de outros fatores como: a intencionalidade, que se refere aos diversos modos como os sujeitos usam textos para realizar suas intenções comunicativas, mobilizando, para tanto, os recursos adequados à concretização dos propósitos visados; a situacionalidade, que se refere ao conjunto de fatores que tornam um texto relevante para uma situação comunicativa em curso ou passível de ser reconstruída; a intertextualidade, já mencionada anteriormente (capítulo III) e a inferência, elementos consideráveis para a produção de sentido no processo de interpretação. Eles vão auxiliar não apenas a comunicação entre os interlocutores, mas também a elaboração do cômico. Portanto, as relações de um texto a outro, de uma imagem a outra, dependem do repertório do leitor, do seu conhecimento prévio e de mundo. No caso da charge, isto é igualmente válido, no que se refere à linguagem visual.

Conforme exposto, todos esses elementos são importantes para que o artista ao produzir seus desenhos tenha a capacidade de passar para o leitor sua ideologia¹, seus valores. Assim destaca-se o papel didático da imagem, o papel de formar uma consciência crítica no leitor, que é incentivado a interpretar a ideia proposta, a pensar sobre o assunto e a concordar com aquela ideologia ou não.

¹ Ideologia, entendido segundo ALTHUSSER deriva dos conceitos do inconsciente e da fase do espelho (de Freud e Lacan, respectivamente), e descreve as estruturas e sistemas que permitem um conceito significativo do eu. Ela representa a relação imaginária dos sujeitos a partir das condições reais da existência, está interessado em problematizar o caráter equivocado de alguns estudos marxistas que concebiam a ideologia como uma distinção da realidade. São condições concretas de existência que estão em jogo e elas circulam sobre as práticas sociais e o papel de assujeitamento do indivíduo perante as ideologias. Portanto, segundo Melo (1994, p.67) os meios de comunicação coletiva, através dos quais as mensagens jornalísticas penetram na sociedade, bem como os demais meios de reprodução simbólica, são “aparatos ideológicos”, funcionando, se não monoliticamente atrelados ao Estado, como dá a entender Althusser, pelo menos atuando como uma “indústria da consciência”, influenciando pessoas, comovendo grupos, mobilizando comunidades, dentro das contradições que marcam as sociedades.

Portanto, a leitura de uma charge requer todas essas considerações, e, além disso, uma relação forte entre imagem e texto. Para isso, segundo Dionísio (2011, p.138), “o letramento visual está diretamente relacionado com a organização dos gêneros textuais”. Isso posto, a charge carrega texto e imagem para marcar a posição do chargista mediante questionamentos críticos de uma sociedade num determinado período da história.

Ainda segundo a autora, imagem e palavra mantêm uma relação cada vez mais próxima, cada vez mais integrada e cada vez mais vivemos numa sociedade em que o visual ganha um espaço importante na construção dos gêneros textuais. Por isso, as charges ocupam um espaço especial nos jornais, muitas vezes na primeira página dos diários, porque se tornam verdadeiros editoriais, comentários sociais que, velados pelo humor, mostram com figuras caricatas o que não poderia ser dito com palavras.

A charge é considerada ainda um discurso humorístico que valoriza a ilustração, destacando na caricatura as questões ideológicas, as de poder, as de sentimentos e as de personalidade. Esse recurso gráfico é a representação pictórica de caráter burlesco e caricatural em que se satiriza ou critica um fato específico, geralmente de caráter político- social.

A caricatura, segundo Fonseca (1999), deriva do verbo italiano caricare que significa carregar, sobrecarregar com exagero, ou seja, a caricatura reproduz a imagem isolada dos personagens vivos, acentuando detalhes ou ressaltando defeitos cuja finalidade é suscitar o riso e a ironia.

Por ser um discurso lúdico e crítico, a charge tem a liberdade de mostrar a interpretação dos fatos, utilizando recursos verbais e visuais, de tal modo a vermos as situações de maneira descontraída, sem o pudor da moral ou conceitos éticos; sem, no entanto, precisar recorrer à linguagem vulgar ou sensacionalista.

A partir disso, Dionísio (2011, p.139) reitera a importância dos gêneros textuais serem multimodais, ou seja, quando organizamos um texto escrito ou falado, estamos constantemente articulando combinações entre palavra e imagem (gestos, sorriso, animação, etc.). Esses contratos geram significações relevantes na produção e construção de sentido que estão associados a um tipo de situação retórica e atividade socialmente organizada.

Nesse caso, a charge, como gênero textual, que compartilha a linguagem verbal e visual em seu modo constitutivo, é um exemplo que muito perfeitamente se encaixa nesse conceito de multimodalidade, uma vez que a significação só se estabelece por meio da associação, ou melhor, da inter-relação entre essas duas linguagens.

Para compreender uma charge é preciso prever a habilidade do destinatário para distinguir o que é subentendido do que é pressuposto. Ducrot (1987, p.32) define “o subentendido como sendo a resposta a uma pergunta sobre as condições de possibilidades da enunciação”, ou seja, o subentendido se caracteriza por um processo interpretativo a partir dos dados explícitos no enunciado, possibilitando o leitor apreender significados ativando seu conhecimento de mundo.

Ducrot ressalta, ainda, que o subentendido aparece como uma explicação de sua enunciação. Para ele, subentende-se que as respostas derivam das seguintes perguntas: “Por que o locutor disse o que disse?”, “O que tornou possível sua fala?”. Para isso, ele ilustra essas definições com o seguinte enunciado: “Pedro parou de fumar”, pressupõe que Pedro fumava anteriormente e não fuma mais. Por outro lado, se esse enunciado é destinado a relembrar a um fumante crônico a possibilidade de parar de fumar, pode ser que ele veicule subentendido como “Com um pouco de coragem, pode-se chegar lá”, “Pedro tem mais força de vontade que você”. Além disso, Ducrot (ibid., p.41) afirma que a “pressuposição é parte integrante do sentido dos enunciados”. O subentendido, por sua vez, diz respeito à maneira pela qual esse sentido deve ser decifrado pelo destinatário.

Desse modo, na charge, essa inter-relação entre imagem e palavra pressupõe a parte integrante do que se pretende dizer ao destinatário que busca decifrar e interpretar esses códigos construindo sentido dentro do contexto proposto pelo enunciador.